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27/09/2011

Barreira de Vácuo - Final


      Calvin definitivamente gostava de público! Poderia ser um astro do rock, na verdade inúmeras vezes sonhou com isto! Mas percebeu rápido não possuir nenhuma vocação musical para concretizar tal devaneio, e resolveu então se sobressair naquilo em que realmente tinha certeza de que era muito bom: física teórica! Olhando toda aquela gente em volta, e os equipamentos preparados para o experimento, pensou: "nem tão teórica assim..."
     
      Ele não era tolo, havia repetido o experimento inúmeras vezes e SABIA que daria certo! Primeiro com matéria inanimada, depois com frutas, vermes, insetos... E agora, a prova final! Estudantes, professores, doutores... todos atentos, aguardando ansiosos as explicações do astro principal!
     
      - Senhoras, senhores, senhoritas... A demonstração que vocês estão prestes a presenciar aqui vai revolucionar de uma vez a exploração do universo pelo ser humano. Vai abrir as portar do cosmos para a raça humana!

      Susan chega apressada ao anfiteatro. Não poderia de forma alguma perder aquele evento! A apresentação formal do acelerador instantâneo de Calvin, aquela idéia que ela própria havia presenciado nascer... Não se perdoaria se perdesse isto! Mas estava muito preocupada: não havia encontrado Gigio, sua cobaia favorita!
     
      - Há muito tempo este limite parece nos atormentar: a velocidade da luz!
     
      Percebe-se uma comoção geral.
     
      - Mas estamos enxergando o problema do ângulo errado: este não é o verdadeiro limite!
     
      Silêncio geral.
     
      - Na verdade, uma conseqüência valiosa quando se chega próximo a esta barreira é a dilatação do tempo! Quer dizer, viajando próximo da velocidade da luz uma nave se dirigindo a Alfa Centauri demoraria sim, inquestionavelmente, no MÍNIMO uns 4,2 anos para chegar até lá. Mas isto do NOSSO ponto de vista! Dos que ficaram aqui na terra observando a viagem! Para os tripulantes da nave, seria possível acelerá-la a uma velocidade tão gigantesca a ponto de sentirem até que a viagem durou dias, horas, minutos, segundos... ou foi até instantânea! Quem pode afirmar qual o limite?
     
      Um murmúrio começa a se elevar entre a multidão. Calvin se sente um astro de rock aclamado pelos seus fãs.

      - O problema todo não está em se chegar à velocidade da luz, mas em COMO se chegar. Por mais que aperfeiçoássemos nossos propulsores, sempre estávamos limitados aos fatídicos 9,8 m/s^2 de aceleração! Temos hoje capacidade de acelerar naves a 99,987% da velocidade da luz em segundos, mas estamos limitados a nos arrastarmos pelo universo como lesmas por causa da maldita INÉRCIA!!
     
      Uma comoção geral começa a se espalhar pelos espectadores. Muitos esperançosos, outros incrédulos, se perguntando: "certo, sabemos disso tudo! E o que este maluco tem a oferecer?"
     
      - Apresento aqui a vocês meu Acelerador Instantâneo Não-Inercial!
     
      Uma vozinha tenta se elevar entre o murmurinho geral.
     
      - Anti-inercial? Isto não existe!!
     
      - Quem disse "anti-inercial", ilustríssimo energúmeno? Eu disse "não-inercial"!! Não preciso ir contra algo que não existe. Não preciso ser "anti" alguma coisa que não é...
     
      Calvin retira a toalha de cima de um objeto cúbico.
     
      - GIGIO!! - berra Susan.
     
      - O que vou demonstrar aqui, ao vivo, é um dispositivo capaz de levar esta ilustre cobaia a um laboratório 1500 quilômetros daqui em frações de segundos, transmitir de lá por teleconferência a sua chegada ileso e depois trazê-lo de volta na mesma fração de segundo, intacto! Nem um único pelo do rato vai sair do lugar durante a viagem. Aceleração instantânea, meus caros! Sem inércia!
     
      O ódio que Susan agora sentia de Calvin era indescritível! Rato?? Era isto mesmo que ele havia dito? Com tantas cobaias para fazer a demonstração pública, para satisfazer sua inflamada vaidade... por quê logo o Gigio?? Estava claro que era uma provocação!
     
      - Em quinze segundos nosso bravo Gigio fará uma viagem de 1500 quilômetros por um tubo reto abaixo do fundo do mar, um antigo acelerador linear já desativado, e chegará num laboratório da Inglaterra em milésimos de segundo. Sem mágica, sem teletransporte, ele simplesmente será ACELERADO até lá! O veremos intacto e o traremos de volta tão rápido quanto se foi!
     
      - Calvin! Vou te matar!
     
      Muito antes de Susan terminar de pronunciar sua ameaça, um vídeo da faculdade de Londres mostrava pelo telão o Gigio intacto em sua gaiola como se nada tivesse acontecido.
     
      - Aceleração instantânea, meus caros! Mil e quinhentos quilômetros percorridos numa fração de segundos!
     
      Tão rápido quanto se foi, a cobaia voltou. Susan já havia pulado no palco improvisado onde Calvin apresentava seu espetáculo, inexplicavelmente furando a barreira de seguranças forçudos. Tira Gigio de sua gaiola, intacto, e dá um sonoro tabefe na cara de Calvin:
     
      - Nunca mais faça isto, idiota!
     
      Tal era o estado de graça em que Calvin se encontrava que o tapa sonoro nem foi percebido por ele. Agora se sentia Deus, autor de um milagre impossível, absorvendo a adoração de fiéis daqui e de 1500 quilômetros de distância, ainda incapazes de entender ao certo o que haviam acabado de presenciar.
     
      Mas enfim saiu de seu transe. Olhou bem para Susan. Confessou:
     
      - Eu também gosto do Gigio, Susan! Só fiz isto porque tinha CERTEZA ABSOLUTA de que daria certo!
     
      Susan olha para Calvin, para Gigio intacto na palma da sua mão, para a platéia toda ovacionando o ator principal. Sim, ele era brilhante! Estava no melhor momento de sua vida. Que problema haveria? Susan achou que era o melhor momento de revelar publicamente. Mas afinal, revelar o quê? A maioria dos que estavam lá já sabiam, ou desconfiavam. O dia de glória de Calvin foi fechado com um beijo de Susan digno de filmes de Hollywood.
     
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      - Gata, não sei se é uma boa idéia você ir...
     
      Gata??? Que linguajar era este? De que século da idade média ele havia tirado esta expressão?

     
      - Afinal, você acredita ou não que seu acelerador funciona?
     
      - Sim, acredito! Mas para tão longe...
     
      - Vou para a Lua, dou um tchauzinho para o povo daqui, e volto! O que pode dar errado?
     
      - É longe demais!
     
      - 300 quilômetros, 300 mil... qual a diferença? Ao invés de um nanosegundo, vai levar um milisegundo. O que pode dar errado em um milisegundo?
     
      "Muita coisa!", Calvin pensou. Mas ao mesmo tempo, não podia deixar de admirar a coragem de Susan colocando-se ela mesma como cobaia!
     
      - Mas sem provisões, cilindros adicionais de oxigênio...
     
      - Querido, vou ficar 5 segundos na Lua, depois volto!
     
      - E se algo der errado?
     
      - Estarei a 500 metros de uma base permanente, saberei chegar lá. Mas... relaxa! Nada vai dar errado!
     
      Calvin sabia que era uma vingança dela. Na primeira experiência ele colocara Gigio, sem que ela soubesse, em risco. Ela queria dar o troco, e para isso se colocava ela própria em risco! Era diferente, será que ela não entendia? Bom, a tempos Calvin já havia desistido de tentar entender a cabeça das mulheres...
     
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      Se a intenção de Susan era se vingar, fazer Calvin sentir um pouco do que ela havia sentido naquela primeira experiência... definitivamente ela havia conseguido! A pequena cápsula estava pronta para a aceleração instantânea rumo à base humana permanente na Lua. Viu Susan entrar na cápsula. Confiava no sucesso da experiência, mas... por que Susan? Era um risco desnecessário! Nem era justo: ele de fato não havia colocado Gigio em risco, pois experimentara antes com cenouras, maçãs, minhocas, relógios, grilos, aranhas, baratas... não havia por que não funcionar com Gigio. Mas mandar um humano logo de cara a uma viagem instantânea até a Lua? Por que não testar antes com cachorros, chipanzés... ?
     
      Seria a primeira experiência de um ser orgânico a uma velocidade tão próxima à da luz. A velocidade de 99,995% da luz seria atingida em milisegundos, a uma altitude de 100 quilômetros já livre de atmosfera. A aceleração seria interrompida neste exato ponto (algo nunca tentado antes) e a cápsula prosseguiria nesta velocidade até estar aos mesmos 100 quilômetros de distância da Lua, quando seria desacelerada na mesma intensidade. A estadia de Susan lá, correndo tudo como o planejado, seria breve, e imediatamente ela faria o caminho inverso. Tudo bem planejado, mas o coração de Calvin parecia querer saltar de seu peito.
     
      - 10, 9, 8, 7...
     
      Pensou: "por que esta insistência irritante na contagem regressiva?"
     
      - 4, 3, 2, 1, avante!!
     
      Ela não foi longe. A 10 quilômetros de altitude, a cápsula e tudo o que havia dentro dela, inclusive sua tripulante, se pulverizou numa chuva de átomos...
     
      - Susan!!! - Calvin berrava irracional, sabendo que ela não era mais capaz de ouvi-lo.
     
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      Ela havia assumido todo o risco, de forma que não daria para culpar Calvin de nada. Mas ele se sentia culpado! Sua culpa era ter passado aquela falsa segurança. Falsa? Sim, agora estava claro para ele o que havia dado errado. Por que ele não vira isto antes?

      - Cara, meus pêsames! Nem sei o que te dizer...
     
      - Burro! Burro! Estava na cara! Só daria certo enquanto fosse testado aqui!
     
      Ninguém ousava invadir sua dor.
     
      - A maçã podre, ela era deslocada rápido demais! As moscas não conseguiam acompanhá-la!
     
      Maçã podre? Moscas? Pobre coitado, a dor da perda o havia enlouquecido...
     
      - Mas enquanto ficasse aqui, imerso na atmosfera, sempre haveriam outras moscas sobrando em volta! Não precisavam ser as mesmas, contanto que outras estivessem sempre disponíveis para ocupar as órbitas das antigas, vocês entendem? Mas no espaço... é diferente!
     
      - Calvin, se acalme! Ninguém teve culpa disso!
     
      - Foi toda minha, cara! Como pude esquecer disso?
     
      Nada havia a ser dito para amenizar aquela fatalidade. Por hora, o melhor era deixar Calvin extravasar.
     
      - No vácuo é diferente! Eu desloco os núcleos, mas não existe elétrons lá para compensar os que foram deixados para trás, entendem? É vácuo, não existe NADA lá!! Antes os átomos estavam próximos formando moléculas, os núcleos podiam permanecer próximos uns dos outros porque havia uma nuvem de carga negativa neutralizando tudo. Mas se eu desloco só os núcleos, deixando os elétrons para trás, já não tenho equilíbrio! Tenho um aglomerado de núcleos positivos próximos demais sem uma nuvem eletrônica contrabalançando as cargas. Eles vão se repelir! Se pulverizar em núcleos individuais. Cargas iguais! Positivo com positivo se repele, gente!! Foi isso que vimos! Ah, minha pobre Susan...

      As lágrimas rolavam abundantes da face de Calvin quando ele ouve a voz tão familiar:

      - E você acreditou mesmo que eu ia entrar naquela sua geringonça??
     
      Nunca em sua vida Calvin apreciou tanto estar errado!! Apertou Susan em seus braços, ressurgida dos mortos, mais forte do que imaginava ser capaz de fazê-lo. Quase a mata “de novo” outra vez, agora por asfixia.
     
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      - Querido, eu sabia que faltava alguma coisa, mas não conseguia imaginar o quê.
     
      - E quis se vingar, não é? Isso foi baixo, Susan! Muito baixo...
     
      Gigio se exercitava em sua roda. Ele buscava a gravidade 3g sempre, de qualquer jeito! Não se sentia mais bem sendo leve...
     
      - Então, de volta às pesquisas em hipergravidade, não é? Sem esta maluquice de acelerador instantâneo.

      Idéias ainda fervilhavam na cabeça de Calvin.
     
      - Uma barreira de vácuo? Quem poderia imaginar isto? Podemos nos mover instantaneamente para qualquer lugar no planeta, mas se tentarmos atravessar uma região de vácuo, que teoricamente seria a de menor obstáculo imaginável, estamos condenados a fracassar. Não pode ser assim! Tem de haver uma saída...
     
      Susan vê em Calvin aquele olhar perdido, fixo em nada. Ela começa a tremer.
     
      - Calvin! Pare já, o que quer que você esteja pensando!
     
      Era inútil. Calvin simplesmente não podia controlar estes "transes".
     
      - Qual era mesmo o maior problema? Cargas positivas próximas demais, sem nuvem eletrônica negativa contrabalançando-as... Deve existir um jeito de resolver isto!
     
      Susan percebe que o marido já não está mais neste mundo. Inútil interferir.
     
      - E se... Sim, pode dar certo!  E se carregássemos os nêutrons com cargas negativas só por um instante? Pelo menos enquanto durasse a viagem interestelar, e podemos acelerar tanto a nave a ponto de reduzir qualquer viagem de centenas de anos-luz a nanosegundos de duração para seus tripulantes! Tudo depende do quão próximos cheguemos da velocidade da luz!
     
      - Calvin, você está começando a me assustar de novo! Pare agora mesmo com isto!!
     
      - Imagina só, Susan, se pudermos colocar cargas negativas nos nêutrons apenas durante os nanosegundos em que durarem as viagens, e retirarmos deles esta carga assim que chegarmos ao destino. Mesmo sem nuvem eletrônica, o núcleo permanece com carga elétrica neutra durante a viagem! Não vai se repelir e pulverizar atomicamente no vácuo! E chegando ao destino, após novamente neutralizarmos as cargas dos nêutrons, certamente existirão elétrons na região destino para completar as nuvens eletrônicas!
     
      Rapidamente Susan abre a gaiola, retira a cobaia de sua roda e corre até a porta do laboratório:
     
      - Calvin, este é meu último aviso: nem ouse colocar cargas negativas nos nêutrons do Gigio!!!!
     
      *** FIM ***

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