Quando a sonda
Argos retornou de sua viagem de ida e volta ao sistema Alfa Centauri, 35 longos
anos após sua partida, pouca coisa havia evoluído na tecnologia das viagens
espaciais. Susan e Calvin ainda eram crianças quando a sonda começou a viagem.
Gigio, então, nem pensava em
existir. Foram 15 anos de ida, 5 de pesquisas no sistema, e
15 de volta. Na verdade esta volta nem era necessária, visto que muito antes, 4
anos depois da sonda chegar ao sistema, já eram recebidos na Terra os primeiros
sinais eletromagnéticos enviados por ela. O único valor de investir na volta da
sonda era a sensação de ter em mãos um troféu, um artefato construído pelo ser
humano que foi capaz de chegar a outro sistema estelar e voltar de lá. Mas como
dito antes, as viagens espaciais haviam mudado muito pouco desde então.
A sonda não
poderia chegar ao sistema vizinho usando dobras espaciais, numa velocidade
hiperfotônica? Lamento dizer que não, isto ainda não passa de pura ficção
científica. A velocidade da luz ainda é um limite que não havia sido quebrado,
e a opinião de grande parte dos estudiosos era de que isto nunca aconteceria
mesmo. Mas por que então não enviar a sonda na velocidade da luz, ou bem
próximo dela? Isto sim já era possível, porém inviável. Para que qualquer coisa
atinja a velocidade da luz, precisa ser acelerada até ela pelos propulsores, e
é aí que está o grande problema! Não um problema técnico (a tecnologia atual já
permite impulsionar corpos a acelerações inimagináveis), mas um problema
prático.
Todos já devem
ter vivido esta experiência: você está num veículo parado, que de repente
começa a acelerar com constância. Você não sente um peso adicional na direção
contrária ao movimento? É natural, o veículo precisa te empurrar para que seu
corpo também adquira esta aceleração que o veículo recebeu dos propulsores. O
grande problema é saber quanto deste "peso" adicional você é capaz de
suportar. De fato nada impedia que astronautas dentro de um veículo
interestelar fossem submetidos a uma aceleração absurda capaz de colocá-los
próximos à velocidade da luz em questão de horas. Mas infelizmente o que
chegaria ao destino não seriam os astronautas, e sim uma panqueca de
astronautas esparramada pelo chão da nave...
O ser humano não
suportaria por muito tempo uma aceleração maior que os 9,8 metros por segundos
ao quadrado à qual ele foi adaptado pela evolução. Por melhor que fossem os
propulsores, nunca poderiam acelerar mais que isto se quiséssemos que os
passageiros da nave chegassem com saúde ao seu destino. Só que um objeto
submetido a tal aceleração vai demorar, e muito, para se aproximar da
velocidade da luz! Os 15 anos de ida e volta foi o melhor que se pode conseguir
para que os robustos equipamentos automáticos da Argos chegassem com segurança.
Isto se considerando também que, para a "bala" não passar voando pelo
seu alvo, precisariam ser no máximo 7 anos e meio acelerando e outros 7 e meio
desacelerando. Sim, desta vez nem mesmo chegaram a arranhar a velocidade da
luz, apesar de atingirem uma velocidade nunca antes conseguida por qualquer
coisa construída pelo homem. Por isso a Argos só estava retornando agora ao
nosso Sistema Solar, 35 anos depois, embora Alfa Centauri estivesse a pouco
mais de 4 anos-luz de distância.
Susan desliga
o centrifugador, depois de nosso pequeno herói Gigio ter sobrevivido bravamente
durante 2 semanas a uma pseudo-gravidade de 3g.
- Calma,
pequeno herói! Já vamos te tirar daí.
Poderia se
dizer que o pequeno roedor de pelos brancos até se sentia desconfortável com a
sua diminuição de peso. Há tempos ele era submetido a tais testes de gravidade
aumentada, uma tentativa de compreender quais seriam as reações do organismo
humano submetido há muito tempo a gravidades superiores à de seu planeta.
- Não vejo em
que isto ajudaria, Susan. - como sempre, Calvin tentava polemizar. - Digamos
que seja possível condicionar astronautas a suportarem uma viagem pesando três
vezes o seu normal... De que adiantaria isto? A 29,4 metros/segundos-quadrados
ainda levaria muito tempo para acelerar uma nave até perto da velocidade da
luz. Sendo que os propulsores de antimatéria atuais podem chegar a tão mais que
isso... Parece um desperdício não usar seu potencial máximo.
Susan já
estava acostumada com as divagações de seu colega físico, e não perdeu tempo em responder. Apenas
aguardou que ele prosseguisse com seu monólogo.
- Sempre me
perguntei: por que sentimos esta pressão sobre o banco quando o veículo é
acelerado?
- Transmissão
de força por contato, oras bolas! Qualquer calouro de física sabe disso... -
ela abre a gaiola e começa a acariciar o pequeno hamster.
- Mas existe
outra forma de transmitir aceleração! Ninguém enxerga isso?
Susan suspirou
de tédio: "Ah não! Lá vem a velha ladainha do campo gravitacional
induzido..."
- Você não
sente peso quando está em queda livre, não é mesmo? E, ainda assim, você está
acelerando! Qual a diferença entre isto e colocar um propulsor nas costas?
Susan sabia
que Calvin não esperava resposta alguma, que era só uma pergunta retórica. Mas
respondeu, queria ver desta vez para onde isto levava.
- Em queda
livre o corpo está sendo acelerado pelo campo gravitacional! Essa é a
diferença.
- Sim, ao
invés de um propulsor estar pressionando suas costas, que por sua vez vai
empurrar o resto do corpo junto com ela dando esta sensação de peso, dentro do
campo gravitacional cada átomo de seu corpo acelera junto. Não existem forças
de tensão, um átomo não precisa propagar sua aceleração aos próximos, que já
estão à mesma velocidade, empurrados pelo campo gravitacional.
- E...?
- Se
pudéssemos induzir um intenso campo gravitacional local na direção que
quisermos, poderíamos conseguir estas tais acelerações instantâneas sem o
inconveniente destas forças de compressão.
- Tá certo,
Einstein... E como é que você pretende criar este "indutor de campo
gravitacional"?
- Há alguns
séculos já existem indutores de campo elétrico. Placas paralelas eletricamente
carregadas criando um campo elétrico entre elas...
- E o
equivalente gravitacional disto? Como é que você criaria placas
"gravitacionalmente" carregadas? Isto não existe! Calvin, seria muito
mais produtivo você investir na pesquisa de dobras hiperfotônicas do que em
indutores gravitacionais. - ironizou Susan.
- Tudo é
impossível até alguém mostrar que é possível...
- Esquece, até
os indutores de campo elétrico são, no fundo, uma trapaça: você não cria campo
elétrico nenhum! Tudo que se faz é, digamos assim, "comprimir" uma
quantidade de carga elétrica numa concentração acima da normal. O campo
elétrico que você parece ter criado na verdade é o resultado da grande
quantidade de carga elétrica que você apertou numa área pequena, é só a soma da
carga que já existia em cada partícula.
Os olhos de
Calvin já estavam com aquele ar bem conhecido, olhando para nada, perdido em pensamentos. Susan
admirava Calvin, era um físico teórico brilhante. Só a irritava esta
insistência dele em insistir nos assuntos mais polêmicos, teorias já aceitas
por todos como absurdas.
- Você não
pensa em comprimir "cargas gravitacionais", não é mesmo? Um
buraco-negro portátil? É nisso que você está pensando?
De repente
Calvin parece sair de seu "transe".
- Não, óbvio
que não pretendo compactar cargas gravitacionais. Não por enquanto... Mas esta
idéia de campo elétrico até que não é má...
- Que
maluquice você está bolando agora, hein Calvin?
- Sim, pra que
insistir no campo gravitacional, se ainda não existe tecnologia para isto? Não
preciso dele, tudo o que preciso é de um CAMPO, qualquer campo, capaz de me
proporcionar aceleração sem inércia. Até um campo magnético daria conta do
recado.
- Campo
magnético é só campo elétrico variável, Calvin. No fundo são a mesma coisa.
- Tá, tá, sei
disso... - se irritou com a interrupção.
O roedor comia
satisfeito a ração nas mãos de Susan. Uma bela cobaia, bem musculosa! Era
necessário, para suportar a gravidade excedente a que era sempre submetido. Mas
até o momento, Gigio havia se saído muito bem!
- Mas você tem
razão, Susan: por que insistir no campo gravitacional?
- EU falei
isso? Quando?
Calvin afastou
esta interrupção. Talvez ela tenha falado, talvez não... Tanto faz! Ele só não
podia perder agora a linha de pensamento.
- O que o
campo gravitacional atrai, no fundo? Prótons, nêutrons e elétrons, não é mesmo?
- Também
fótons, bósons, mésons, neutrinos...
- Deixe estas
aberrações para lá, que só existem dentro dos aceleradores de partículas! Quero
saber do mundo real, das coisas que realmente seria interessante transportar!
Susan
estranhou muito tal comentário de um físico. Mas como começava a ficar curiosa
com o rumo que tomava esta conversa, evitou interromper.
- O fato é que
a atração gravitacional é ridícula perto daquela proporcionada por campos
elétricos. E se pudéssemos acelerar uma nave de forma não-inercial induzindo um
campo elétrico à sua frente?
- A nave não
poderia ser neutra. E seus pobres ocupantes morreriam eletrocutados...
- Pôxa,
Susan!! Como você pensa pequeno!!!
Ela fingiu não
se afetar com a crítica. Estava realmente interessada em descobrir aonde aquela
conversa levaria.
- Pensemos
então: onde está a maior parte da matéria que queremos acelerar? Nos núcleos
dos átomos, é claro! Podemos induzir um campo elétrico gigantesco atraindo
assim, como um todo, todos os prótons da nave, astronauta e equipamento que
desejamos acelerar.
- E os
nêutrons?
- Oras bolas,
eles estão grudados ao próton pela força nuclear. Para os efeitos que
desejamos, podemos imaginar o núcleo atômico como uma partícula compacta de
carga igual à soma das cargas dos prótons e massa igual à soma das massas dos
núcleons (prótons e nêutrons).
- Entendi! - por breves momentos Susan
vislumbrou a genialidade de Calvin; mas foram bem breves mesmo, pois logo a
seguir ela se deu conta do absurdo que o "gênio" havia ignorado. -
Certo, e os elétrons, hein sabichão? Vai atrair o núcleo com uma carga negativa
intensa, mas como pretende atrair a nuvem de elétrons usando esta mesma carga
negativa? Negativo com negativo não se repelem? Responde esta, sabido!
- Três palavrinhas para você, Susan: CAMPO
ELÉTRICO SELETIVO...
- Calvin, nem me venha com histórias. Nunca
ouvi falar disso, não tente inventar coisas só para não dar o braço a torcer. É
só admitir que teve uma idéia absurda, que mal há nisso?
- Não estou inventando nada! Você está por
dentro da idéia dos campos unificados, não é? Que apesar de não sabermos como,
força elétrica, gravitacional e nucleares forte e fraca estão conectadas, são
todas faces da mesma moeda.
"Moedas tem duas faces, imbecil! Quatro
faces é um tetraedro!", foi o que Susan pensou em dizer. Felizmente
conseguiu se segurar.
- Por coincidência, estou pesquisando isto
atualmente. Vou resumir, pois você não entenderia os detalhes...
"Está me chamando de burra??" Mais
uma vez ela engoliu em seco, pois estava interessada na conclusão daquilo. E
sabia que qualquer contrariedade faria Calvin se aborrecer e sair do
laboratório imediatamente.
- O fato é que podemos modular um campo
elétrico para que ele só atue em cargas de uma massa específica. Quer dizer, em
teoria posso criar um campo que atraia os prótons sem repelir os elétrons, que
possuem uma massa bem menor. É um dos elos que buscávamos entre a gravidade e o
eletromagnetismo...
- Mas se você atrai só o núcleo, como fica a
nuvem eletrônica?
- Imagine uma maçã podre com uma nuvem de
moscas varejeiras orbitando em torno dela...
ÉCA!! Que metáfora mais escatológica!!
- Por que não uma estrela rodeada pelos
planetas de seu sistema?
- Susan, a idéia é minha! Então posso usar a
metáfora que eu quiser para explicá-la!! Voltemos então: imagine que o núcleo
do átomo é uma maçã podre e os elétrons são moscas girando em torno dela...
Ela jogou a toalha. Sabia que era inútil
discutir por uma besteira tão grande como escolher a metáfora mais adequada
para uma explicação científica.
- O que aconteceria se eu movesse a maçã podre
do seu lugar original?
- A nuvem de moscas a seguiria, é lógico...
- Está aí então a sua explicação! Apesar de
não afetados pelo campo elétrico, os elétrons serão atraídos pelo núcleo ao
"perceberem" que ele se moveu.
- Tá... E isto não seria equivalente ao
empurrão do propulsor nas costas do astronauta? A nuvem eletrônica não reagiria
a uma inércia ao tentar acompanhar o núcleo?
Calvin emburrou momentaneamente ao ser
contrariado. Por breves segundos, pensou em sair correndo pela porta do
laboratório, mas... Não! Havia um detalhe que Susan não havia pensado! Abriu um
largo sorriso, e disse enfim:
- Qual a massa
de um elétron, Susan? Em relação ao próton, quero dizer?
- Você sabe
bem que não guardo essas coisas na cabeça, que minha área é mais a biologia.
Mas sei sim, acho que um milésimo, ou pouco mais...
- Isso, uns
mil, mil e tantos elétrons para se igualar ao peso de um próton. Quantos elétrons
existem num átomo? Em média, quero dizer.
- Sei lá,
Calvin! Algumas centenas, talvez?
- Que exagero!
Tá que seja! Então a soma da massa de todos os elétrons da camada eletrônica de
um átomo seria equivalente ao de um décimo de um próton. Mas quantos prótons
teria um átomo neutro de uma centena de elétrons? Algumas centenas também, para
neutralizar as cargas! E quantos nêutrons? Em média, mais ou menos a mesma
grandeza! Simplificando-se que as massas do nêutron e do próton são as mesmas,
teremos uma massa deslocada não inercialmente de 200 prótons contra uma névoa
pesando um décimo de prótons que não foi deslocada. Acha que sentiríamos tal
pressão?
Susan desistiu
de argumentar. Apenas falou:
- Você está
levando a sério mesmo esta idéia? Vai tentar colocar isto em prática?
- Pode apostar
que sim!
Ela olhou para
Calvin. Conhecia bem o colega de trabalho! Bem o suficiente para ter certeza de
que ele estava falando sério!
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