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27/09/2011

Barreira de Vácuo - parte 1


      Quando a sonda Argos retornou de sua viagem de ida e volta ao sistema Alfa Centauri, 35 longos anos após sua partida, pouca coisa havia evoluído na tecnologia das viagens espaciais. Susan e Calvin ainda eram crianças quando a sonda começou a viagem. Gigio, então, nem pensava em existir. Foram 15 anos de ida, 5 de pesquisas no sistema, e 15 de volta. Na verdade esta volta nem era necessária, visto que muito antes, 4 anos depois da sonda chegar ao sistema, já eram recebidos na Terra os primeiros sinais eletromagnéticos enviados por ela. O único valor de investir na volta da sonda era a sensação de ter em mãos um troféu, um artefato construído pelo ser humano que foi capaz de chegar a outro sistema estelar e voltar de lá. Mas como dito antes, as viagens espaciais haviam mudado muito pouco desde então.
     
      A sonda não poderia chegar ao sistema vizinho usando dobras espaciais, numa velocidade hiperfotônica? Lamento dizer que não, isto ainda não passa de pura ficção científica. A velocidade da luz ainda é um limite que não havia sido quebrado, e a opinião de grande parte dos estudiosos era de que isto nunca aconteceria mesmo. Mas por que então não enviar a sonda na velocidade da luz, ou bem próximo dela? Isto sim já era possível, porém inviável. Para que qualquer coisa atinja a velocidade da luz, precisa ser acelerada até ela pelos propulsores, e é aí que está o grande problema! Não um problema técnico (a tecnologia atual já permite impulsionar corpos a acelerações inimagináveis), mas um problema prático.
     
      Todos já devem ter vivido esta experiência: você está num veículo parado, que de repente começa a acelerar com constância. Você não sente um peso adicional na direção contrária ao movimento? É natural, o veículo precisa te empurrar para que seu corpo também adquira esta aceleração que o veículo recebeu dos propulsores. O grande problema é saber quanto deste "peso" adicional você é capaz de suportar. De fato nada impedia que astronautas dentro de um veículo interestelar fossem submetidos a uma aceleração absurda capaz de colocá-los próximos à velocidade da luz em questão de horas. Mas infelizmente o que chegaria ao destino não seriam os astronautas, e sim uma panqueca de astronautas esparramada pelo chão da nave...
     
      O ser humano não suportaria por muito tempo uma aceleração maior que os 9,8 metros por segundos ao quadrado à qual ele foi adaptado pela evolução. Por melhor que fossem os propulsores, nunca poderiam acelerar mais que isto se quiséssemos que os passageiros da nave chegassem com saúde ao seu destino. Só que um objeto submetido a tal aceleração vai demorar, e muito, para se aproximar da velocidade da luz! Os 15 anos de ida e volta foi o melhor que se pode conseguir para que os robustos equipamentos automáticos da Argos chegassem com segurança. Isto se considerando também que, para a "bala" não passar voando pelo seu alvo, precisariam ser no máximo 7 anos e meio acelerando e outros 7 e meio desacelerando. Sim, desta vez nem mesmo chegaram a arranhar a velocidade da luz, apesar de atingirem uma velocidade nunca antes conseguida por qualquer coisa construída pelo homem. Por isso a Argos só estava retornando agora ao nosso Sistema Solar, 35 anos depois, embora Alfa Centauri estivesse a pouco mais de 4 anos-luz de distância.

      Susan desliga o centrifugador, depois de nosso pequeno herói Gigio ter sobrevivido bravamente durante 2 semanas a uma pseudo-gravidade de 3g.
     
      - Calma, pequeno herói! Já vamos te tirar daí.
     
      Poderia se dizer que o pequeno roedor de pelos brancos até se sentia desconfortável com a sua diminuição de peso. Há tempos ele era submetido a tais testes de gravidade aumentada, uma tentativa de compreender quais seriam as reações do organismo humano submetido há muito tempo a gravidades superiores à de seu planeta.
     
      - Não vejo em que isto ajudaria, Susan. - como sempre, Calvin tentava polemizar. - Digamos que seja possível condicionar astronautas a suportarem uma viagem pesando três vezes o seu normal... De que adiantaria isto? A 29,4 metros/segundos-quadrados ainda levaria muito tempo para acelerar uma nave até perto da velocidade da luz. Sendo que os propulsores de antimatéria atuais podem chegar a tão mais que isso... Parece um desperdício não usar seu potencial máximo.
     
      Susan já estava acostumada com as divagações de seu colega físico, e não perdeu tempo em responder. Apenas aguardou que ele prosseguisse com seu monólogo.
     
      - Sempre me perguntei: por que sentimos esta pressão sobre o banco quando o veículo é acelerado?
     
      - Transmissão de força por contato, oras bolas! Qualquer calouro de física sabe disso... - ela abre a gaiola e começa a acariciar o pequeno hamster.
     
      - Mas existe outra forma de transmitir aceleração! Ninguém enxerga isso?
     
      Susan suspirou de tédio: "Ah não! Lá vem a velha ladainha do campo gravitacional induzido..."
     
      - Você não sente peso quando está em queda livre, não é mesmo? E, ainda assim, você está acelerando! Qual a diferença entre isto e colocar um propulsor nas costas?
     
      Susan sabia que Calvin não esperava resposta alguma, que era só uma pergunta retórica. Mas respondeu, queria ver desta vez para onde isto levava.

      - Em queda livre o corpo está sendo acelerado pelo campo gravitacional! Essa é a diferença.
     
      - Sim, ao invés de um propulsor estar pressionando suas costas, que por sua vez vai empurrar o resto do corpo junto com ela dando esta sensação de peso, dentro do campo gravitacional cada átomo de seu corpo acelera junto. Não existem forças de tensão, um átomo não precisa propagar sua aceleração aos próximos, que já estão à mesma velocidade, empurrados pelo campo gravitacional.
     
      - E...?
     
      - Se pudéssemos induzir um intenso campo gravitacional local na direção que quisermos, poderíamos conseguir estas tais acelerações instantâneas sem o inconveniente destas forças de compressão.
     
      - Tá certo, Einstein... E como é que você pretende criar este "indutor de campo gravitacional"?
     
      - Há alguns séculos já existem indutores de campo elétrico. Placas paralelas eletricamente carregadas criando um campo elétrico entre elas...
     
      - E o equivalente gravitacional disto? Como é que você criaria placas "gravitacionalmente" carregadas? Isto não existe! Calvin, seria muito mais produtivo você investir na pesquisa de dobras hiperfotônicas do que em indutores gravitacionais. - ironizou Susan.
     
      - Tudo é impossível até alguém mostrar que é possível...
     
      - Esquece, até os indutores de campo elétrico são, no fundo, uma trapaça: você não cria campo elétrico nenhum! Tudo que se faz é, digamos assim, "comprimir" uma quantidade de carga elétrica numa concentração acima da normal. O campo elétrico que você parece ter criado na verdade é o resultado da grande quantidade de carga elétrica que você apertou numa área pequena, é só a soma da carga que já existia em cada partícula.
     
      Os olhos de Calvin já estavam com aquele ar bem conhecido, olhando para nada, perdido em pensamentos. Susan admirava Calvin, era um físico teórico brilhante. Só a irritava esta insistência dele em insistir nos assuntos mais polêmicos, teorias já aceitas por todos como absurdas.
     
      - Você não pensa em comprimir "cargas gravitacionais", não é mesmo? Um buraco-negro portátil? É nisso que você está pensando?
     
      De repente Calvin parece sair de seu "transe".
     
      - Não, óbvio que não pretendo compactar cargas gravitacionais. Não por enquanto... Mas esta idéia de campo elétrico até que não é má...
     
      - Que maluquice você está bolando agora, hein Calvin?
     
      - Sim, pra que insistir no campo gravitacional, se ainda não existe tecnologia para isto? Não preciso dele, tudo o que preciso é de um CAMPO, qualquer campo, capaz de me proporcionar aceleração sem inércia. Até um campo magnético daria conta do recado.
     
      - Campo magnético é só campo elétrico variável, Calvin. No fundo são a mesma coisa.
     
      - Tá, tá, sei disso... - se irritou com a interrupção.
     
      O roedor comia satisfeito a ração nas mãos de Susan. Uma bela cobaia, bem musculosa! Era necessário, para suportar a gravidade excedente a que era sempre submetido. Mas até o momento, Gigio havia se saído muito bem!
     
      - Mas você tem razão, Susan: por que insistir no campo gravitacional?
     
      - EU falei isso? Quando?
     
      Calvin afastou esta interrupção. Talvez ela tenha falado, talvez não... Tanto faz! Ele só não podia perder agora a linha de pensamento.
     
      - O que o campo gravitacional atrai, no fundo? Prótons, nêutrons e elétrons, não é mesmo?
     
      - Também fótons, bósons, mésons, neutrinos...
     
      - Deixe estas aberrações para lá, que só existem dentro dos aceleradores de partículas! Quero saber do mundo real, das coisas que realmente seria interessante transportar!
     
      Susan estranhou muito tal comentário de um físico. Mas como começava a ficar curiosa com o rumo que tomava esta conversa, evitou interromper.
     
      - O fato é que a atração gravitacional é ridícula perto daquela proporcionada por campos elétricos. E se pudéssemos acelerar uma nave de forma não-inercial induzindo um campo elétrico à sua frente?
     
      - A nave não poderia ser neutra. E seus pobres ocupantes morreriam eletrocutados...
     
      - Pôxa, Susan!! Como você pensa pequeno!!!
     
      Ela fingiu não se afetar com a crítica. Estava realmente interessada em descobrir aonde aquela conversa levaria.
     
      - Pensemos então: onde está a maior parte da matéria que queremos acelerar? Nos núcleos dos átomos, é claro! Podemos induzir um campo elétrico gigantesco atraindo assim, como um todo, todos os prótons da nave, astronauta e equipamento que desejamos acelerar.
     
      - E os nêutrons?
     
      - Oras bolas, eles estão grudados ao próton pela força nuclear. Para os efeitos que desejamos, podemos imaginar o núcleo atômico como uma partícula compacta de carga igual à soma das cargas dos prótons e massa igual à soma das massas dos núcleons (prótons e nêutrons).
     
       - Entendi! - por breves momentos Susan vislumbrou a genialidade de Calvin; mas foram bem breves mesmo, pois logo a seguir ela se deu conta do absurdo que o "gênio" havia ignorado. - Certo, e os elétrons, hein sabichão? Vai atrair o núcleo com uma carga negativa intensa, mas como pretende atrair a nuvem de elétrons usando esta mesma carga negativa? Negativo com negativo não se repelem? Responde esta, sabido!
       
       - Três palavrinhas para você, Susan: CAMPO ELÉTRICO SELETIVO...
       
       - Calvin, nem me venha com histórias. Nunca ouvi falar disso, não tente inventar coisas só para não dar o braço a torcer. É só admitir que teve uma idéia absurda, que mal há nisso?
       
       - Não estou inventando nada! Você está por dentro da idéia dos campos unificados, não é? Que apesar de não sabermos como, força elétrica, gravitacional e nucleares forte e fraca estão conectadas, são todas faces da mesma moeda.
       
       "Moedas tem duas faces, imbecil! Quatro faces é um tetraedro!", foi o que Susan pensou em dizer. Felizmente conseguiu se segurar.
       
       - Por coincidência, estou pesquisando isto atualmente. Vou resumir, pois você não entenderia os detalhes...
       
       "Está me chamando de burra??" Mais uma vez ela engoliu em seco, pois estava interessada na conclusão daquilo. E sabia que qualquer contrariedade faria Calvin se aborrecer e sair do laboratório imediatamente.
       
       - O fato é que podemos modular um campo elétrico para que ele só atue em cargas de uma massa específica. Quer dizer, em teoria posso criar um campo que atraia os prótons sem repelir os elétrons, que possuem uma massa bem menor. É um dos elos que buscávamos entre a gravidade e o eletromagnetismo...
       
       - Mas se você atrai só o núcleo, como fica a nuvem eletrônica?
       
       - Imagine uma maçã podre com uma nuvem de moscas varejeiras orbitando em torno dela...
       
       ÉCA!! Que metáfora mais escatológica!!
       
       - Por que não uma estrela rodeada pelos planetas de seu sistema?
       
       - Susan, a idéia é minha! Então posso usar a metáfora que eu quiser para explicá-la!! Voltemos então: imagine que o núcleo do átomo é uma maçã podre e os elétrons são moscas girando em torno dela...
       
       Ela jogou a toalha. Sabia que era inútil discutir por uma besteira tão grande como escolher a metáfora mais adequada para uma explicação científica.
       
       - O que aconteceria se eu movesse a maçã podre do seu lugar original?
       
       - A nuvem de moscas a seguiria, é lógico...
       
       - Está aí então a sua explicação! Apesar de não afetados pelo campo elétrico, os elétrons serão atraídos pelo núcleo ao "perceberem" que ele se moveu.
       
       - Tá... E isto não seria equivalente ao empurrão do propulsor nas costas do astronauta? A nuvem eletrônica não reagiria a uma inércia ao tentar acompanhar o núcleo?
       
       Calvin emburrou momentaneamente ao ser contrariado. Por breves segundos, pensou em sair correndo pela porta do laboratório, mas... Não! Havia um detalhe que Susan não havia pensado! Abriu um largo sorriso, e disse enfim:

      - Qual a massa de um elétron, Susan? Em relação ao próton, quero dizer?
     
      - Você sabe bem que não guardo essas coisas na cabeça, que minha área é mais a biologia. Mas sei sim, acho que um milésimo, ou pouco mais...
     
      - Isso, uns mil, mil e tantos elétrons para se igualar ao peso de um próton. Quantos elétrons existem num átomo? Em média, quero dizer.

      - Sei lá, Calvin! Algumas centenas, talvez?
     
      - Que exagero! Tá que seja! Então a soma da massa de todos os elétrons da camada eletrônica de um átomo seria equivalente ao de um décimo de um próton. Mas quantos prótons teria um átomo neutro de uma centena de elétrons? Algumas centenas também, para neutralizar as cargas! E quantos nêutrons? Em média, mais ou menos a mesma grandeza! Simplificando-se que as massas do nêutron e do próton são as mesmas, teremos uma massa deslocada não inercialmente de 200 prótons contra uma névoa pesando um décimo de prótons que não foi deslocada. Acha que sentiríamos tal pressão?
     
      Susan desistiu de argumentar. Apenas falou:
     
      - Você está levando a sério mesmo esta idéia? Vai tentar colocar isto em prática?
     
      - Pode apostar que sim!
     
      Ela olhou para Calvin. Conhecia bem o colega de trabalho! Bem o suficiente para ter certeza de que ele estava falando sério!
     
     
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(continua...)

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