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20/09/2011

TANATUS

Mil e uma foram as maneiras que imaginei para começar meu relato, mas sendo a maioria delas uma forma de tentar suavizar o fato, embutir nele um eufemismo que não faz parte de minha personalidade, decidi ser honesto e autêntico, e começar a história com o fato curto e grosso que é a maneira com que estou acostumado a lidar com tudo: eu estou morto! Como sei disso? Bom, existem inúmeros indícios facilmente identificáveis de que alguém está morto. Eu não tenho pulso, por exemplo! Acho que faz uns quinze dias que meu coração não bate mais... não, acho que um pouco mais! Também não respiro, a não ser quando preciso falar com alguém. É uma necessidade, nosso aparelho fonador precisa que uma certa quantidade de ar seja inspirada para dentro dos pulmões para que possam ser vibradas as cordas vocais na expiração, modulando assim nossas vozes. Mas é esta a única situação em que conscientemente "respiro": quando quero falar! Normalmente não sinto falta do oxigênio. Comer? Bem, a um bom tempo também parei de sentir fome...

O que me faz estar aqui escrevendo para vocês então? Estou certo de que, ao contrário do Brás Cubas de Machado de Assis, eu não sou um autor-defunto nem um defunto-autor. De certa forma, ainda estou “vivo”, entre aspas... Acordo todos os dias, vou trabalhar, volto... Como? Realmente não sei, mas o faço. Ainda não contei isto para ninguém. Mas pensando bem, como eu contaria? Você acha mesmo que seria tão simples assim? Tente imaginar a cena: certo dia apareço em casa e digo “Oi mulher! Oi filho, oi filha! Tenho uma novidade para contar a vocês: papai morreu!” Por favor! Vocês não acham que eu vou levar a sério tal possibilidade, não é? Não sei como vou revelar isto, mas, definitivamente, não vai ser assim!|!

Com o tempo vai ficando cada vez mais difícil esconder o fato. Tem o cheiro, por exemplo! Eu mesmo já perdi o olfato há muito tempo, mas as pessoas comentam! Estou tentando disfarçar, usando bons perfumes... mas o cheiro de carniça já está ficando indisfarçável! Se eu pudesse fazer alguma coisa para resolver isto... Mas não posso! Que querem que eu faça? Eu morri! Nada posso fazer quanto à decomposição da minha carne!

Estou ainda tentando entender o que aconteceu comigo. O que é a morte? Morre-se de uma hora para a outra? Nunca aceitei isto totalmente. Sempre me foi estranha esta singularidade: agora você existe, e agora não, você deixou de existir. É assim mesmo? Bom, ninguém voltou ainda para contar como é. E por experiência própria, estou aqui afirmando que não é assim que acontece! O normal seria todos os seres vivos morrerem “aos poucos”.  Esta fatalidade inquestionável é artificial: seu organismo é programado a tentar “acelerar” as coisas, mandar um aviso geral de “parar tudo!” Para te proteger de maiores sofrimentos? Pode ser... Talvez exista uma enzima "tanatus" enviada ao seu corpo todo, avisando a cada uma de suas células que o organismo principal morreu, e que portanto também elas devem para imediatamente! Mas isto pode falhar, e no meu caso, isto definitivamente NÃO FUNCIONOU! Meu corpo não recebeu nenhum aviso do tipo “parar tudo”, e eu continuei tentando funcionar “normalmente” mesmo depois de já ter morrido.

Do que morri? Eis aí mais uma pergunta difícil de responder! Não foi uma morte violenta, não lembro de ter sido atropelado, levado um tiro, caído e batido a cabeça na guia da calçada... Enfarte, derrame, ou doença de qualquer tipo? Difícil, sempre me cuidei tão bem! Acredito que tive a sorte de muitos e morri dormindo, mas definitivamente não consigo lembrar quando foi. O normal é que, quando você morre dormindo, não acorde mais. Mas, como expliquei antes, este mecanismo de proteção parece ter falhado no meu caso. Não sei exatamente quando aconteceu, mas nalgum dia entre três ou duas semanas atrás morri dormindo e acordei normalmente, sem me dar conta do acontecido. Quando percebi que eu não mais respirava? Realmente não sei, simplesmente chegou um dia em que me dei conta disso: "caramba, estou horas sem respirar!" E isto não me causava incômodo algum! Foi quando comecei a desconfiar do que havia acontecido.

Sim, parar de respirar foi muito mais fácil de perceber do que parar de comer. Você come quando tem fome, não é? Para que procurar comida quando não sente a menor necessidade dela? Foi por isso que não havia percebido que já estava a mais de dez dias sem comer nada, sem achar estranho o fato do meu estômago ainda não ter reclamado disto. Mas respirar... é tão natural que nem percebemos que o fazemos! Mas quando percebi que havia parado de fazer isto, fiquei realmente apavorado!

Apesar de tudo, a vida continuava correndo normalmente para mim. "Vida"? "Normalmente"? Sim, vendo do ponto de vista atual, fica estranho mesmo eu estar usando tais termos. Morto, eu continuava "vivendo"? Não sei explicar... Talvez apenas respondendo a estímulos externos como robô, acordando na hora programada, tentando interagir com as pessoas, mas... vivo? Faltava algo sim, embora eu não saiba explicar o quê. Vontade? Pode ser. Sei lá, parece que eu só estava reagindo aos estímulos externos. Acho que se eles cessassem, eu pararia de reagir, e definitivamente morreria como acontece com qualquer pessoa normal. Mas como se isolar de estimulos externos numa megametrópole? Eis meu atual dilema....

Sim, procurei um médico logo que percebi que havia parado de respirar. Ele começou medindo minha pressão... inexistente! Contou minha pulsação... inexistente! Mediu minha temperatura... temperatura ambiente! Me olhou incrédulo, e nem precisava falar nada para eu saber o que se passava em sua mente: "Cara, você está morto!" Grande novidade seria... Eu não estava querendo saber o óbvio, o que eu queria era uma explicação! Lógico que eu morri, qualquer idiota é capaz de verificar! Mas por que continuo andando, acordando todo dia e trabalhando, e mais... por que continuo procurando médicos como você para constatar um fato que eu já sei? O que me faz, morto, ficar vagando de um lado para outro ao invés de estar repousando debaixo da terra, confortávelmente vestido em meu "paletó de madeira"?

Lembro de algumas histórias fantásticas que li em vida, de alquimistas descobrindo a fórmula da imortalidade, ou de pessoas fazendo pactos demoníacos para conseguir vida eterna... enquecendo-se de também pedir juventude eterna. Nestas histórias, as pessoas continuavam vagando como cadáveres sem nunca conseguir o repouso eterno. Afinal, elas haviam pedido VIDA eterna, e não JUVENTUDE eterna: elas envelheceriam, deteriorariam, apodreceriam, mas continuariam VIVAS! Não é o meu caso! Nem acredito nessas coisas, e é certo que nunca fiz um pacto com o demônio para viver para sempre. O que aconteceu comigo foi um acidente natural, mas... como eu resolveria isto?

Penso em sumir do mapa. Acontece tantas vezes, não é? Definitivamente, não tenho a mínima idéia de como contar a meus amigos e familiares que morri, mas que apesar disto continuo "vivendo". Um desaparecimento talvez seja menos traumático do que tentar revelar esta realidade sobrenatural. Sobrenatural? Caros, acredito do fundo de minha alma que uma hora isto vai parar! Já mencionei meu desagradável odor de carniça, não é mesmo? Eu próprio não o sinto: meu olfato se foi a tempos, mas não tenho motivo algum para duvidar de meus amigos. Eu ESTOU apodrecendo, deteriorando, vejo isto em minha pele! Tal deterioração vai acabar chegando à minha massa encefálica, e acredito (na verdade, desejo isto muito!) que isto me fará parar de existir. Mas não quero testemunhas disso, pois tenho certeza que será desagradável! Eu mesmo já não me importo: percebi que entre tantas outras características dos seres vivos, já se foi tembém meu instinto de autopreservação. Já não faço mais questão de estar vivo, que por sinal já é uma situação que abandonei a algumas semanas. Mas se puder evitar que isto seja presenciado por alguém, farei de tudo para que assim seja!

Escrevo agora estas linhas finais com os movimentos que ainda restam em meus dedos. Minhas pernas pararam de se mover a algumas horas (os membros inferiores são afetados mais rapidamente pela estagnação do sangue!). Sinto finalmente a paralisia se espalhando por meus músculos mortos. Medo? Não sinto nenhum. Medo de quê? Já morri, o pior que poderia acontecer já aconteceu! Escrevo isto para os que encontrarem meu corpo deteriorado neste hotel barato daqui a... quanto tempo? Como saber? Só quero deixar isto por escrito explicando o porquê eu desapareci, e mais ainda desresponsabilizando de qualquer forma qualquer pessoa pela minha morte. Nada de mais aconteceu, eu só demorei um pouco mais que o normal para perceber que estava morto! Felizmente sinto que, apesar de toda a proteção da caixa craniana, meu sistema nervoso finalmente está deteriorando. Que alívio! Normalmente o corpo produziria as enzimas "tanatus" para acelerar tal processo e torná-lo menos doloroso. Mas antes tarde do que nunca! Sinto que finalmente está chegando minha hora de me entregar ao sono eterno, recompensa de todo ser vivente do planeta depois de cumprir seu papel no mundo dos vivos.

Por hora, simplesmente adeus!


*** FIM ***

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