Pesquisar este blog

28/09/2011

Jardins Numéricos



( Homenagem a John Nash. Se o texto parece, de alguma forma, ridicularizá-lo, MIL PERDÕES: definitivamente a intenção não foi esta! O que tentei foi mostrar o que pode existir de tão interessante nos números e suas propriedades. Talvez enxergando-os com outras características inusitadas, sinestésicas, isto fique mais fácil... )

---------------------------------

      Ele cultivava números. Algarismos balançavam com leveza ao sabor do vento, cada dígito concatenado ao seguinte para formar um número completo. Seus preferidos sempre foram os da base decimal, embora gostasse particularmente da complexidade de uns poucos hexadecimais e da simplicidade singela de alguns binários, crescendo numa cadência lógica de zeros e uns. Mas grande parte dos números que cultivava crescia na boa e velha base decimal...
     
      O número (357^29367 - 29^3221) era o que cultivava com mais atenção atualmente. Era um híbrido promissor, uma combinação aritmética de quatro outros números igualmente interessantes. Havia uma suspeita de primalidade, de que fosse indivisível, e isto o levava a despender mais tempo de cálculo com ele do que com os demais números de seu jardim numérico. Via seus dígitos se revelando dia após dia, alimentados pelos seus cálculos, mas já havia aprendido a ser paciente. O número surgiria com o tempo, aos poucos sua beleza apareceria em toda completude e complexidade. Vislumbrou os algarismos mais significativos, fatorou-os, dissecando assim suas notas aromáticas. Sim! Era bem parecido com os fatores centrais do (25783! - 2^35)! Um dos números de melhor aroma que ele havia cultivado até agora! Seria este superior em riqueza de fatores primos? Não se realmente fosse primo, o que seria ainda melhor!
     
      Mas logicamente não eram estes números gigantescos os únicos que ele apreciava. Gostava dos mais simples também! Mas particularmente dos ímpares! Os pares possuíam um odor adocicado que, agradável em poucas doses, se tornava enjoativo em excesso. Apreciava a simplicidade do 2, por exemplo, sua pureza de cheiro adocicado. Ainda mais por ser o único número par que era primo! O número 65536, por exemplo, lhe causava náuseas de tão adocicado. Multiplique a doçura do 2 por ele mesmo, dezesseis vezes! Além disso, uma potência de 16? O número 2 multiplicado por ele mesmo 4 vezes? E, pior, 4 vezes, um número também doce, dois vezes dois? Eram pares demais para qualquer um suportar, este definitivamente era um número que nunca faria parte do seu Jardim Numérico!
     
      Após passar algum tempo calculando o (357^29367 - 29^3221), interrompeu e começou a calcular outros números em desenvolvimento no seu jardim. Sim, não era justo gastar tempo de cálculo demais com este, apesar de já estar claro que era seu predileto. Os números eram ciumentos! Especialmente os números primos, ou os que mesmo não sendo apresentavam características muito fortes de sê-los! De fato tinham razão para isto: eram mesmo especiais! Aroma forte, indivisível! Impossível dissecar seu cheiro em notas mais simples! De fato grande parte dos números que ele cultivava eram primos, mas haviam poucos outros interessantes, alguns até mesmo pares, que ele fazia questão de manter em seu jardim por outros motivos...

      Apesar de ser uma das formas mais importantes, fatorar as notas aromáticas de um número não é a única maneira de apreciá-lo. Seqüências numéricas cuja soma reproduzia os próprios números da seqüência concatenados em ordem crescente: como não admirar este tipo de coisa? O problema é que, além de raros (ou exatamente POR ESTE MOTIVO) exigiam mais tempo de cálculo para se desenvolverem do que os demais. Como trevos de quatro folhas exigindo ser regados por litros e mais litros de água para crescerem viçosos! Não valia a pena procurá-los, mas quando de deparava com essas raridades por acaso a surpresa sempre era agradável!
     
      Palíndromos também o interessavam particularmente! Bem, um palíndromo qualquer é algo muito fácil de se conseguir: tome qualquer número do jardim, concatene com o reverso de seus dígitos, e eis aí seu palíndromo! O que ele buscava eram palíndromos com características especiais. Palíndromos primos, por exemplo. O 101 era seu xodó, primeiro representante desta família especial. Lógico que se desconsiderarmos os primos de um único dígito, que também são palíndromos: 2, 3, 5 e 7. O 11 é simples demais, não conta. E todos os outros palíndromos de 2 dígitos são divisíveis por 11, por motivos óbvios... Mas o 101!!! Este número tinha um lugar especial entre os seus preferidos! Mas que dizer então do 1.111.111.111.111.111.111 ? Representado em decimal, lógico! Palíndromo, primo, e formado apenas de dígito um. Como não apreciar a beleza deste número que crescia imponente em seu jardim ?
     
      Começava a entrar na parte dos números triangulares de seu jardim, quando vê ao longe os dois odiosos homens de avental branco:
     
      - Nash, é hora de tomar seu remédio!
     
      Bem agora que ele distribuiria tempo de cálculo a seus números piramidais? A fragrância incomparável de dizimas periódicas binárias com representação exata em sistema decimal impregnavam suas narinas quando ele engoliu as pílulas amarelas das mãos dos enfermeiros. Não adiantava mais só fingir que as engolia e cuspir depois, os enfermeiros já haviam descoberto esta sua trapaça.
     
      - Que caderno é este que ele está...
     
      Nash berra insano quando o enfermeiro novato tenta puxar suas anotações, preenchidas com infindáveis seqüências de dígitos.
     
      - Calma aí, novato! Não precisa tira isto dele, é inofensivo!
     
      - O que é?
     
      - Ele diz que é seu "jardim". Vai entender esses malucos...
     
      Nash abraça com força seu jardim numérico contra o peito.
     
      - Quem era este infeliz?
     
      - Respeito, novato! Qualquer um está sujeito a isso! Dizem que, quando são, era um matemático brilhante! Ninguém sabe ainda como este tipo de distúrbio começa...
     
      As pílulas começam a fazer efeito. Nash até já começava a apreciar esses momentos, colocava-o em contato mais direto com seu mundo de números! Nestes momentos ele podia, além de sentir o cheiro, também tocar e ver as cores dos números que cultivava tão zelosamente! Abriu seu jardim na página do (357^29367 - 29^3221)... Que pena! Estava claro agora que não tinha nem a cor nem a textura de um número primo. Mas parecia ter outras características inéditas, ainda valia a pena regá-lo com mais tempo de cálculo para ver como se desenvolveria!

      - Para mim, qualquer um que goste de matemática definitivamente não pode mesmo ser normal...
     
      Fecharam a porta do quarto de John Nash, abandonado em seus delírios. Sentou-se na cama, a página de seu jardim aberto no 1.111.111.111.111.111.111 ... Que belo primo!!! Que aroma, que simetria... E que cores impressionantes tinham seus milhares!!!
     
            * FIM *

27/09/2011

Barreira de Vácuo - Final


      Calvin definitivamente gostava de público! Poderia ser um astro do rock, na verdade inúmeras vezes sonhou com isto! Mas percebeu rápido não possuir nenhuma vocação musical para concretizar tal devaneio, e resolveu então se sobressair naquilo em que realmente tinha certeza de que era muito bom: física teórica! Olhando toda aquela gente em volta, e os equipamentos preparados para o experimento, pensou: "nem tão teórica assim..."
     
      Ele não era tolo, havia repetido o experimento inúmeras vezes e SABIA que daria certo! Primeiro com matéria inanimada, depois com frutas, vermes, insetos... E agora, a prova final! Estudantes, professores, doutores... todos atentos, aguardando ansiosos as explicações do astro principal!
     
      - Senhoras, senhores, senhoritas... A demonstração que vocês estão prestes a presenciar aqui vai revolucionar de uma vez a exploração do universo pelo ser humano. Vai abrir as portar do cosmos para a raça humana!

      Susan chega apressada ao anfiteatro. Não poderia de forma alguma perder aquele evento! A apresentação formal do acelerador instantâneo de Calvin, aquela idéia que ela própria havia presenciado nascer... Não se perdoaria se perdesse isto! Mas estava muito preocupada: não havia encontrado Gigio, sua cobaia favorita!
     
      - Há muito tempo este limite parece nos atormentar: a velocidade da luz!
     
      Percebe-se uma comoção geral.
     
      - Mas estamos enxergando o problema do ângulo errado: este não é o verdadeiro limite!
     
      Silêncio geral.
     
      - Na verdade, uma conseqüência valiosa quando se chega próximo a esta barreira é a dilatação do tempo! Quer dizer, viajando próximo da velocidade da luz uma nave se dirigindo a Alfa Centauri demoraria sim, inquestionavelmente, no MÍNIMO uns 4,2 anos para chegar até lá. Mas isto do NOSSO ponto de vista! Dos que ficaram aqui na terra observando a viagem! Para os tripulantes da nave, seria possível acelerá-la a uma velocidade tão gigantesca a ponto de sentirem até que a viagem durou dias, horas, minutos, segundos... ou foi até instantânea! Quem pode afirmar qual o limite?
     
      Um murmúrio começa a se elevar entre a multidão. Calvin se sente um astro de rock aclamado pelos seus fãs.

      - O problema todo não está em se chegar à velocidade da luz, mas em COMO se chegar. Por mais que aperfeiçoássemos nossos propulsores, sempre estávamos limitados aos fatídicos 9,8 m/s^2 de aceleração! Temos hoje capacidade de acelerar naves a 99,987% da velocidade da luz em segundos, mas estamos limitados a nos arrastarmos pelo universo como lesmas por causa da maldita INÉRCIA!!
     
      Uma comoção geral começa a se espalhar pelos espectadores. Muitos esperançosos, outros incrédulos, se perguntando: "certo, sabemos disso tudo! E o que este maluco tem a oferecer?"
     
      - Apresento aqui a vocês meu Acelerador Instantâneo Não-Inercial!
     
      Uma vozinha tenta se elevar entre o murmurinho geral.
     
      - Anti-inercial? Isto não existe!!
     
      - Quem disse "anti-inercial", ilustríssimo energúmeno? Eu disse "não-inercial"!! Não preciso ir contra algo que não existe. Não preciso ser "anti" alguma coisa que não é...
     
      Calvin retira a toalha de cima de um objeto cúbico.
     
      - GIGIO!! - berra Susan.
     
      - O que vou demonstrar aqui, ao vivo, é um dispositivo capaz de levar esta ilustre cobaia a um laboratório 1500 quilômetros daqui em frações de segundos, transmitir de lá por teleconferência a sua chegada ileso e depois trazê-lo de volta na mesma fração de segundo, intacto! Nem um único pelo do rato vai sair do lugar durante a viagem. Aceleração instantânea, meus caros! Sem inércia!
     
      O ódio que Susan agora sentia de Calvin era indescritível! Rato?? Era isto mesmo que ele havia dito? Com tantas cobaias para fazer a demonstração pública, para satisfazer sua inflamada vaidade... por quê logo o Gigio?? Estava claro que era uma provocação!
     
      - Em quinze segundos nosso bravo Gigio fará uma viagem de 1500 quilômetros por um tubo reto abaixo do fundo do mar, um antigo acelerador linear já desativado, e chegará num laboratório da Inglaterra em milésimos de segundo. Sem mágica, sem teletransporte, ele simplesmente será ACELERADO até lá! O veremos intacto e o traremos de volta tão rápido quanto se foi!
     
      - Calvin! Vou te matar!
     
      Muito antes de Susan terminar de pronunciar sua ameaça, um vídeo da faculdade de Londres mostrava pelo telão o Gigio intacto em sua gaiola como se nada tivesse acontecido.
     
      - Aceleração instantânea, meus caros! Mil e quinhentos quilômetros percorridos numa fração de segundos!
     
      Tão rápido quanto se foi, a cobaia voltou. Susan já havia pulado no palco improvisado onde Calvin apresentava seu espetáculo, inexplicavelmente furando a barreira de seguranças forçudos. Tira Gigio de sua gaiola, intacto, e dá um sonoro tabefe na cara de Calvin:
     
      - Nunca mais faça isto, idiota!
     
      Tal era o estado de graça em que Calvin se encontrava que o tapa sonoro nem foi percebido por ele. Agora se sentia Deus, autor de um milagre impossível, absorvendo a adoração de fiéis daqui e de 1500 quilômetros de distância, ainda incapazes de entender ao certo o que haviam acabado de presenciar.
     
      Mas enfim saiu de seu transe. Olhou bem para Susan. Confessou:
     
      - Eu também gosto do Gigio, Susan! Só fiz isto porque tinha CERTEZA ABSOLUTA de que daria certo!
     
      Susan olha para Calvin, para Gigio intacto na palma da sua mão, para a platéia toda ovacionando o ator principal. Sim, ele era brilhante! Estava no melhor momento de sua vida. Que problema haveria? Susan achou que era o melhor momento de revelar publicamente. Mas afinal, revelar o quê? A maioria dos que estavam lá já sabiam, ou desconfiavam. O dia de glória de Calvin foi fechado com um beijo de Susan digno de filmes de Hollywood.
     
      ----------------------------------------------------------
     
      - Gata, não sei se é uma boa idéia você ir...
     
      Gata??? Que linguajar era este? De que século da idade média ele havia tirado esta expressão?

     
      - Afinal, você acredita ou não que seu acelerador funciona?
     
      - Sim, acredito! Mas para tão longe...
     
      - Vou para a Lua, dou um tchauzinho para o povo daqui, e volto! O que pode dar errado?
     
      - É longe demais!
     
      - 300 quilômetros, 300 mil... qual a diferença? Ao invés de um nanosegundo, vai levar um milisegundo. O que pode dar errado em um milisegundo?
     
      "Muita coisa!", Calvin pensou. Mas ao mesmo tempo, não podia deixar de admirar a coragem de Susan colocando-se ela mesma como cobaia!
     
      - Mas sem provisões, cilindros adicionais de oxigênio...
     
      - Querido, vou ficar 5 segundos na Lua, depois volto!
     
      - E se algo der errado?
     
      - Estarei a 500 metros de uma base permanente, saberei chegar lá. Mas... relaxa! Nada vai dar errado!
     
      Calvin sabia que era uma vingança dela. Na primeira experiência ele colocara Gigio, sem que ela soubesse, em risco. Ela queria dar o troco, e para isso se colocava ela própria em risco! Era diferente, será que ela não entendia? Bom, a tempos Calvin já havia desistido de tentar entender a cabeça das mulheres...
     
      -------------------------------------------------------
     
      Se a intenção de Susan era se vingar, fazer Calvin sentir um pouco do que ela havia sentido naquela primeira experiência... definitivamente ela havia conseguido! A pequena cápsula estava pronta para a aceleração instantânea rumo à base humana permanente na Lua. Viu Susan entrar na cápsula. Confiava no sucesso da experiência, mas... por que Susan? Era um risco desnecessário! Nem era justo: ele de fato não havia colocado Gigio em risco, pois experimentara antes com cenouras, maçãs, minhocas, relógios, grilos, aranhas, baratas... não havia por que não funcionar com Gigio. Mas mandar um humano logo de cara a uma viagem instantânea até a Lua? Por que não testar antes com cachorros, chipanzés... ?
     
      Seria a primeira experiência de um ser orgânico a uma velocidade tão próxima à da luz. A velocidade de 99,995% da luz seria atingida em milisegundos, a uma altitude de 100 quilômetros já livre de atmosfera. A aceleração seria interrompida neste exato ponto (algo nunca tentado antes) e a cápsula prosseguiria nesta velocidade até estar aos mesmos 100 quilômetros de distância da Lua, quando seria desacelerada na mesma intensidade. A estadia de Susan lá, correndo tudo como o planejado, seria breve, e imediatamente ela faria o caminho inverso. Tudo bem planejado, mas o coração de Calvin parecia querer saltar de seu peito.
     
      - 10, 9, 8, 7...
     
      Pensou: "por que esta insistência irritante na contagem regressiva?"
     
      - 4, 3, 2, 1, avante!!
     
      Ela não foi longe. A 10 quilômetros de altitude, a cápsula e tudo o que havia dentro dela, inclusive sua tripulante, se pulverizou numa chuva de átomos...
     
      - Susan!!! - Calvin berrava irracional, sabendo que ela não era mais capaz de ouvi-lo.
     
      ------------------------------------------
     
      Ela havia assumido todo o risco, de forma que não daria para culpar Calvin de nada. Mas ele se sentia culpado! Sua culpa era ter passado aquela falsa segurança. Falsa? Sim, agora estava claro para ele o que havia dado errado. Por que ele não vira isto antes?

      - Cara, meus pêsames! Nem sei o que te dizer...
     
      - Burro! Burro! Estava na cara! Só daria certo enquanto fosse testado aqui!
     
      Ninguém ousava invadir sua dor.
     
      - A maçã podre, ela era deslocada rápido demais! As moscas não conseguiam acompanhá-la!
     
      Maçã podre? Moscas? Pobre coitado, a dor da perda o havia enlouquecido...
     
      - Mas enquanto ficasse aqui, imerso na atmosfera, sempre haveriam outras moscas sobrando em volta! Não precisavam ser as mesmas, contanto que outras estivessem sempre disponíveis para ocupar as órbitas das antigas, vocês entendem? Mas no espaço... é diferente!
     
      - Calvin, se acalme! Ninguém teve culpa disso!
     
      - Foi toda minha, cara! Como pude esquecer disso?
     
      Nada havia a ser dito para amenizar aquela fatalidade. Por hora, o melhor era deixar Calvin extravasar.
     
      - No vácuo é diferente! Eu desloco os núcleos, mas não existe elétrons lá para compensar os que foram deixados para trás, entendem? É vácuo, não existe NADA lá!! Antes os átomos estavam próximos formando moléculas, os núcleos podiam permanecer próximos uns dos outros porque havia uma nuvem de carga negativa neutralizando tudo. Mas se eu desloco só os núcleos, deixando os elétrons para trás, já não tenho equilíbrio! Tenho um aglomerado de núcleos positivos próximos demais sem uma nuvem eletrônica contrabalançando as cargas. Eles vão se repelir! Se pulverizar em núcleos individuais. Cargas iguais! Positivo com positivo se repele, gente!! Foi isso que vimos! Ah, minha pobre Susan...

      As lágrimas rolavam abundantes da face de Calvin quando ele ouve a voz tão familiar:

      - E você acreditou mesmo que eu ia entrar naquela sua geringonça??
     
      Nunca em sua vida Calvin apreciou tanto estar errado!! Apertou Susan em seus braços, ressurgida dos mortos, mais forte do que imaginava ser capaz de fazê-lo. Quase a mata “de novo” outra vez, agora por asfixia.
     
      ----------------------------------------------
     
      - Querido, eu sabia que faltava alguma coisa, mas não conseguia imaginar o quê.
     
      - E quis se vingar, não é? Isso foi baixo, Susan! Muito baixo...
     
      Gigio se exercitava em sua roda. Ele buscava a gravidade 3g sempre, de qualquer jeito! Não se sentia mais bem sendo leve...
     
      - Então, de volta às pesquisas em hipergravidade, não é? Sem esta maluquice de acelerador instantâneo.

      Idéias ainda fervilhavam na cabeça de Calvin.
     
      - Uma barreira de vácuo? Quem poderia imaginar isto? Podemos nos mover instantaneamente para qualquer lugar no planeta, mas se tentarmos atravessar uma região de vácuo, que teoricamente seria a de menor obstáculo imaginável, estamos condenados a fracassar. Não pode ser assim! Tem de haver uma saída...
     
      Susan vê em Calvin aquele olhar perdido, fixo em nada. Ela começa a tremer.
     
      - Calvin! Pare já, o que quer que você esteja pensando!
     
      Era inútil. Calvin simplesmente não podia controlar estes "transes".
     
      - Qual era mesmo o maior problema? Cargas positivas próximas demais, sem nuvem eletrônica negativa contrabalançando-as... Deve existir um jeito de resolver isto!
     
      Susan percebe que o marido já não está mais neste mundo. Inútil interferir.
     
      - E se... Sim, pode dar certo!  E se carregássemos os nêutrons com cargas negativas só por um instante? Pelo menos enquanto durasse a viagem interestelar, e podemos acelerar tanto a nave a ponto de reduzir qualquer viagem de centenas de anos-luz a nanosegundos de duração para seus tripulantes! Tudo depende do quão próximos cheguemos da velocidade da luz!
     
      - Calvin, você está começando a me assustar de novo! Pare agora mesmo com isto!!
     
      - Imagina só, Susan, se pudermos colocar cargas negativas nos nêutrons apenas durante os nanosegundos em que durarem as viagens, e retirarmos deles esta carga assim que chegarmos ao destino. Mesmo sem nuvem eletrônica, o núcleo permanece com carga elétrica neutra durante a viagem! Não vai se repelir e pulverizar atomicamente no vácuo! E chegando ao destino, após novamente neutralizarmos as cargas dos nêutrons, certamente existirão elétrons na região destino para completar as nuvens eletrônicas!
     
      Rapidamente Susan abre a gaiola, retira a cobaia de sua roda e corre até a porta do laboratório:
     
      - Calvin, este é meu último aviso: nem ouse colocar cargas negativas nos nêutrons do Gigio!!!!
     
      *** FIM ***

Barreira de Vácuo - parte 1


      Quando a sonda Argos retornou de sua viagem de ida e volta ao sistema Alfa Centauri, 35 longos anos após sua partida, pouca coisa havia evoluído na tecnologia das viagens espaciais. Susan e Calvin ainda eram crianças quando a sonda começou a viagem. Gigio, então, nem pensava em existir. Foram 15 anos de ida, 5 de pesquisas no sistema, e 15 de volta. Na verdade esta volta nem era necessária, visto que muito antes, 4 anos depois da sonda chegar ao sistema, já eram recebidos na Terra os primeiros sinais eletromagnéticos enviados por ela. O único valor de investir na volta da sonda era a sensação de ter em mãos um troféu, um artefato construído pelo ser humano que foi capaz de chegar a outro sistema estelar e voltar de lá. Mas como dito antes, as viagens espaciais haviam mudado muito pouco desde então.
     
      A sonda não poderia chegar ao sistema vizinho usando dobras espaciais, numa velocidade hiperfotônica? Lamento dizer que não, isto ainda não passa de pura ficção científica. A velocidade da luz ainda é um limite que não havia sido quebrado, e a opinião de grande parte dos estudiosos era de que isto nunca aconteceria mesmo. Mas por que então não enviar a sonda na velocidade da luz, ou bem próximo dela? Isto sim já era possível, porém inviável. Para que qualquer coisa atinja a velocidade da luz, precisa ser acelerada até ela pelos propulsores, e é aí que está o grande problema! Não um problema técnico (a tecnologia atual já permite impulsionar corpos a acelerações inimagináveis), mas um problema prático.
     
      Todos já devem ter vivido esta experiência: você está num veículo parado, que de repente começa a acelerar com constância. Você não sente um peso adicional na direção contrária ao movimento? É natural, o veículo precisa te empurrar para que seu corpo também adquira esta aceleração que o veículo recebeu dos propulsores. O grande problema é saber quanto deste "peso" adicional você é capaz de suportar. De fato nada impedia que astronautas dentro de um veículo interestelar fossem submetidos a uma aceleração absurda capaz de colocá-los próximos à velocidade da luz em questão de horas. Mas infelizmente o que chegaria ao destino não seriam os astronautas, e sim uma panqueca de astronautas esparramada pelo chão da nave...
     
      O ser humano não suportaria por muito tempo uma aceleração maior que os 9,8 metros por segundos ao quadrado à qual ele foi adaptado pela evolução. Por melhor que fossem os propulsores, nunca poderiam acelerar mais que isto se quiséssemos que os passageiros da nave chegassem com saúde ao seu destino. Só que um objeto submetido a tal aceleração vai demorar, e muito, para se aproximar da velocidade da luz! Os 15 anos de ida e volta foi o melhor que se pode conseguir para que os robustos equipamentos automáticos da Argos chegassem com segurança. Isto se considerando também que, para a "bala" não passar voando pelo seu alvo, precisariam ser no máximo 7 anos e meio acelerando e outros 7 e meio desacelerando. Sim, desta vez nem mesmo chegaram a arranhar a velocidade da luz, apesar de atingirem uma velocidade nunca antes conseguida por qualquer coisa construída pelo homem. Por isso a Argos só estava retornando agora ao nosso Sistema Solar, 35 anos depois, embora Alfa Centauri estivesse a pouco mais de 4 anos-luz de distância.

      Susan desliga o centrifugador, depois de nosso pequeno herói Gigio ter sobrevivido bravamente durante 2 semanas a uma pseudo-gravidade de 3g.
     
      - Calma, pequeno herói! Já vamos te tirar daí.
     
      Poderia se dizer que o pequeno roedor de pelos brancos até se sentia desconfortável com a sua diminuição de peso. Há tempos ele era submetido a tais testes de gravidade aumentada, uma tentativa de compreender quais seriam as reações do organismo humano submetido há muito tempo a gravidades superiores à de seu planeta.
     
      - Não vejo em que isto ajudaria, Susan. - como sempre, Calvin tentava polemizar. - Digamos que seja possível condicionar astronautas a suportarem uma viagem pesando três vezes o seu normal... De que adiantaria isto? A 29,4 metros/segundos-quadrados ainda levaria muito tempo para acelerar uma nave até perto da velocidade da luz. Sendo que os propulsores de antimatéria atuais podem chegar a tão mais que isso... Parece um desperdício não usar seu potencial máximo.
     
      Susan já estava acostumada com as divagações de seu colega físico, e não perdeu tempo em responder. Apenas aguardou que ele prosseguisse com seu monólogo.
     
      - Sempre me perguntei: por que sentimos esta pressão sobre o banco quando o veículo é acelerado?
     
      - Transmissão de força por contato, oras bolas! Qualquer calouro de física sabe disso... - ela abre a gaiola e começa a acariciar o pequeno hamster.
     
      - Mas existe outra forma de transmitir aceleração! Ninguém enxerga isso?
     
      Susan suspirou de tédio: "Ah não! Lá vem a velha ladainha do campo gravitacional induzido..."
     
      - Você não sente peso quando está em queda livre, não é mesmo? E, ainda assim, você está acelerando! Qual a diferença entre isto e colocar um propulsor nas costas?
     
      Susan sabia que Calvin não esperava resposta alguma, que era só uma pergunta retórica. Mas respondeu, queria ver desta vez para onde isto levava.

      - Em queda livre o corpo está sendo acelerado pelo campo gravitacional! Essa é a diferença.
     
      - Sim, ao invés de um propulsor estar pressionando suas costas, que por sua vez vai empurrar o resto do corpo junto com ela dando esta sensação de peso, dentro do campo gravitacional cada átomo de seu corpo acelera junto. Não existem forças de tensão, um átomo não precisa propagar sua aceleração aos próximos, que já estão à mesma velocidade, empurrados pelo campo gravitacional.
     
      - E...?
     
      - Se pudéssemos induzir um intenso campo gravitacional local na direção que quisermos, poderíamos conseguir estas tais acelerações instantâneas sem o inconveniente destas forças de compressão.
     
      - Tá certo, Einstein... E como é que você pretende criar este "indutor de campo gravitacional"?
     
      - Há alguns séculos já existem indutores de campo elétrico. Placas paralelas eletricamente carregadas criando um campo elétrico entre elas...
     
      - E o equivalente gravitacional disto? Como é que você criaria placas "gravitacionalmente" carregadas? Isto não existe! Calvin, seria muito mais produtivo você investir na pesquisa de dobras hiperfotônicas do que em indutores gravitacionais. - ironizou Susan.
     
      - Tudo é impossível até alguém mostrar que é possível...
     
      - Esquece, até os indutores de campo elétrico são, no fundo, uma trapaça: você não cria campo elétrico nenhum! Tudo que se faz é, digamos assim, "comprimir" uma quantidade de carga elétrica numa concentração acima da normal. O campo elétrico que você parece ter criado na verdade é o resultado da grande quantidade de carga elétrica que você apertou numa área pequena, é só a soma da carga que já existia em cada partícula.
     
      Os olhos de Calvin já estavam com aquele ar bem conhecido, olhando para nada, perdido em pensamentos. Susan admirava Calvin, era um físico teórico brilhante. Só a irritava esta insistência dele em insistir nos assuntos mais polêmicos, teorias já aceitas por todos como absurdas.
     
      - Você não pensa em comprimir "cargas gravitacionais", não é mesmo? Um buraco-negro portátil? É nisso que você está pensando?
     
      De repente Calvin parece sair de seu "transe".
     
      - Não, óbvio que não pretendo compactar cargas gravitacionais. Não por enquanto... Mas esta idéia de campo elétrico até que não é má...
     
      - Que maluquice você está bolando agora, hein Calvin?
     
      - Sim, pra que insistir no campo gravitacional, se ainda não existe tecnologia para isto? Não preciso dele, tudo o que preciso é de um CAMPO, qualquer campo, capaz de me proporcionar aceleração sem inércia. Até um campo magnético daria conta do recado.
     
      - Campo magnético é só campo elétrico variável, Calvin. No fundo são a mesma coisa.
     
      - Tá, tá, sei disso... - se irritou com a interrupção.
     
      O roedor comia satisfeito a ração nas mãos de Susan. Uma bela cobaia, bem musculosa! Era necessário, para suportar a gravidade excedente a que era sempre submetido. Mas até o momento, Gigio havia se saído muito bem!
     
      - Mas você tem razão, Susan: por que insistir no campo gravitacional?
     
      - EU falei isso? Quando?
     
      Calvin afastou esta interrupção. Talvez ela tenha falado, talvez não... Tanto faz! Ele só não podia perder agora a linha de pensamento.
     
      - O que o campo gravitacional atrai, no fundo? Prótons, nêutrons e elétrons, não é mesmo?
     
      - Também fótons, bósons, mésons, neutrinos...
     
      - Deixe estas aberrações para lá, que só existem dentro dos aceleradores de partículas! Quero saber do mundo real, das coisas que realmente seria interessante transportar!
     
      Susan estranhou muito tal comentário de um físico. Mas como começava a ficar curiosa com o rumo que tomava esta conversa, evitou interromper.
     
      - O fato é que a atração gravitacional é ridícula perto daquela proporcionada por campos elétricos. E se pudéssemos acelerar uma nave de forma não-inercial induzindo um campo elétrico à sua frente?
     
      - A nave não poderia ser neutra. E seus pobres ocupantes morreriam eletrocutados...
     
      - Pôxa, Susan!! Como você pensa pequeno!!!
     
      Ela fingiu não se afetar com a crítica. Estava realmente interessada em descobrir aonde aquela conversa levaria.
     
      - Pensemos então: onde está a maior parte da matéria que queremos acelerar? Nos núcleos dos átomos, é claro! Podemos induzir um campo elétrico gigantesco atraindo assim, como um todo, todos os prótons da nave, astronauta e equipamento que desejamos acelerar.
     
      - E os nêutrons?
     
      - Oras bolas, eles estão grudados ao próton pela força nuclear. Para os efeitos que desejamos, podemos imaginar o núcleo atômico como uma partícula compacta de carga igual à soma das cargas dos prótons e massa igual à soma das massas dos núcleons (prótons e nêutrons).
     
       - Entendi! - por breves momentos Susan vislumbrou a genialidade de Calvin; mas foram bem breves mesmo, pois logo a seguir ela se deu conta do absurdo que o "gênio" havia ignorado. - Certo, e os elétrons, hein sabichão? Vai atrair o núcleo com uma carga negativa intensa, mas como pretende atrair a nuvem de elétrons usando esta mesma carga negativa? Negativo com negativo não se repelem? Responde esta, sabido!
       
       - Três palavrinhas para você, Susan: CAMPO ELÉTRICO SELETIVO...
       
       - Calvin, nem me venha com histórias. Nunca ouvi falar disso, não tente inventar coisas só para não dar o braço a torcer. É só admitir que teve uma idéia absurda, que mal há nisso?
       
       - Não estou inventando nada! Você está por dentro da idéia dos campos unificados, não é? Que apesar de não sabermos como, força elétrica, gravitacional e nucleares forte e fraca estão conectadas, são todas faces da mesma moeda.
       
       "Moedas tem duas faces, imbecil! Quatro faces é um tetraedro!", foi o que Susan pensou em dizer. Felizmente conseguiu se segurar.
       
       - Por coincidência, estou pesquisando isto atualmente. Vou resumir, pois você não entenderia os detalhes...
       
       "Está me chamando de burra??" Mais uma vez ela engoliu em seco, pois estava interessada na conclusão daquilo. E sabia que qualquer contrariedade faria Calvin se aborrecer e sair do laboratório imediatamente.
       
       - O fato é que podemos modular um campo elétrico para que ele só atue em cargas de uma massa específica. Quer dizer, em teoria posso criar um campo que atraia os prótons sem repelir os elétrons, que possuem uma massa bem menor. É um dos elos que buscávamos entre a gravidade e o eletromagnetismo...
       
       - Mas se você atrai só o núcleo, como fica a nuvem eletrônica?
       
       - Imagine uma maçã podre com uma nuvem de moscas varejeiras orbitando em torno dela...
       
       ÉCA!! Que metáfora mais escatológica!!
       
       - Por que não uma estrela rodeada pelos planetas de seu sistema?
       
       - Susan, a idéia é minha! Então posso usar a metáfora que eu quiser para explicá-la!! Voltemos então: imagine que o núcleo do átomo é uma maçã podre e os elétrons são moscas girando em torno dela...
       
       Ela jogou a toalha. Sabia que era inútil discutir por uma besteira tão grande como escolher a metáfora mais adequada para uma explicação científica.
       
       - O que aconteceria se eu movesse a maçã podre do seu lugar original?
       
       - A nuvem de moscas a seguiria, é lógico...
       
       - Está aí então a sua explicação! Apesar de não afetados pelo campo elétrico, os elétrons serão atraídos pelo núcleo ao "perceberem" que ele se moveu.
       
       - Tá... E isto não seria equivalente ao empurrão do propulsor nas costas do astronauta? A nuvem eletrônica não reagiria a uma inércia ao tentar acompanhar o núcleo?
       
       Calvin emburrou momentaneamente ao ser contrariado. Por breves segundos, pensou em sair correndo pela porta do laboratório, mas... Não! Havia um detalhe que Susan não havia pensado! Abriu um largo sorriso, e disse enfim:

      - Qual a massa de um elétron, Susan? Em relação ao próton, quero dizer?
     
      - Você sabe bem que não guardo essas coisas na cabeça, que minha área é mais a biologia. Mas sei sim, acho que um milésimo, ou pouco mais...
     
      - Isso, uns mil, mil e tantos elétrons para se igualar ao peso de um próton. Quantos elétrons existem num átomo? Em média, quero dizer.

      - Sei lá, Calvin! Algumas centenas, talvez?
     
      - Que exagero! Tá que seja! Então a soma da massa de todos os elétrons da camada eletrônica de um átomo seria equivalente ao de um décimo de um próton. Mas quantos prótons teria um átomo neutro de uma centena de elétrons? Algumas centenas também, para neutralizar as cargas! E quantos nêutrons? Em média, mais ou menos a mesma grandeza! Simplificando-se que as massas do nêutron e do próton são as mesmas, teremos uma massa deslocada não inercialmente de 200 prótons contra uma névoa pesando um décimo de prótons que não foi deslocada. Acha que sentiríamos tal pressão?
     
      Susan desistiu de argumentar. Apenas falou:
     
      - Você está levando a sério mesmo esta idéia? Vai tentar colocar isto em prática?
     
      - Pode apostar que sim!
     
      Ela olhou para Calvin. Conhecia bem o colega de trabalho! Bem o suficiente para ter certeza de que ele estava falando sério!
     
     
      --------------------------------------

(continua...)

25/09/2011

Mundos Ocos


O lago principal brilhava no centro da abóbada, bem acima de sua cabeça. Apesar da distância, ainda era possível vê-lo atrás daquela grossa camada de atmosfera apenas com tons mais levemente azulados. Seis canais caudalosos partiam radialmente deste lago, cada um fazendo com os vizinhos um ângulo de praticamente sessenta graus. Os canais se prolongavam, hora ou outra parcialmente ocultados pela densa vegetação, que era interrompida aqui e ali por pontos mais pálidos de aglomerados humanos, aldeias, vilas, ou cidades maiores. Com certa regularidade também partiam desses canais braços de água mais finos, correndo longitudinalmente para levar o líquido aos aglomerados mais isolados. Aquela distribuição radial dos canais não apenas parecia artificial: era artificial de fato! Também artificial era a presença de poucos morros pouco elevados, espaçados na calota esférica praticamente perfeita que se via à volta. As antigas elevações mais pronunciadas da cavidade foram reduzidas por precaução há algum tempo, numa tentativa de não afetar o delicado equilíbrio do sol central. A tragédia ocorrida na cavidade vizinha, que vitimou centenas de milhares de pessoas, não poderia se repetir!

Os canais continuavam se afastando até atingirem o máximo de SEPARAÇÃO numa região conhecida como "O Cinturão do Círculo Máximo", uma parede inclinada em ângulo reto do ponto de vista de onde ele agora obvervava a cavidade, abarcando com o olhar todo o seu mundo. Após o cinturão, os canais começavam a "descer" e se aproximar cada vez mais, até desembocarem todos no "Lago da Ilha". No centro deste lago, como era de se esperar, havia uma ilha (não me diga!!). Era do centro desta ilha que ele contemplava tudo isto. Estava na cidade de Shangri-Lá, capital daquela cavidade esférica.

Exatamente no meio do caminho entre o chão e o topo da abóbada estava o sol central, girando loucamente e mantendo assim ainda mais seu equilíbrio naquele ponto de equilíbrio instável onde se encontrava. Na cavidade em si não havia muito sentido em se falar de norte ou sul. O fato de todos localizarem a capital no sul e o lago principal no norte se baseava inteiramente no eixo de rotação deste sol, único ponto de referência que poderiam utilizar para utilizar tais coordenadas. Olhando para cima, via-se claramente o pólo sul de seu sol, que parecia girar em sentido horário.

Pólux precisava agora se dirigir ao Círculo Máximo, e tomar lá um dos ascensores até uma cavidade vizinha. Estando numa ilha, deveria tomar um barco? Não necessariamente, só se ele não estivesse com muita pressa. Não era o caso. Tomaria um teleférico, percorrendo a menor distância entre dois pontos: a linha reta! Topologistas da antiguidade não concordariam com isto, e diriam que o correto seria dizer que a menor distância era uma geodésica. Mas eles viviam num mundo diferente, convexo, e incapazes de perfurar o chão para abrir um caminho reto entre dois pontos da esfera de seus mundos, precisavam mesmo se conformar com a geodésica, mais comprida. Mas o mundo de Pólux era diferente, apenas o ar separava dois pontos quaisquer da superfície de sua cavidade. Nada mais natural do que esticar cabos de ligas de carbono entre vários pontos principais de seu mundo. E quanto mais distante, melhor: quanto maior a distância do meio do cabo até o solo, menor a força gravitacional. Mais o percurso perdia seu formato de catenária e se aproximava de uma reta. O único limite exigido era que sempre estivessem a uma distância segura do sol central, e isto ninguém era louco de desrespeitar. Não pelo calor, pois apesar de um pouco maior que no solo, especula-se que seria possível até mesmo tocar este sol sem riscos de queimadura. Evitava-se a aproximação para que em hipótese alguma seu equilíbrio fosse afetado!

Ao entrar no bonde que partia de uma das praias da ilha, começou a pensar. Seu povo já habitava aquele universo fechado a gerações incontáveis! Mesmo as antigas histórias contadas pelos anciões, nas quais Pólux acreditava sem questionar, começavam a chegar à cabeça das gerações mais novas como lendas antigas, sem fundamento científico. Sim, pois não dá para sustentar aquilo que não se pode provar! As leis da gravitação, por exemplo. Lendas antigas diziam que as pessoas viviam na superfície externa de esferas rochosas livres no vácuo, e que a gravitação mantinha estas rochas girando em órbitas estáveis ao redor de estrelas gigantescas. Como assim? Se todos nasciam vendo uma estrela central que deveria ter... Quanto? Quinze quilômetros de raio no máximo? Também diziam as lendas que os humanos da antiguidade viviam num mundo em que se alternavam hora períodos iluminados e hora períodos de trevas, dependendo se sua esfera rochosa, que girava, estava exposta ou não à estrela central. Como assim, período de trevas? O sol se apagava? Pólux até conseguia compreender que isto estava relacionado à rotação do mundo dos antigos, mas a idéia de períodos alternados de luz e trevas era inconcebível para grande parte da população. Isto tinha um nome... Qual era mesmo? Pólux tentou se lembrar. "DIA e NUIT, acho que era isso... só não lembro qual era o claro e qual o escuro..."

Vácuo... Está aí outra lenda antiga que nem Pólux, bastante instruído, conseguia compreender. Como uma região poderia conter "nada"? Nem atmosfera? A tendência do ar não é se expandir? Por que ele ficaria retido numa fina película em torno desses mundos rochosos, cercado de "nada" em toda a sua volta? Ah, claro! A atração gravitacional explicava isto. Uma grande massa de matéria tendia a atrair massas à sua volta, inclusive a atmosfera. Só que no mundo de Pólux esta idéia antiga precisava ser reformulada: era a ausência de matéria que REPELIA outras porções de matéria do seu centro, e por isso tudo permanecia "colado" às paredes da cavidade de seu mundo. No fundo até podiam ser explicações diferentes para o mesmo efeito: matéria atraindo matéria, ou ausência de matéria repelindo matéria. Mas definitivamente, no seu mundo côncavo a segunda idéia era muito mais fácil de aceitar! O sol central só permanecia estático no centro da cavidade porque era igualmente repelido em todas as direções, a força resultante era nula. Mas qualquer empurrão extra poderia fazê-lo despencar em algum lugar da cavidade. Eis o motivo do seu povo ser tão cuidadoso em não interferir no seu equilíbrio!

O teleférico chegou ao Círculo Máximo depois de uma viagem de cerca de duzentos quilômetros. Pólux relembrou com pesar da tragédia da cavidade vizinha, de como foram imprudentes em tentar atingir seu sol central com aeróstatos. Primeiro, desde sempre já se sabia impossível pousar nele: a força centrífuga criada naquela rotação altíssima impediria qualquer tentativa. Aterrissar num dos pólos então? Muito pior! Era o ponto mais sensível às interferências externas, um desequilíbrio total de sua estabilidade! O movimento de precessão se intensificou em minutos com aquele pouso mínimo. O eixo de rotação girou perigosamente em espirais cada vez maiores, como um pião desgovernado, até que deslocou o sol irreversivelmente do centro da cavidade. E haviam as gigantescas cordilheiras nas paredes da cavidade também. Talvez o sol até voltasse ao equilíbrio original se as paredes fossem mais perfeitamente esféricas, mas... O deslocamento do centro coincidiu com a direção de uma das maiores cordilheiras da cavidade. O sol começou a cair, parecia atraído pela massa de montanhas. Haveria então algum fundamento nas antigas histórias sobre atração gravitacional? Tanto faz. Saber disto ou não era irrelevante, a tragédia era irreversível! Todos foram dizimados. Na verdade, ninguém sabe disto, mas se supõe. Isto porque a via natural de comunicação entre as cavidades, uma caverna em meio às antigas rochas de seu universo que ligava as duas cavidades esféricas, foi fechada com a queda do sol. Transmissões quase inaudíveis de rádio atravessando camadas gigantescas de rocha indicavam que talvez houvesse sobreviventes, mas como atingi-los? Como resgatá-los? E, isolados, como sobreviriam naquela cavidade já sem um sol central fornecendo luz e calor? Isto já havia acontecido há quase um século, mas poderia ser esclarecido agora.

Século? Anos, dias, horas? De onde vinha esta estranha contagem de tempo, herança dos antigos que todos seguiam à risca? Bom, as instruções dos antigos para a construção dos pêndulos calibradores eram bem precisas: "Uma massa perfeitamente cúbica de irídio de dois palmos sagrados de lado deve ser presa na ponta de uma corda de comprimento exatamente igual à distância entre o olho esquerdo e a ponta do dedão direito da estátua do ídolo astronauta de platina que está no templo cósmico em Shangri-Lá. Prenda este pêndulo na abóbada central do templo e faça-o oscilar com uma amplitude pequena. Este será vosso Segundo! Sessenta desses serão Minutos, sessenta Minutos uma Hora! Vinte e quatro horas, um Dia. E 365.25 Dias um Ano; cem Anos vocês deverão denominar Séculos." Todos respeitavam, mesmo sem compreender tais números cabalísticos. Por que 60? Provavelmente pela gigantesca quantidade de divisores, a possibilidade de subdividir o tempo minimizando a probabilidade de se defrontar com dízimas. Mas e as 24 horas, ou, mais estranho ainda, 365.25 dias do ano? Os anciãos especulavam que devia ter alguma relação com a rotação e translação dos mundos convexos de onde vinham os que deixaram tais instruções, mas não havia como ter certeza disto.

A tecnologia das perfuratrizes se desenvolveu rápido em questão de décadas! 27 anos agora depois da primeira constatação de uma cavidade satélite. No caso da perfuração de canais entre as cavidades percebeu-se que nem sempre era possível criar um caminho reto. Vez ou outra se defrontavam com uma estranha matéria, de dureza inimaginável, incapaz de ser atravessada pelas brocas de diamante (material abundante no subsolo de seu mundo). No início a necessidade de desvios era freqüente, até que se aperfeiçoassem os sensores gravitacionais. Foi uma revolução, permitia planejar com antecedência uma perfuração reta até as cavidades satélites pela rota mais desobstruída possível, formada por rochas de fácil perfuração como granito ou sílica.

Os satélites descobertos eram sempre de dimensões pequenas. Era tão pouca a ausência de matéria proporcionada por seus raios que a baixa gravidade era característica comum neles. Sol central? Até o momento, nenhum havia sido descoberto em tais satélites minúsculos. Em algum uma leve fosforescência emanava das estranhas plantas que recobriam sua superfície, amenizando um pouco o completo breu. Mas sol central conhecido, apenas no mundo de Pólux, visto que o da vizinha havia sido destruído na catástrofe citada.

Pólux entrou no ascensor novo. Ascensor? Estranho denominá-lo assim, visto que ele iria descer. Bom, chamar de "descensor" seria bem estranho.  E de fato ele alternava ambas as características: ele desceria, mas para chegar até onde agora estava ele precisou antes subir. Subir, descer...  Pólux logo descobriria a imprecisão de tais termos. Mas entrou no ascensor, encontrando o velho amigo Cástor:

- Pólux! Vamos lá! Mal posso controlar a ansiedade e chegar logo!

Depois de anos de prática em atingir as cavidades satélites próximas, decidiram finalmente se aventurar à grande cavidade vizinha, vítima da tragédia ocorrida há quase um século! O ponto em que a primeira perfuratriz subiu à cavidade parecia isolada, mas luzes ao longe indicavam que alguma atividade continuava existindo lá, apesar do antigo cataclismo.

- É seguro? Tem atmosfera?

- Nenhum indício de descompressão quando a perfuratriz saiu da parede da cavidade! Alguns traços de hélio e xenônio a mais, mas totalmente inertes. Acreditamos que tem a ver com o colapso do sol central deles. Mas a diferença de pressão, por exemplo, não é significativa.

Começaram então a descida dentro da cápsula daquele novo ascensor. Sendo a primeira viagem logo após a abertura da passagem pela perfuratriz, ela aconteceria bem mais lenta que a dos ascensores comuns que levavam às cavidades satélites! Pólux e Cástor sentiam claramente a diminuição de seus pesos à medida que a cápsula entrava pela passagem cavada no tecido rochoso de seu universo.

- Cástor, sempre me pergunto: qual o tamanho de nosso universo?

- Como assim?

- Sei lá, acho estranha a idéia de uma quantidade infinita de rocha se espalhando em todas as direções, com cavidades isoladas aqui e ali...

Cástor se pôs pensativo. Sim, ele poderia revelar aquilo, estava certo de que Pólux era capaz de entender.

- Tem uma lenda transmitida pelos antigos a respeito de universos fechados. É difícil compreendê-la, envolve a aceitação de dimensões além daquelas observáveis... Nossos sábios estão trabalhando nestas questões. Mas, em resumo, elas dizem que nosso universo pode ser fechado. Que esta massa toda de rocha, embora não apresentando nenhum limite, tem volume finito, fecha-se sobre ela mesma.

- Quer dizer, se resolvermos avançar numa direção reta qualquer vamos sempre acabar chegando ao ponto de onde saímos?

- Isso mesmo! Admira-me a rapidez de sua conclusão! Inclusive já testamos esta hipótese: enviamos uma perfuratriz automática de pequena dimensão para tentar percorrer esta linha reta. Se os antigos estiverem certos, hora ou outra ela vai reaparecer na nossa cavidade, na parede oposta de onde ela saiu. Saberemos assim determinar qual é o tamanho de nosso universo.

- Nunca soube disto...

- Evitamos divulgar, afinal a grande maioria não compreenderia. Muitos até poderiam tentar vetar o experimento, julgando-o inútil...

- Entendo. Algum sinal de tal perfuratriz automática?

- Nenhum. Já deve estar a mais de 30 mil quilômetros de nós! Parece que, se o universo é fechado, deve ser bem maior do que imaginamos...

Agora um lampejo de compreensão brilhou na mente de Pólux. Relembrou as antigas aulas de geometria multidimensional, que ele sempre considerou inúteis, e de repente elas pareciam ser capazes de explicar uma realidade até então incompreendida: e se o universo tridimensional no qual viviam, cercado de rochas em todas as direções, fosse na verdade o exterior, a "superfície" de uma hiperesfera quadridimensional? Isto conciliaria, inclusive, a noção atual de repulsão gravitacional com a teoria da gravitação das lendas antigas, que Pólux evitava a todo custo desprezar. Num universo rochoso fechado, a aparente "repulsão" para as paredes da cavidade condizia perfeitamente com a atração gravitacional dos antigos: no universo fechado como um todo havia um pouco mais de matéria "puxando-o" para baixo do que para cima, onde havia uma cavidade puxando-o com menos força por estar preenchida de ar, uma matéria bem menos densa que as rochas e com capacidade de atração ínfima comparada a elas. Tudo parecia agora se encaixar...

A sensação de imponderabilidade se intensificava cada vez mais. Era evidente que eles ficavam cada vez mais leve, mas quando isto pararia? A lei era bem conhecida: à medida que nos aproximamos do sol central, o peso diminui linearmente de acordo com a sua distância do solo. Porém isto valia para o interior oco das cavidades, preenchidas de ar. No caso dos caminhos criados pelas perfuratrizes, cercada de inimaginável massa de rocha de seu Universo, a lei mudava: o peso diminuía mais rápido, proporcional ao quadrado da distância! Isto se você não estava se dirigindo a outra cavidade. Neste caso, a combinação da lei para ambas fazia isto acontecer mais rápido. E isto ficava evidente agora, quando Cástor e Pólux flutuavam sem peso dentro do ascensor. Se verificadas exatas as idéias sobre Universo Fechado, eles estavam agora num ponto bastante particular do mesmo: numa região em que toda a massa de seu universo os puxava com a mesma intensidade em todas as direções, dando aquela curiosa impressão de ausência de peso. Isto durou alguns minutos, mas foi desfeito em seguida. Lentamente Pólux começou a perceber que subia de novo, e perguntou ao amigo:

- Cástor, que aconteceu? Parece que estamos voltando. Estamos subindo, não é?

Cástor se divertia com a ingenuidade do amigo. Marinheiro de primeira viagem...

- Continuamos a caminho, Pólux! Ultrapassamos o ponto de equilíbrio gravitacional, e agora a força de repulsão de nossa cavidade vizinha começa a ficar mais intensa. Parece que estamos subindo agora, mas definitivamente continuamos viajando na mesma direção. Você não percebeu ainda que agora estamos no teto do ascensor?

Agora que Cástor mencionou o fato, ele se tornou evidente. Estavam agora no teto, e o peso aumentava cada vez mais.

- Que peso teremos lá?

- Quase o mesmo! Nossa vizinha era um pouco maior, mas nada que sejamos capazes de perceber.

- Gravidade maior? É por isto que no caso deles as instruções para construir o pêndulo calibrador exigiam uma corda um pouco maior.

- Provavelmente. Ainda não conseguimos descobrir direito como isto funciona. Mas parece que, gravidade maior, pêndulo maior. Nos nossos satélites pequenos, por exemplo, ficava bem claro que a oscilação dos pêndulos que trazíamos de nosso mundo era bem mais lenta.

A sensação de peso aumentava. A expectativa, igualmente! Existiriam sobreviventes, quase cem anos depois da tragédia? Estavam prestes a descobrir...

-----------------------------------------------

Escuridão absoluta, silêncio total. Onde estavam as luzes mencionadas a princípio? Estariam os sobreviventes tentando se proteger, ao perceber que haviam sido "invadidos"? Saíram do ascensor, com a cúpula externa ainda improvisada. A atmosfera parecia ainda familiar. De fato, Cástor e Pólux não imaginavam mesmo serem capazes de perceber a pequena concentração excedente dos gases inertes.

- Que escuridão, Cástor! - e de repente veio à sua mente a antiga palavra "Nuit". Ah, agora se lembrava: era assim que os antigos denominavam aquele período de trevas!

Cástor ligou o holofote portátil, e tentaram se localizar. Nada, apenas vegetação selvagem. Vegetação? Estranho, mas as plantas (seriam mesmo plantas?) haviam se adaptado com uma rapidez incrível à falta de luz e calor do sol central para fotossintetizarem seu sustento. Do que viveriam agora naquele mundo de trevas? Bom, isto cabia agora aos biólogos pesquisarem.

- Que é aquilo?

Pontos voadores começaram a piscar em todas as direções. Vaga-lumes! Pelo menos vida animal primitiva havia sobrevivido então! Mas dificilmente eram estas as luzes que os robôs das perfuratrizes haviam mencionado. Eles tinham certa inteligência, e mencionaram claramente que as luzes vinham de pontos distantes da abóbada (por hora invisível, engolida pelas trevas), não podiam tê-las confundido com vaga-lumes. Cástor e Pólux estavam exaustos. Decidiram acampar ali mesmo, e continuarem a exploração depois de refeitos. Estranho, num mundo de dia eterno as pessoas permaneciam acordadas até a exaustão, e dormiam quando se sentiam esgotadas. Não havia hora certa para isto, e este ritmo biológico, particular de cada um, era uma das coisas mais respeitadas no mundo côncavo. Mas aquela escuridão toda, silêncio... De repente começou a fazer sentido as antigas lendas sobre a Nuit, o período de trevas que parecia sincronizar a vontade de dormir de toda a população de uma dada longitude da superfície externa das antigas esferas rochosas, rodopiando sem parar em torno de seus eixos de rotação...

------------------------------------------------

Uma luz branca de intensidade indescritível os despertou com violência. Nunca haviam presenciado uma luz branca natural, uma fonte emitindo com a mesma intensidade todas as faixas de freqüência do espectro visível! Seu sol central era alaranjado, e tão acostumados estavam com ele que o laranja sempre lhes pareceu branco. Por isso aquela luz lhes pareceu sobrenatural, revelando detalhes daquela cavidade, sempre considerada morta, em cores que eles nunca antes imaginavam que poderiam existir.

- Cástor, tira este holofote da minha cara! - queixa-se Pólux, ainda embriagado pelo sono.

Mas Cástor já está de pé, contemplando o fenômeno inexplicável.

- Acorda Pólux! Acorda, caramba! Você precisa ver isto!

Pólux abre os olhos, e se depara com a visão inexplicável de um sol central branco.

- Mas... Que significa isso tudo?

A visão era incompreensível! Olhavam para o centro da abóbada, para um estranho sol que não deveria estar a mais de uns trezentos quilômetro de distância, mas o fato era que... ele estava muito mais longe do que isto! Como era possível? Olhou em volta. A abóbada acima deles aparecia verdejante, iluminada pelo novo sol central. Um pouco acima da faixa de círculo máximo daquela cavidade estendia-se a ântica cordilheira. Uma enorme cratera a dividia em duas partes, e ao redor desta cratera uma mancha púrpura e cinza-grafite indicavam os restos despedaçados do antigo sol central, agora apagado para sempre e espalhado como um borrão escuro sobre a velha cordilheira. Definitivamente o antigo sol central não mais existia. Aquela luz branca tinha outra origem, que Cástor e Pólux não conseguiam ainda entender.

Olham com mais atenção o novo sol central. À medida que suas visões se aproximavam dele, tudo começava a escurecer. Uma aura negra rodeava o sol pálido. Como explicar aquilo tudo? Pólux se lembrou de lendas antigas. Os ancestrais que popularam aquele universo vinham de algum lugar onde as leis do universo pareciam ser completamente diferentes, não é mesmo? Mas como haviam chegado ali?

- Cástor, acho que nossos ancestrais chegaram por ali!

- Como?

- Não percebe? Este sol que vemos não está onde achamos que ele está!

- Pólux, o que está se passando nesta sua cabeça doida?

- Idéias antigas, Cástor! De dimensões adicionais reais, apesar de não observáveis...

Pólux se lembrou de antigas lendas sobre funis gravitacionais. Buracos negros, era este o nome? Ninguém sabia para onde levavam. Universos paralelos? Agora estava claro para Pólux: não levavam a universo paralelo algum! Na verdade, precisavam se curvar em alguma coisa, e o que acontecia parecia agora evidente: criavam microuniversos fechados! Uma estrela de nêutrons se colapsava pelo próprio peso, e se engolia dentro de um buraco negro. Para onde? Agora estava tudo claro: para lugar nenhum! Um microuniverso era criado dentro do universo principal, um apêndice pendurado ao espaço-tempo maior, e a massa comprimida de nêutrons encontrava novamente uma válvula de escape para se expandir de novo como matéria convencional, rochas, água, atmosfera... No processo de expansão, falhas eram possíveis, e era assim que apareciam cavidades vazias dentro do universo fechado criado dentro do buraco negro. Cavidades preenchidas por matéria mais tênue, gazes de nitrogênio, oxigênio... Mas agora estava claro: eles não estavam isolados! Sempre haveria um ponto, um contato com o universo principal. Cástor e Pólux estavam agora observando, através do buraco negro que criou seu Universo, o ponto de contato com um universo de dimensões nunca antes imaginada. Aquela estrela branca era a companheira maior daquela estrela de nêutrons que havia criado seu mundo, que era a "superfície" rochosa de um planeta hiperesférico de 100 mil quilômetros de raio. Certo dia, há incontáveis eras no passado, uma nave foi fisgada pela armadilha cósmica. Surpresos ao perceber que a gravidade incomensurável não os havia feito em pedaços, acreditavam agora estarem presos num estranho universo sem saída. Viveram da melhor forma possível, criaram uma população humana impensável neste microuniverso. Tentaram preservar sua ciência, mesmo sabendo que uma hora ou outra ela se deterioraria, degeneraria em lendas. Mas finalmente Cástor e Pólux viam uma saída daquela arapuca. Deveriam voltar e revelar a descoberta?

- Cástor, tenho medo do que possamos encontrar lá fora. Já imaginou o Vácuo? Lugar em que nada existe, nem o ár?

Cástor tremia dos pés à cabeça.

- Vamos firmar um pacto, tudo bem? Nada encontramos aqui, só um mundo despedaçado. Nenhum sobrevivente, portanto nem vale a pena voltar. Vamos recomendar até que o caminho seja fechado, para evitar que a atmosfera daqui contamine a atmosfera de nossa cavidade.

Pólux relutou muito, mas aquela idéia de vácuo, de nada... um universo preenchido com vazio... A humanidade ainda não estava preparada pala enfrentar isto.

- Você está certo, Cástor! E se isto que estamos vendo for mesmo uma passagem para um universo de vácuo, fico pensando o que impede que a atmosfera desta cavidade arruinada escape por ele. Vê o perigo? Uma hora ou outra o ar daqui vai acabar escapando por aquela passagem, a cavidade vai... – Pólux tremia ao imaginar esta possibilidade! – Ela vai despressurizar! Tem idéia do que seja isto, Cástor?

- Sim entendo! E o mesmo deve acontecer com qualquer outra cavidade conectada a esta aqui, não é mesmo? Por que estamos aqui perdendo tempo? Precisamos fechar esta passagem imediatamente!

Voltaram para o ascensor, com o pacto de silêncio selado até o fim de suas vidas. À medida em que desciam, iam fazendo o caminho acima deles desmoronar, selando de uma vez a passagem enquanto voltavam. Poderiam dizer a verdade, não é mesmo? Qualquer pessoa mais instruída concordaria com seus motivos. Ou manter a mentira combinada? Tanto faz. De um jeito ou outro, o mais importante agora era fechar esta conexão entre as duas cavidades.

20/09/2011

TANATUS

Mil e uma foram as maneiras que imaginei para começar meu relato, mas sendo a maioria delas uma forma de tentar suavizar o fato, embutir nele um eufemismo que não faz parte de minha personalidade, decidi ser honesto e autêntico, e começar a história com o fato curto e grosso que é a maneira com que estou acostumado a lidar com tudo: eu estou morto! Como sei disso? Bom, existem inúmeros indícios facilmente identificáveis de que alguém está morto. Eu não tenho pulso, por exemplo! Acho que faz uns quinze dias que meu coração não bate mais... não, acho que um pouco mais! Também não respiro, a não ser quando preciso falar com alguém. É uma necessidade, nosso aparelho fonador precisa que uma certa quantidade de ar seja inspirada para dentro dos pulmões para que possam ser vibradas as cordas vocais na expiração, modulando assim nossas vozes. Mas é esta a única situação em que conscientemente "respiro": quando quero falar! Normalmente não sinto falta do oxigênio. Comer? Bem, a um bom tempo também parei de sentir fome...

O que me faz estar aqui escrevendo para vocês então? Estou certo de que, ao contrário do Brás Cubas de Machado de Assis, eu não sou um autor-defunto nem um defunto-autor. De certa forma, ainda estou “vivo”, entre aspas... Acordo todos os dias, vou trabalhar, volto... Como? Realmente não sei, mas o faço. Ainda não contei isto para ninguém. Mas pensando bem, como eu contaria? Você acha mesmo que seria tão simples assim? Tente imaginar a cena: certo dia apareço em casa e digo “Oi mulher! Oi filho, oi filha! Tenho uma novidade para contar a vocês: papai morreu!” Por favor! Vocês não acham que eu vou levar a sério tal possibilidade, não é? Não sei como vou revelar isto, mas, definitivamente, não vai ser assim!|!

Com o tempo vai ficando cada vez mais difícil esconder o fato. Tem o cheiro, por exemplo! Eu mesmo já perdi o olfato há muito tempo, mas as pessoas comentam! Estou tentando disfarçar, usando bons perfumes... mas o cheiro de carniça já está ficando indisfarçável! Se eu pudesse fazer alguma coisa para resolver isto... Mas não posso! Que querem que eu faça? Eu morri! Nada posso fazer quanto à decomposição da minha carne!

Estou ainda tentando entender o que aconteceu comigo. O que é a morte? Morre-se de uma hora para a outra? Nunca aceitei isto totalmente. Sempre me foi estranha esta singularidade: agora você existe, e agora não, você deixou de existir. É assim mesmo? Bom, ninguém voltou ainda para contar como é. E por experiência própria, estou aqui afirmando que não é assim que acontece! O normal seria todos os seres vivos morrerem “aos poucos”.  Esta fatalidade inquestionável é artificial: seu organismo é programado a tentar “acelerar” as coisas, mandar um aviso geral de “parar tudo!” Para te proteger de maiores sofrimentos? Pode ser... Talvez exista uma enzima "tanatus" enviada ao seu corpo todo, avisando a cada uma de suas células que o organismo principal morreu, e que portanto também elas devem para imediatamente! Mas isto pode falhar, e no meu caso, isto definitivamente NÃO FUNCIONOU! Meu corpo não recebeu nenhum aviso do tipo “parar tudo”, e eu continuei tentando funcionar “normalmente” mesmo depois de já ter morrido.

Do que morri? Eis aí mais uma pergunta difícil de responder! Não foi uma morte violenta, não lembro de ter sido atropelado, levado um tiro, caído e batido a cabeça na guia da calçada... Enfarte, derrame, ou doença de qualquer tipo? Difícil, sempre me cuidei tão bem! Acredito que tive a sorte de muitos e morri dormindo, mas definitivamente não consigo lembrar quando foi. O normal é que, quando você morre dormindo, não acorde mais. Mas, como expliquei antes, este mecanismo de proteção parece ter falhado no meu caso. Não sei exatamente quando aconteceu, mas nalgum dia entre três ou duas semanas atrás morri dormindo e acordei normalmente, sem me dar conta do acontecido. Quando percebi que eu não mais respirava? Realmente não sei, simplesmente chegou um dia em que me dei conta disso: "caramba, estou horas sem respirar!" E isto não me causava incômodo algum! Foi quando comecei a desconfiar do que havia acontecido.

Sim, parar de respirar foi muito mais fácil de perceber do que parar de comer. Você come quando tem fome, não é? Para que procurar comida quando não sente a menor necessidade dela? Foi por isso que não havia percebido que já estava a mais de dez dias sem comer nada, sem achar estranho o fato do meu estômago ainda não ter reclamado disto. Mas respirar... é tão natural que nem percebemos que o fazemos! Mas quando percebi que havia parado de fazer isto, fiquei realmente apavorado!

Apesar de tudo, a vida continuava correndo normalmente para mim. "Vida"? "Normalmente"? Sim, vendo do ponto de vista atual, fica estranho mesmo eu estar usando tais termos. Morto, eu continuava "vivendo"? Não sei explicar... Talvez apenas respondendo a estímulos externos como robô, acordando na hora programada, tentando interagir com as pessoas, mas... vivo? Faltava algo sim, embora eu não saiba explicar o quê. Vontade? Pode ser. Sei lá, parece que eu só estava reagindo aos estímulos externos. Acho que se eles cessassem, eu pararia de reagir, e definitivamente morreria como acontece com qualquer pessoa normal. Mas como se isolar de estimulos externos numa megametrópole? Eis meu atual dilema....

Sim, procurei um médico logo que percebi que havia parado de respirar. Ele começou medindo minha pressão... inexistente! Contou minha pulsação... inexistente! Mediu minha temperatura... temperatura ambiente! Me olhou incrédulo, e nem precisava falar nada para eu saber o que se passava em sua mente: "Cara, você está morto!" Grande novidade seria... Eu não estava querendo saber o óbvio, o que eu queria era uma explicação! Lógico que eu morri, qualquer idiota é capaz de verificar! Mas por que continuo andando, acordando todo dia e trabalhando, e mais... por que continuo procurando médicos como você para constatar um fato que eu já sei? O que me faz, morto, ficar vagando de um lado para outro ao invés de estar repousando debaixo da terra, confortávelmente vestido em meu "paletó de madeira"?

Lembro de algumas histórias fantásticas que li em vida, de alquimistas descobrindo a fórmula da imortalidade, ou de pessoas fazendo pactos demoníacos para conseguir vida eterna... enquecendo-se de também pedir juventude eterna. Nestas histórias, as pessoas continuavam vagando como cadáveres sem nunca conseguir o repouso eterno. Afinal, elas haviam pedido VIDA eterna, e não JUVENTUDE eterna: elas envelheceriam, deteriorariam, apodreceriam, mas continuariam VIVAS! Não é o meu caso! Nem acredito nessas coisas, e é certo que nunca fiz um pacto com o demônio para viver para sempre. O que aconteceu comigo foi um acidente natural, mas... como eu resolveria isto?

Penso em sumir do mapa. Acontece tantas vezes, não é? Definitivamente, não tenho a mínima idéia de como contar a meus amigos e familiares que morri, mas que apesar disto continuo "vivendo". Um desaparecimento talvez seja menos traumático do que tentar revelar esta realidade sobrenatural. Sobrenatural? Caros, acredito do fundo de minha alma que uma hora isto vai parar! Já mencionei meu desagradável odor de carniça, não é mesmo? Eu próprio não o sinto: meu olfato se foi a tempos, mas não tenho motivo algum para duvidar de meus amigos. Eu ESTOU apodrecendo, deteriorando, vejo isto em minha pele! Tal deterioração vai acabar chegando à minha massa encefálica, e acredito (na verdade, desejo isto muito!) que isto me fará parar de existir. Mas não quero testemunhas disso, pois tenho certeza que será desagradável! Eu mesmo já não me importo: percebi que entre tantas outras características dos seres vivos, já se foi tembém meu instinto de autopreservação. Já não faço mais questão de estar vivo, que por sinal já é uma situação que abandonei a algumas semanas. Mas se puder evitar que isto seja presenciado por alguém, farei de tudo para que assim seja!

Escrevo agora estas linhas finais com os movimentos que ainda restam em meus dedos. Minhas pernas pararam de se mover a algumas horas (os membros inferiores são afetados mais rapidamente pela estagnação do sangue!). Sinto finalmente a paralisia se espalhando por meus músculos mortos. Medo? Não sinto nenhum. Medo de quê? Já morri, o pior que poderia acontecer já aconteceu! Escrevo isto para os que encontrarem meu corpo deteriorado neste hotel barato daqui a... quanto tempo? Como saber? Só quero deixar isto por escrito explicando o porquê eu desapareci, e mais ainda desresponsabilizando de qualquer forma qualquer pessoa pela minha morte. Nada de mais aconteceu, eu só demorei um pouco mais que o normal para perceber que estava morto! Felizmente sinto que, apesar de toda a proteção da caixa craniana, meu sistema nervoso finalmente está deteriorando. Que alívio! Normalmente o corpo produziria as enzimas "tanatus" para acelerar tal processo e torná-lo menos doloroso. Mas antes tarde do que nunca! Sinto que finalmente está chegando minha hora de me entregar ao sono eterno, recompensa de todo ser vivente do planeta depois de cumprir seu papel no mundo dos vivos.

Por hora, simplesmente adeus!


*** FIM ***