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02/01/2013

Onde Habita Nossa Alma


    Era um típico momento de descontração entre profissionais especialistas da Medicina. Escolhiam com cuidado seus tacos de golfe, avaliavam a direção dos ventos... e jogavam conversa fora. Oncologista reconhececido, ganhador do último Nobel, ele quase recusou o convite, pois não acordou se sentindo bem. Acordara com uma enxaqueca inexplicável, visão turva. Mas a possibilidade de trocar idéias com o famoso Neurologista lhe deu ânimo renovado. Normalmente aquela afirmação pareceria absurda vindo da boca de qualquer outra pessoa, mas vindo da boca de um especialista em Neurologia o absurdo ganhava proporções incomensuráveis!

    - Acho que entendi mal sua idéia. Se pudesse explicar de novo... - e dá uma tacada certeira.

    O Neurologista esperava por esta reação.

    - Dificil de acreditar, particularmente por causa da minha especialidade, não é? Mas é exatamente por ter estudado tando sobre isto que reafirmo o que digo!

    - Não é possível, meu caro! Isso faz a medicina regredir milênios.

    - Regredir? Não, de forma alguma! - se prepara para a sua tacada. - Se eu estiver certo (e tenho quase certeza de que estou), regredimos mesmo foi quando desprezamos a teoria antiga, que já estava correta!

    O Cardiologista acompanhava a discussão sem participar do jogo.

    - Existe uma pequena rede neural no coração controlando o ritmo dos batimentos. - disse, tentando contribuir com sua especialidade. - De certa forma, nossos corações têm um micro-cérebro próprio bem primitivo.

    O Neurologista lustra seu taco de golfe, enquanto o amigo Oncologista se prepara para a próxima tacada.

    - É minha especialidade que os deixa tão perplexos, não é? Incompatível com minha proposta? Pois, ao contrário, é o fato de eu conhecer muito bem o que conheço que me permite afirmar isto que estou afirmando!

    Ele dá sua tacada, também certeita.

    - Sua vez, amigo! Empatamos!

    Ao dar a próxima tacada, percebe que a visão se turva rápido! Por isto jogou a bola tão longe do alvo! Mas, competitivo, seria incapaz de se desculpar por um mal-estar momentâneo.

    - Você confirma sua teoria de que o cérebro não é sede de nossos pensamentos, memórias e personalidade? - desafia, recuperado do mal-estar repentino.

    - Vou mais longe, mas... vamos lá! Continuemos com esta linha de raciocínio.

    - Nosso amigo afirma que a personalidade não está no cérebro. - questiona o Cardiologista.

    - Somos cientistas, meu caro! Personalidade é um conceito abstrato demais! Defina melhor! Cite características mais objetivas de nossas personalidades.

    - Nossas vozes, por exemplo.

    Um sorrizinho sarcástico apareceu na face do Neurologista. O Oncologista percebeu rápido também a falácia do amigo Cardiologista, mas deixou o colega Neurologista desfrutar de seu momento.

    - Bem se vê que Fonoaudiologia não é teu forte, meu amigo.

    Um silêncio constrangedor. O Cardiologista logo percebeu a besteira que dissera, mas achou que interferir, tentar consertar, seria pior. Deixou o Neurologista curtir seu momento de Glória Momentânea:

    - Óbvio que nossas vozes não estão no cérebro, e sim em nossas cordas vocais!

    - Mas... - o Cardiologista ainda tentava concertar o "inconsertável". - Não me referia somente à voz, mas ao sotaque, às particularidades de pronúncia...

    - Memória muscular, uma combinação de movimentos condicionados de músculos do diafragma, língua, faringe, lábios... De certa formas, algo bem mais evidente numa outra característica marcante de nossas personalidades: a caligrafia!

    Uma característica estereotipada dos médicos, famosos pela letra ruim. Injusto, pensou o Oncologista indignado, sempre orgulhoso de sua letra. E com razão, pois suas receitas eram sempre elogiadas pelos pacientes.

    - Então nossa caligrafia não está registrada em nossos cérebros, segundo sua teoria... - continuou o Oncologista, cutucando o colega.

    - Óbvio que não! Tal característica está registrada nas memórias dos músculos da mão! É o treinamento de seus movimentos que determina a caligrafia de alguém. O cérebro é totalmente dispensável neste caso também...

    Pensa um pouco antes de revelar. Poderia revelar tal idéia? Bem, estava entre amigos! Ninguém o entregaria por uma inocente hipótese! Ele bem sabia que não era só "hipótese", mas não tinha por que abrir tudo de uma vez.

    - Imaginei uma vez tal experiência: transplante de antebraço! O receptor não acabaria assumindo a caligrafia de seu doador, dado que a "memória caligráfica" estaria registrada em seus músculos? Bem... - ele ponderou bastante, pois sabia o resultado: já fizera a experiência! - Acredito que ela provaria parte de minha teoria.

    - A personalidade é muito mais complexa que voz e caligrafia. - acrescentou o Oncologista, sentindo de novo uma leve pontada na cabeça.

    - Meus caros cientistas -  continuou com sarcasmo. - Definam melhor esta palavra: "personalidade"! Nossa bem-amada ciência nó pode responder perguntas formuladas com exatidão. Para questões inexatas, favor recorrerem à Teologia... - e explode numa gargalhada até que bonita de se ouvir.

    - Pessoas calmas, outras violentas, hiperativas, ansiosas...

    - Explicado por variações glandulares! Excesso de testosterona explica muito bem o comportamento violento. A maioria das disfunções digestivas (problemas com produção de insulina, por exemplo) também afetam bem o comportamento. Nenhuma necessidade de interferência cerebral para estas variações de comportamento. Eu poderia explicar cada um deles como disfunção hormonal, mas isto seria bem maçante...

    - Ninguém sobrevive sem cérebro!

    - Explique melhor. - desafiou o Neurologista.

    Ele era um Neurologista brilhante! Não se arriscaria a afirmar tais besteiras se não tivesse alguma carta escondida na manga.

    - Morte Cerebral é considerada morte definitiva!

    - Nós DEPENDEMOS do cérebro, mas não precisamos dele.

    Os dois médicos, Oncologista e Cardiologista, olham abismados para o Neurologista.

    - Onde reside nossas memórias, raciocínio, percepção? Esta informação toda?

    - Você acredita que é tanta informação assim?

    Com o taco na mão, nem estava mais tão interessado assim no jogo. A discussão estava bem empolgante!

    - O Tiranossaurus Rex, com 15 metros de altura, tinha cérebro com o tamanho de uma noz...

    - Se extinguiram.

    - Correção: FORAM extintos! Por um acidente cósmico. Eles não tinham controle sobre isto. Nós próprios desapareceríamos ainda bem mais rápido do planeta se precisássemos enfrentar cataclisma semelhante!

    O Cardiologista olhou para o vazio, sem entender nada.

    - Um Neurologista que não acredita no cérebro...

    Ele sentiu a crítica. Bom, não dava para discutir com alguém especializado numa bomba muscular. Olhou fundo nos olhos do Oncologista.

    - Você é a pessoa aqui mais capaz de entender o que vou afirmar agora: o cérebro é um Tumor Nervoso!

    O Oncologista ouviu aquilo sem saber como reagir.

    - Não me olhe assim, você entendeu bem! Um parasita, desnecessário! A Notocorda, agora nosso feixe espinhal, nos explica a personalidade, memória e raciocínio.

    Ele começava a entender, mas não queria.

    - Você estava ansioso para conversar comigo? Nem imagina o quanto esperei para discutir contigo, meu caro ganhador do prêmio Nobel!

    A enxaqueca ficava mais forte. As imagens voltavam a se turvar.

    - Seu prêmio Nobel foi por provar o fato de células parasitas tentarem se perpetuar afetando o próprio código genético de seu hospedeiro, não é?

    - Sim! - ele concordou, com a dor nas têmporas já quase insuportável.

    - E o que afirmo é isto: o cérebro é uma doença! Um parasita! Um tumor desenvolvido na extremidade superior da Notocorda, que aprendeu a se propagar interferindo no DNA de seus hospedeiros!

    Sua visão se tornou totalmente turva! Começou a sentir cheiros e gostos estranhos. Ele não era ignorante! Mesmo não sendo sua especialidade, ele sabia muito bem reconhecer os sintomas!

    - Não precisamos do cérebro para viver! Mas ele nos armou uma arapuca bem elaborada no correr do processo evolutivo!

    O Cardiologista percebeu logo o colega Oncologista caindo e se estrebuxando convulsivo no chão. O Neurologista estava perdido em seu monólogo, e demorou mais para notar o que acontecia à sua volta.

    - Mas eu já sei curar esta dependência! Caros, provarei que o Tumor Cerebral pode ser eliminado! A Humanidade poderá enfim continuar evoluindo sem esta doença, poderá recuperar o tempo perdido...

    - Quer calar a boca? - explodiu o Cardiologista. - Não percebeu ainda que nosso amigo aqui está sofrendo um AVC??

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    Ele acordou confuso. Aos poucos a memória voltava. Bem aos poucos. Mas se concentrou no presente. Estava numa cama esterilizada, branca, de algum hospital. Ouviu vozes familiares:

    - Ele acordou.

    O raciocínio voltava. Lento, mas constante. Reconheceu o colega Neurologista entrando no quarto.

    - O que aconteceu?

    - Você teve um AVC! Acidente Vascular Cerebral.

    - Eu sei bem o que é AVC! Foi resolvido?

    - Com certeza! De forma definitiva!

    Ele pensou. Nunca havia percebido antes o problema!

    - Pode surgir sem aviso mesmo! - explicou o amigo à sua frente. - Não se culpe, não foi desleixo.

    - Preciso me cuidar...

    - É recomendável, mas para outros problemas! Você nunca mais terá um AVC.

    - Como assim?

    Teria percebido, de novo, um risinho cínico no rosto do amigo?

    - Ah, que dor de cabeça!!!

    Tentou levar a mão até a testa, mas o amigo o segurou rápido.

    - É melhor não fazer isto por enquanto! Não até terminarmos a prótese... - disse o Neurologista, que também era Neurocirurgião, segurando firmemente seu braço.

    Sentia claramente um vazio inexplicável em sua consciência. Tentou se erguer para encarar melhor o amigo, e sentiu a cabeça inexplicávelmente leve.

    - O que aconteceu comigo?

    - Você sofreu um AVC fatal, meu amigo!

    - Fatal? Como fatal? Se eu ainda estou aqui...

    - Resolvemos o problema definitivamente.

    Nada fazia sentido.

    - Resolveram?

    O amigo Neurologista resolveu se abrir.
   
    - Amigo, tomei a liberdade de decidir por você!

    Ele quase conseguiu entender! Mas se recusava a acreditar.

    - Era mais importante te manter vivo!

    - Você me usou de cobaia! - concluiu enfim...- Você testou aquela idéia maluca comigo!

    O olhar não tentava esconder nada.

    - Era a única forma de te preservar, amigo! Sua mente era preciosa demais para ser desprerdiçada por um acidente estúpido! Por uma disfunção, falha de funcionamento, num órgão que nem precisava existir...

    Ele tentou digerir a informação. Finalmente, exigiu:

    - Espelho! Me dê um espelho!

    - Não é boa idéia, amigo! É melhor esperar pela prótese...

    - Espelho, rápido!!! Exijo saber como estou agora!!!

    O Neurocirurgião enfim falou, lhe entregando um espelho:

    - Não se surpreenda! Logo isto se tornará comum...

    Ele olhou seu novo rosto no espelho. Sem mais testa, serrada pouco acima da altura das sombrancelhas. O amigo continuava:

    - Você vive, não é? Continua raciocinando.

    Ele deslocou o espelho. Viu a parte superior, inexistente, do crânio. Seu cérebro, precisamente removido (todas as veias e artérias cuidadosamente suturadas), aguardando uma proteção sintética.

    - Você ainda pensa, não é?

    - Sim... - de fato, ele ainda pensava.

    - E cadê o cérebro? Acha que ainda pensa com o cérebro?

    De novo um intervalo difícil de se enfrentar.

   - Você ainda acha que precisa do cérebro para existir? Você continua existindo e raciocinando, sem cérebro! Ninguém nunca precisou do cérebro!

    Não existia! Certamente  ele nunca mais na vida teria um Acidente Vascular Cerebral, pois ele não tinha mais cérebro!

    A mão perdeu firrmeza. O espelho caiu e se quebrou no chão.
   
    - Cadê meu cérebro, cara? Quem autorizou isto?

    - Você mesmo!

    - Eu????

    Olhou para o antebraço esquerdo decepado! Canhoto, sua mão mais ágil fôra removida!

    - Ah... entendi...

    Viu as suturas recentes no antebraço dirteito do amigo. Estranhíssimo! Ele exibia agora, para quem quisesse ver, duas mãos esquerdas!!! Uma natural, e a segunda claramente implantada.

    - Você mesmo assinou a permissão... - o Neurologista ergueu sua mão direita, invertida, com uma mão esquerda estranhamente implantada nela. E para qualquer pessoa ficaria claro que aquela mão não era dele...


*** FIM ***

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