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06/09/2011

Vida de Micróbio



Quando olhei para cima me dei conta de que aqueles próximos 2 milímetros seriam muito mais difíceis de se percorrer do que os quase 3 centímetros que eu já havia deixado para trás. Apesar do meu pavor inicial em precisar me arriscar naquele ambiente totalmente extraterrestre para mim, sem idéia alguma dos tipos de criaturas que encontraria pela frente, percorrer 3 centímetros praticamente planos certamente era muito mais fácil do que escalar os dois milímetros daquele paredão de vidro que se estendia à direita e à esquerda até onde minha visão era capaz de alcançar. Certamente que o paredão naquela escala não era liso como sempre se imagina que seja o vidro, apresentando várias irregularidades em forma de cristais de sílica que eu poderia usar para me apoiar na escalada. Porém era muito íngreme, seria uma escalada de praticamente 90 graus! Infelizmente não tinha escolha nenhuma, e só estava ganhando algum tempo para me acostumar com a idéia.

Sentei-me numa pedra no chão. Pedra não, era provavelmente um grão de pólen. Pus-me a relembrar aquela recente jornada tão diferente de qualquer coisa que eu seria capaz de conceber antes. Não estava longe de casa. Na verdade, acredito que nem deveria estar a mais de uns 20 centímetros da posição original combinada, que era onde eu deveria mesmo estar se não fosse aquele... tufão! E eu havia insistido tanto para que fechassem as janela! Provavelmente ninguém no laboratório sequer tenha sentido aquela tênue brisa, mas podem imaginar o que é uma brisa para uma criatura de pouco menos de 2 micrômetros de altura?

A visão do mostruoso ácaro, verdadeiro dinossauro perto de mim, me fez acreditar que era o fim. Tanta pesquisa, tantos testes, projetos bem executados, sonhos, para no final eu simplesmente virar comida de ácaro. Seria muita ironia se isto acontecesse. Mas percebi que o bicho, embora gigante, era totalmente estúpido. Estava mais interessados em escamas parcialmente decompostas no chão do que em mim. Na verdade, nem sei se ele era capaz de me ver. Ácaros têm olhos? Seria a primeira coisa que tentaria descobrir, se conseguisse sair desta enrascada em que me encontrava agora.

Aproveitei aquela pequena parada para olhar mais atentamente aquele meu corpo microscópico. Os cinco cílios em torno da ventosa que constituía minhas pseudo-mãos desempenhavam bem o papel de dedos. Havia até um cílio mais curto afastado dos outros quatro, cumprindo bem a função de polegar opositor. O par de pseudópodes superiores na ponta do qual se encontravam estas ventosas podiam se dobrar na metade do seu comprimento, imitando a junção dos cotovelos do braço humano. O mesmo ocorria com os inferiores, mais grossos, terminando nas ventosas que cumpriam o papel de pés. Os pares excedentes do microorganismo original foram bem reduzidos pela manipulação genética, tornaram-se quase imperceptíveis. Sim, eu estava bem orgulhoso do resultado daquele trabalho. Aquilo era o mais próximo que uma criatura microscópica poderia chegar da figura humana.

Me levantei e tentei encontrar uma parte se cristal de sílica mais liso naquele paredão. Queria um espelho para ver como havia me saído com a cabeça. Definitivamente a parte menos humana daquela manipulação genética do Tardigrade, mas era bastante funcional! Fiz questão dos olhos, era importante ser capaz de ver este mundo novo. Lógico que precisava abandonar a idéia de olhos normais, com íris, cristalino, retina, e tudo o mais. Decidi por criar um bulbo na criatura, na função de cabeça, e desenvolver nela duas manchas ocelares fotossensíveis. O nanocérebro eletrônico seria capaz de reconstruir isto nas imagens que eu estava acostumado, mas infelizmente eu precisei sacrificar com isto a percepção das cores: vivia agora num mundo monocromático, vendo tudo em vários tons de sépia. Poderia aprimorar isto num projeto futuro, criar manchas ocelares capazes de selecionar faixas do espectro, mas eu estava impaciente para colocar o projeto em prática o mais rápido possível. A cabeça até que não havia ficado tão ruim assim. Não havia nariz, pois eu não respirava. Ao menos não no sentido comum da palavra. Digamos assim que eu tomava goles de ár da atmosfera sempre que precisava de oxigênio, via pinocitose. Num organismo tão diminuto, estruturas especiais como sistemas respiratório e circulatório eram totalmente desnecessários, oxigênio e alimentos se propagavam de célula em célula por osmose. E que células! De fato eu era pluricelular, mas podia ver minhas células isoladamente a olho nu. Na escala atual, digamos que elas apareciam para mim mais ou menos do tamanho das vesículas que existem dentro dos gomos de laranja.

Voltemos à cabeça então. Orelhas também eram desnecessárias: os nanoreceptores auditivos poderiam captar as vibrações normalmente sentidas pela superfície de minha cabeça sem precisar de microestruturas especiais, como cóclea, tímpano, etc. Bastava concentrar os receptores em cada um dos lados do bulbo para se ter uma percepção espacial, poder localizar a direção da fonte sonora. A boca realmente não havia ficado muito boa. Criar duas fileiras articuladas de microplacas de cálcio era muito difícil, precisei abandonar a idéia de uma micromandíbula. Acabei cedendo à boca circular mesmo, construção anatômica mais comum neste mundo minúsculo. Daria para se acostumar a isto. Olhei então para aquela mancha escura difusa, no centro do bulbo encefálico: o nanocérebro quântico! Sim, podia vê-lo porque meu corpo era semi-transparente, como muitas das criaturas que compartilham minha escala de dimensões. Lá estava ele, o impossível realizado!

"Não dá para construir um nanocérebro complexo o bastante para replicar um cérebro humano!", era esta a opinião corrente da época! A um certo tempo já era uma prática comum as pessoas replicarem suas lembranças e personalidades em cérebros eletrônicos. Começou, como sempre, de forma bem rudimentar, com as lembranças dos entes queridos recém falecidos sendo copiados em computadores colocados no interior das lápides. Com o desenvolvimento da Inteligência Artificial, não apenas as lembranças podiam ser preservadas, mas parte da personalidade do morto. Os familiares podiam inclusive conversar com eles numa simulação quase realista! Muitos na época acreditavam estar tendo realmente alguma forma de contato com o além, tamanha a perfeição da interação dos computadores com os saudosos familiares. Também existiram muitas manifestações contra, como é de se esperar que ocorra com qualquer novidade tecnológica pouco compreendida. Isto foi a uns 50 anos. Atualmente, muitos não estavam dispostos a esperar morrer para se replicarem digitalmente. Inclusive foi levantada uma questão ética muito complicada, questionando se as réplicas criadas tinham direito à vida, ou se o seu original poderia destruí-las quando bem entendesse. No fim, tudo se resolveu com uma simples extensão das leis de direitos autorais: a cópia digital do cérebro pertencia única e exclusivamente ao possuidor do cérebro original, e apenas ele poderia decidir se e como seu "clone digital" poderia continuar "vivo" ou não. Por me conhecer muito bem, eu estava seguro, sabia que meu original, meu equivalente macroscópico, seria incapaz de destruir uma cópia microeletrônica de seu cérebro. Microletrônica? Não, me expressei mal. Meu cérebro não estava na escala micro, mas na escala nano. E nem era eletrônico, mas quântico. Foram estes fatos todos que fizeram a grande maioria duvidar da possibilidade de fazer a cópia.

O fato é que eu estava lá, e precisava acabar com estas divagações. Uma das primeiras atitides seria comer, pois os fagócitos internos em meu abdômem começavam a reclamar daquele jejum. Na minha primeira refeição como Tardigrade mutante eu realmente não tinha a mínima idéia do que consistiria minha base alimentar. Tentei agir por instinto. Acabei descobrindo que aquela colônia de bactérias em forma de bastonetes, que encontrei no meio da minha longa jornada de 3 centímetros, eram especialmente apetitosas. Pensei então: se o gosto é bom, então não deve fazer mal! Coloquei então algumas delas dentro de um saco improvisado, que consegui removendo o citoplasma de uma ameba. Sua membrana celular dava um belo couro transparente para carregar objetos! Mas haviam muitos mais bastonetes do que quando eu os coloquei lá no começo. Como estas bactérias se multiplicam rápido! Levei uma à boca, rasgando a membrana e deglutindo o seu refrescante citoplasma. Após comer mais umas três bactérias, me senti refeito para iniciar a escalada.

Por que era tão importante eu vencer aquele paredão de vidro? Óbvio, eu queria aparecer! Mostrar que ainda estava vivo, apesar daquele acidente inicial! Podia até imaginar o rebuliço dentro do laboratória, todos tentando me encontrar. Mas não podia ver nada. Sabia que a luz estava acesa, e a passagem de vultos vez ou outra indicavam a presença de pessoas lá. Mas tudo me parecia um borrão a tais distâncias! Eu era incapaz de perceber com clareza e nitidez qualquer objeto que estivesse a mais de uns, sei lá... talvez 4 milímetros de distância. Ainda estava tentando me ajustar à nova escala da minha realidade. O impacto quando caí levado por aquela brisa-tufão nem me machucou tanto, percebi logo que microscópico eu era bem mais resistente a essas coisas. O próprio efeito da gravidade sobre meu levíssimo corpo era bem menos intenso daquele que eu estava acostumado como ser macrocóspico. Ser macroscópico? Eu já fui um? Não era apenas uma cópia digital num nanocérebro? Certamente, mas minhas lembranças todas era do ser macroscópico original, do humano que se copiou naquele nanocérebro. E agora sentia que, realmente, eu parecia existir! Era indiferente eu ser o original ou a cópia. As lembranças eram minhas! De certa forma, eu FUI macroscópico um dia! Ou pelo menos me lembrava disto... Enfim, estou divagando de novo. Deixe eu me focar novamente no meu problema imediato.

As paredes estavam úmidas. Ótimo, isto facilitaria muito minha subida. Naquela minha jornada, descobri da pior maneira que microscopicamente a água era uma substância incrivelmente pegajosa. Vi uma gotícula de água, estava a mais ou menos a uns 3 milímetros do paredão naquela ocasião. A gotícula, na verdade, aparecia para mim como um domo gigantesco na minha frente, de centenas de metros de altura. Inocentemente me aproximei dele, e aprendi da pior maneira o que é tensão superficial: atraído pela película externa da gota, tive de fazer muita força para me desprender daquela parede adesiva! Foi a segunda vez que vi meu fim naquela jornada: escapando de virar comida de ácaro, estava agora condenado a ficar preso até morrer nas paredes de uma gotícula de água! Perdi meu polegar direito na tentativa de sair dela, tamanha a força com que me atraía! Você deve estar se perguntando: mas agora pouco você não disse que estava com as duas mão perfeitas? Pois é... Aprendi que minhas células se regeneram muito rápido. Acredito até que seu perder os pseudópodes que formam meus braços ou pernas eles serão capazes de crescer de novo. Mas é óbvio que não vou tentar fazer esta experiência, porque dói!!! E muito!! Nessas horas, penso que talvez não deveria ter feito os extensores sensoriais do meu nanocérebro tão sensíveis assim...

Acho que ainda não expliquei por que precisava tanto escalar aquele paredão, não é? Bom, digo agora. Quando percebi que o ácaro realmente não estava interessado em fazer de mim sua refeição, tentei me tranquilizar e localizar onde eu havia parado. Como disse, apesar de enxergar muito mal qualquer objeto a mais de meio centímetro, ainda via borrões. E o formato em L daquele microscópio óptico era inconfundível! Mesmo parecendo um borrão sépia escuro num céu totalmente branco, consegui me localizar. A única chance de resgate, se é que existia alguma, seria eu me fazer aparecer. Para isto eu teria de me deslocar até ao ponto focal da lente objetiva, esperar que alguém estivesse observando na ocular naquele momento, e começar a agir de formas que nem amebas, bacilos, ou qualquer outro ser microscópio descerebrado agiria. Escrever um SOS na superfície da lâmina usando Streptocosos, por exemplo, não seria uma má idéia. Aquele paredão de vidro na minha frente era uma das bordas da lâmina de amostras  do microscópio!

Foi nesta situação tão inusitada que iniciei minha carreira de alpinista. As ventosas nas palmas de minhas mãos e pés se agarravam com firmeza da sílica umidecida, eu não precisaria improvisar nenhum instrumento de escalada! Talvez não fosse tão difícil assim chegar no topo da lâmina, cuja borda prilhava em vários tons sépia! Certamente eu veria isto em várias cores, se tivesse inserido no tardigrade genes de ocelos multicromáticos. Será que o nanocérebro era transplantáveis a microorganismos de versões melhoradas? Bom, isto não era o mais importante no momento. Só me interessava chegar ao topo la lâmina de amostra.

Meu leitor deve estar se perguntando: por que um cérebro artificial? Não seria possível desenvolver, via manipulação genética, um microcérebro celular no tardigrade? Minha resposta: não, pelo menos não com a complexidade que eu sonhava. Talvez um autômato limitado, um microrobô biômato. Mas isto não me deixaria satisfeito! Eu queria inserir inteligência neste microorganismo. Se não era possível por vias naturais, que fosse implantado nele um nanocérebro então! Na verdade (e isto eu nunca havia revelado para ninguém) meu sonho era eu próprio me copiar no meu mutante microscópio, ver o que ele via. Se consegui? Oras bolas, estou te descrevendo isto até agora! Meu equivalente macroscópico conseguiu? Certamente não, nada mudou para ele. Não existem miniaturizadores como os da "Viagem Insólita" de Asimov, e duvido que algum dia possa existir este tipo de coisa. Se você quer se tornar microscópico, você precisa NASCER microscópico! Foi o que fiz, mas me permiti colocar inteligência nisto! Implantar um cérebro numa criatura normalmente "burra". Funcionou, ou não estaria aqui descrevendo para vocês minhas aventuras! Mesmo meu original macroscópico não conseguindo realizar seu sonho, ele deve se sentir muito satisfeito se souber que uma cópia sua conseguiu. Sei disso, me conheço muito bem! Por isto é muito importante que eu apareça! Ele tem que saber que a experiência deu certo!

A escalada continuou, saliência após saliência. Os movimentos ficaram automáticos. Isto me permitiu continuar sonhando com o futuro. Como aperfeiçoar mais o projeto? A mutação que ele agora controlava poderia se reproduzir? Certamente sim, pois de fato haviam milhões de cópias deste tardigrade alterado dentro de algum tubo de ensaio. As mutações introduzidas eram propagáveis. Mas eram todos sem cérebro! O nanocérebro não se reproduzia, ere era implantado na criatura já formada. Como melhorar isto? Bom, nanoestruturas autoreplicáveis eram comuns. Só que todas elas eram bem simples, nem se comparavam a um nanocérebro! Qual seria a dificuldade de se criar um nanocérebro capaz de se replicar? E quando ele faria isto? Talves com sensores enzimaticos, que dessem o comando de duplicação exatamente no mesmo momento em que o organismo que o hospedava começasse a se duplicar. E quanto à informação do cérebro copiado? Idêntica à do original, ou uma folha em branco precisando reaprender tudo? As duas possibilidades eram tentadoras! Talvez o melhor fosse uma combinação aleatória das duas, com alguns cérebros replicando também as informações (os anciões) e outros totalmente virgens de experiências, inclusive sem memória alguma de uma vida macroscópia anterior. Uma nova sociedade micro-humana? Seria fabuloso, uma população de bilhões vivendo pacificamente dentro de poucos centímetros quadrados, continuando a desenvolver a cultura sem precisar disputar espaço, comida, território... Minha viagem mental atingia o clímax quando percebi ter atingido a borda superior da lâmina. Como o tempo passa rápido quando estamos sonhando acordados! Acordado... sim, eu estava neste estado a muito tempo! Precisava dormir. Mas como fechar os olhos? Não tinha pálpebras, mas mesmo que as tivesse elas seriam semitransparente, não me resolveriam o problema. Improvisei uma touca com o tecido de uma microalga que encontrei no topo, a coisa mais opaca que fui capaz de encontrar naquele mundo novo. Amarrei uma espécie de turbante de membrana em torno dos meus ocelos e da cabeça, e adormeci por algumas horas. Horas? Sei lá, talvez minha percepção microscópica de tempo seja diferente, mas no momento não havia como avaliar isto. Esvaziei a mente, e dormi...

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- Devagar! Nem respire, ok? Quantas vezes eu disse para fechar a janela! Ninguém me ouve aqui?

- Tem certeza de que ele está aí mesmo?

- Se tenho certeza? Lógico que tenho! É exatamente o que eu faria!

- Desculpe-me parecer tão insensível dizendo isto, mas... cara, ele pode estar em qualquer lugar! Pode ter sido fagocitado por uma ameba, se afogado numa gotícula de água, atacado por bactérias, sei lá!

- Ele está num destes microscópios! Tenho certeza que sim! É o que eu faria também!

- Relaxa! É só uma cópia! Não é você! Está levando isto juito para o lado pessoal...

Um tubo de ensaio quase voou na cabeça do técnico após ele lançar este comentário infeliz, mas Mandel conseguiu se controlar.

- Eu nem senti a brisa, então ele deve estar bem perto! Vejamos... peso, tantos nanogramas. Possível intensidade da brisa... - começa a fazer cálculos em sua calculadora de bolso. - Não mais de meio metro! Tenho certeza! Quantos microscópios existem na bancada, dentro desta região?

- Uns seis?

- Então, este é o último! Ele vai tentar aparecer! Quando tempo agora? 3 dias? Deve ter tentado escalar a lâmina. Talvez exausto, esteja descansando na borda antes de continuar caminhando até o centro. Continue procurando, mas... com cuidado, caramba!!! Sabia que para ele isto deve ser equivalente a um terremoto??

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Acordei ouvindo murmúrios incompreensíveis à distância. Meu espectro auditivo era vem limitado, não percebia nada muito além dos 150 hertz, apesar de conseguir identificar con clareza os infra-sons abaixo dos 3 hertz com uma clareza de até 4 oitavas de separação. Mas dava para perceber que eram vozes humanas discutindo! O chão de vidro balançando aos meus pés me causava vertigens, o que me levou a permanecer deitado.

Vi uma forte luz surgir ao longe. Puxa, não havia pensado nisto! A luz do microscópio me cegaria de imediato! Me protegi o mais rápido que pude com aquele turbante de microalgas improvisado.

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- Desliga esta lâmpada, vai cegá-lo!!

- E como vamos ver algo aí?

- Ligue o receptor digital, deve ser suficiente! Quando eu perceber que estou sendo observado, vou saber como dar algum sinal.

- EU??

- EU, ele... ah, tanto faz!! Só faz o que eu mando, ok?

- E se ele já foi para o centro da lâmina?

- Não deu tempo. Continue olhando as bordas, tá bom? As bordas!

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Estavam me procurando, não havia dúvida! Mas como chamar a atenção? Fazer uma fogueira, sinais de fumaça? Fora de cogitação, isto não se aplicava à minha situação atual. Um SOS, mas com o quê? Ainda mais sem poder olhar o que fazia... Que situação difícil! A luz passava por ele já pela sexta vez, e nada indoicava que ele havia sido localizado. Como uma criatura microscópia poderia chamar a atencão de criaturas macroscópicas?

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- Vai mais devagar!

- Caramba! Mais do que isso? Estou percorrendo a borda a um décimo de milímetro por segundo!

- Estamos procurando um ser de menos de dois micrômetros de altura. Precisa ser mais devagar sim!

- Pô, quero comer! Não vou perder meu almoço aqui procurando um micróbio!

Aúnica coisa que impediu Mandeu de dar um soco na cara do técnico foi a certeza de que isto poderia colocar tudo a perder...

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O resgate tão perto, e ao mesmo tempo tão longe... Quando a luz passou por ele pela vigésima vez, ficou bem claro que apesar da insistência de seu equivalente macroscópico, ele era pequeno demais para poder ser observado. Como se fazer um pouco maior, mais visível? Abriu sua sacola de membrana de ameba, procurando pelas bactérias. Morreram? Lógico que sim! Elas se multiplicam rápido, com certeza... desde que tenham matéria prima para produzirem suas cópias. Sem comida, morrem como todo ser vivo. Sua idéia de escrever um SOS fôra por água abaixo. Água? Vê uma microgotícula de água a algumas dezenas de micrômetros de distância. Ele queria se fazer maior? Era a última chance! Arriscado, sem duvida, mas... o que tinha a perder? Ele acabaria perecendo lá, se não fizesse nada. Se tentasse aquela loucura, tinha alguma chance. Ou aceleraria o fim, algo que nestas circunstãncias nem seria uma má idéia. Decidiu então mergulhar de cabeça e se arrastar até o centro da gotícula, arriscando-se a se afogar.

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- Ei, tem algo aqui!

Sim, definitamente aquela criatura não era um micróbio normal. Indetectável numa situação normal, mas no centro daquela gotícula de água a abóbada transparente funcionava como uma lente adicional, destacando a presença daquela criatura incomum. Tão humanizada! Braços, pernas, cabeça, até manchas que lembravam olhos! Ao ver aquela massa difusa no interior do buldo encefálico, Mandel não teve dúvida: era sua réplica microscópica!

- Tira ele daí logo! Está se afogando!

- Como?

- Micromanipuladores! Vai, anda logo!!

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Os micromanipuladores funcionavam com perfeição, e me enchi de orgulho ao constatá-lo. O que eu nunca podia imaginar é que minha vida um dia dependeria deles. Alguns segundos a mais, e eu estaria condenado a ser um microcadáver dentro de uma microgotícula de água. Mas as duas finíssimas garras de carbono me levantaram de dentro daquela gotícula de água com tanta delicadeza quanto uma mãe levando ao colo seu recém nascido! Me depositou no chão do topo daquela lâmina. Ainda permaneci  algum tempo inerte para me refazer, mas tentei fazer um sinal de "jóia" para meus observadores. Será que aquele microscópio era acurado o suficiente para conseguir ampliar com clareza meu gesto? A luz ambiente começa a piscar, mas fraca o bastante para não me cegar. Era óbvio que meus salvadores estavam tentando se comunicar. Sabendo agora que os gestos de minha micromão não eram visíveis, passei a sacudir os braços. Eles começaram a piscar a luz a intervalos de exato um segundo. A intenção era óbvia: queriam a minha confirmação de que no meu mundo microscópio a sentação da passagem do tempo era igual ao do macroscópico. Comecei a sacudir os braços no mesmo intervalo de um segundo, confirmando para eles que nossa percepção de tempo era idêntica. Um grande medo, desfeito agora, era de que o cérebro quântico processasse rápido demais, dando ao seu portador a incômoda sensação de estar aprisionado no corpo de uma lesma. Felizmente, não era o caso!

O piscar recomeça, mas agora diferente. Tento memorizá-lo, 4 piscadas, 5 piscadas, pausa... 5 piscadas, 1 piscada, pausa... 1 piscada, 4 piscadas, pausa...3, 5, pausa... pausa... "Será código morse?", pensei... 1, 2, pausa... 1, 5, pausa... 3, 3, pausa. Parou. Lamentei profundamente nunca ter aprendido código morse. Aquilo e nada para mim era a mesma coisa. Mas... não! Provavelmente quem estava tentando se comunicar era meu equivalente macroscópico, e ele TAMBÉM não sabia código morse! Que código era aquele então? Pensei, pensei... óbvio! Não me orgulho de revelar isto, mas era o código que costumávamos usar para passar colas nas provas do meu tempo de faculdade bioquímica! Simples, eficiente, e... (hehehe) nunca desmascarado! A idéia era bem simples: num quadriculado de lado 5 por 5, coloque as 25 primeiras letras do alfabeto (nunca sentimos falta do Z, que sempre poderia ser substituida pelo S...):

A  B  C  D  E
F  G  H  I  J
K  L  M  N  O
P  Q  R  S  T
U  V  W  X  Y

Ainda não tinha improvisado caneta e papel no mundo microscópico, então tive de decodificar de cabeça: 4 piscadas, 5 piscadas, pausa, ou seja, linha quatro, coluna cinco... letra T!  5, 1, pausa: letra U. Meu leitor pode continuar o exercício se quiser, mas vou me adiantar para os mais impacientes: eles diziam (ou perguntavam, pois a interrogação estava de certa forma implícita): "TUDO BEM ?". Precisava responder levantando os braços: 3 vezes, 5 vezes, pausa... 3 vezes, uma vez, pausa. "OK!!".  Esta conversa prosseguiu morosa, e não pretendo aborrecer meus leitores com detalhes. Resumirei. Era de fato com meu equivalente macroscópico a pessoa com quem eu "falava". Se desculpou repetidamente pelo acidente, dizendo que havia insistido muito com a questão das janelas (e disso eu lembro bem). Perguntou sobre danos, mencionei a perda do polegar mas a rápida regeneração do mesmo. Mencionei minha visão monocromática, incapacidade de reconhecer sons agudos, etc. Mas era urgente desenvolver uma comunicação melhor, pois seria penoso narrar detalhes de minha aventura por este meio tão lento de comunicação. Minha lâmina foi levada com cuidado ao local planejado desde o princípio, onde uma construção microscópica cheia de ferramentas úteis havia sido preparada previamente para que eu a habitasse. Sim, a idéia inicial não era eu me colocar logo de cara no mundo micro, mas viver um tempo num ambiente o mais parecido possível com o mundo macroscópico de onde vim até me acostumar lentamente com a idéia. Aquela brisa-tufão mudou meus planos, mas também acelerou minha curiosidade de exploração: não precisava mais de tanto tempo para adaptação ao "Microadmirável Mundo Novo"!

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Quando aprendi a manipular com destreza os equipamentos nanoscópicos de meu microlaboratório, percebi uma possibilidade mais eficiente de comunicação. A idéia não era nova, apesar de difícil. Só que naquela escala do meu atual mundo, ela se tornava viável: montar sequências de DNA. Era um pouco maçante cortar nucleotídeos daqui e colá-los ali, sequencialmente, da fita de DNA. Mas, inserindo os filetes gerados no DNA circular de certas bactérias, consegui algo nunca antes imaginado, e que valia a pena todo o esforço: livros capazes de se auto-replicar! O máximo da revolução das técnicas de imprensa: bastava abrigar e alimentar seus livros que eles fariam cópias e mais cópias deles mesmos!

Logo de cara eu precisei abandonar a idéia de usar os nucleotídeos individualmente: tinha à minha disposição apenas as letras A, C, G e T, e não dava para escrever coisas muito interessantes só com elas. Além disso, manipular nucleotídeos individuais era difícil, pois eles sempre se apresentavam fortemente conectados em trincas! Logo percebi que poderia dispensar o equipamento, e manipular estas trincas com minhas próprias mão: com o tempo se percebe fácilmente pelo tato cada um dos 20 aminoácidos codificados nestas trincas. 20? Mas trincas de elementos que podem assumir 4 estados não me daria um conjunto de 4X4X4=64 combinações?  De fato, mas haviam aminoácidos codificados como trincas diferentes. Agora ficava claro para mim o motivo: pelo tato, dava para sentir muito pouca diferenca entre as trincas de nucleotídeos que codificavam um mesmo aminoácido específico. Precisava então inventar um alfabeto de 20 letras. Bom, já havia feito algo parecido antes, não seria tão difícil assim.

Primeiro ordenei os 20 aminoácidos pelos nomes. Sabia da existência de sequenciadores no macrolaboratório lá fora, e minha intenção era poder escrever algo que eles também pudessem ler. Mas óbviamente não havia como codificar 26 letras em 20 aminoácidos. Comecei a descartar algumas (me perdoem os puristas ortográficos, mas foi necessário!). Comecei eliminando o C. Para que esta letra? Ela assume ora som do S, e ora som do K, então eu poderia substituí-la por uma ou outra sem perda de clareza. O Y também se foi, pois sempre poderia usar I em seu lugar nas palavras estrangeiras. O W era útil, mas optei por substituí-lo pela combinação VV, que por ser inexistente em português ficaria claro que estava fazendo o papel de um W. E o X então, outro grande problema!! Uma letra esquizofrênica, capaz de assumir 4 ou 5 fonemas distintos, todos facilmente substituíveis: também o removi do meu alfabeto genético! Sempre gostei da combinação PH, e nunca entendi por que foi abandonada. Sendo criador do alfabeto, poderia colocar nele meis gostos pessoais. Foi por isto que removi também a letra F, e voltei a usar o PH no seu lugar. E finalmente... o Q! Letra exigente, sempre impondo a presença de um U como sequência, mesmo que ele não fosse pronunciado. Também o eliminei, e passei a escrever palavras como KEIJO, KUATRO, KUADRADO, etc. Estava pronto o meu alfabeto microscópico! Faltava a pontuação. Bom, é fato conhecido a existência de três combinações (todas iniciadas pela adenina) que não possuem expressividade genética: elas não codificam nenhum aminoácido! Nada melhor que usá-los como pontuação, e foi o que fix: ATT virou espaço, ATC ponto e ACG vírgula. QUanto ao resto? Sempre poderia improvisar com a letras que não expressavam paravra alguma: HI, hífen; AP, aspas; AP, FP, abre-parenteses e fecha parenteses, etc... Criei um conjunto de caracteres bastante prático desta forma, e meu equivalente macroscópico aprovou a idéia incondicionalmente!

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    Atualmente vivo confortável dentro de minha fazenda de bactérias no fundo daquele tubo de ensaio. Por assim dizer, crio livros! Cuido deles, alimento. Tenho uma extensa biblioteca bactereológica formada de várias culturas-exemplares. Preciso sempre estar atento para que estas culturas não se misturem, pois isto comprometeria o conteúdo dos livros: ninguém gostaria de ler uma mutação da "Divina Comédia" misturada com o "Elogio à Loucura" e uma pitada de genes do "Principia" de Isaac Newton, concordam? Mas outras cópias micro-humanas repetiram minha esperiência e me ajudam nesta tarefa de isolar as colônias da microbiblioteca. Elas são melhoradas. Possuem visão tricromática, por exemplo. Infelizmente o transplante de meu cérebro para um tardigrade melhorado ainda não é possível, mas já me acostumei com o mundo monocromático.

Com o tempo desenvolvemos habilidade em ler estes livros pelo tato, fercorrendo os fios de DNA das bactérias modificadas entre os dedos e decodificando os aminoácidos codificados nas trincas. Como Braile? Não, bem melhor! A leitura era mais rápida! Pensando bem, esta forma de escrita lembra muito os quipus dos antigos incas, que registravam suas informações em nós espaçados em seus registros de fios.

Eu e meu equivalente macroscópico desenvolvemos um canal de comunicação enzimático: ele também é capaz de me escrever mensagens codificadas em soluções de enzimas, e assim mantemos um contato constante. Lento, mas bastante eficiente. É atravez dele que chega até vocês esta minha narrativa. Ele está radiante com o sucesso do experimento. Somos a mesma pessoa? Difícil dizer isto. Diria que não. Quer dizer, somos os mesmos até o momento da cópia do cérebro. Temos as mesmas lembranças, convicções de vários gêneros foram copiadas... Mas a partir daí cada um seguiu independente. Gostamos de nos imaginar como irmãos gêmeos cuja separação ocorreu bem depois do nível de blástulas! É uma boa explicação, e a idéia nos deixa confortáveis.

A sociedade micro-humana se desenvolve a passos gigantes! (descumpem o trocadilho inusitado, hehehe!!) O mundo macroscópico de 100 bilhões de habitantes já se tornou insustentável, apesar te todas as técnicas de produção de alimentos, saúde e construções disponíveis na atualidade! Empolgados com o bom resultado das experiências recentes, muitos mesmo estão dispostos a transferir suas mentes para seres microscópicos, com um mundo de espaço ilimitado esperando gente nova. Longevidade? O conceito atual mudou radicalmente! De fato, os seres microscópicos duram uns 6 anos atualmente, na melhor das hipóteses. Mas podemos realizar mitose, lembram-se? E a nanoduplicação do cérebro quantico já está bem desenvolvida hoje em dia. Ok, vivemos no máximo uns 6 anos no mesmo corpo microscópico, mas... por que precisamos nos prender a ele? Quando chega a hora, podemos simplesmente nos dividir, e criar duas cópias novas em folha de nós mesmos, com todas as memórias e habilidades preservadas. Isto sim é que é ser eterno!  Talvez não seja nem um poouco parecido com a forma que sempre sonhamos, mas o fato é que nós, finalmente, descobrimos uma maneira de vencer a morte! Na forma de micróbios!



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