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16/07/2011

Brinquedos de Cthulu

(homenagem a H.P.Lovecraft)

Muito tempo se passou antes que ele começasse a entender o que acontecia naquele ambiente de pesadelos no qual se encontrava agora. A escuridão era absoluta; o silêncio, ensurdecedor! Mal era capaz de ouvir sua própria respiração. Fazia muito frio, e ele estava deitado de costas sobre uma superfície aparentemente metálica. Incapaz de realizar o mínimo movimento, podia sentir inúmeras agulhas espetadas em sua pele, bem como um tubo que saía por uma abertura em sua traquéia. Provavelmente era isto que o impedia de gritar...

Tentou se lembrar de como havia parado lá, mas suas memórias não surgiam com clareza. Tudo o que chegavam eram cenas desconexas, que ele era incapaz de sequenciar numa ordem cronológica: ele deslizando (ou estaria sendo arrastado?) por um tubo estreito, depois o casulo translúcido mantendo-o imóvel, o terror pelo qual passou ao ver o brilho metálico do bisturi se aproximando de seus olhos... Por que ele não havia reagido? Ah, agora parece ficar mais claro: aquele casulo translúcido envolvia seu corpo todo, impedindo-o de tentar se defender de qualquer forma. Lembrava-se bem de estar pendurado dentro deste casulo quando Eles apareceram pela primeira vez. Mas que eram aquelas criaturas estranhas? Tinham pele cinzenta, dois gigantescos olhos completamente negros, nenhum nariz visível, bocas desproporcionalmente minúsculas... Quando se lembrou de tais cenas seus olhos começavam a se acostumar com a escuridão, e foi então que ele percebeu que aquelas criaturas continuavam lá, em torno dele, que estava deitado sobre aquela “mesa de operações”.

Ele nunca havia levado a sério tais histórias, mas agora que a estava vivendo na própria pele apenas uma conclusão lógica passou pela sua mente: “Fui abduzido!!” Cerca de seis daquelas criaturas cinzentas cabeçudas o observavam sem expressão alguma em seus rostos. Percebeu que conseguia mover um pouco a cabeça para a direita, e foi quando notou existirem quatro outra criaturas daquelas de costas, ocupadas em alguma atividade que ele era incapaz de descobrir qual era. O pânico o deixou sem reação, e observar foi tudo o que ele fez durante uma hora inteira. Seria este mesmo o tempo que se passou, ou seu sentido de tempo também estaria prejudicado?

As seis criaturas em torno dele permaneciam imóveis, enquanto vez ou outra ele notava surgir um tentáculo escuro e gosmento se dirigindo na direção dos quatro cinzentos ocupados à sua direita. Aparentemente levavam instrumentos para estas criaturas. Mas com o que elas estariam tão ocupadas?

“Aguenta aí, amigo! Se você cooperar isto acaba logo...”

Teria ouvido uma voz? Não, mesmo com aquela atividade toda o silêncio continuava absoluto. Não parecia ser uma voz real, de fora. Parecia vir de dentro de sua cabeça.

“Não é a primeira vez que me trazem aqui. E sei que não será a última?”

“Quem está falando? Como respondo?”

“Já está me respondendo! Basta pensar...”

Sim, ele estava tendo alguma forma de contato telepático, disto não havia dúvida.

“Quem é você?”

“Olhe para seu lado direito!”

Um único cinzento permanecia de costas agora, enquanto os outros três haviam se deslocado para o outro lado da outra mesa de operação à sua direita. Uma dúzia de tentáculos em volta pareciam surgir de lugar algum, aparentemente nascendo do próprio breu daquele ambiente. A figura deitada na segunda mesa de operações à direita parecia bem mais humana que os cinzentos, mas definitivamente ainda não era humana: olhos totalmente desprovidos de pigmentação, nenhum pelo sobre a cabeça, além de narinas e ouvidos reduzidos a simples orifícios no crânio. Mas ao menos aquela criatura demonstrava algum tipo de expressão no rosto, o que a tornava mais humanizada.

“Rapaz! Que fizeram com você?”

“Como assim?”

“Sua íris, o nariz, as orelhas... Onde foram parar?”

Mesmo naquela situação de total pavor, ele sentiu telepaticamente que seu interlocutor ria:

“Ora, eu diria que para mim é você que parece esquisito com todos estes pelos na cabeça, este pavilhão cartilaginoso em torno dos orifícios auriculares e este bulbo ósseo na frente das narinas. Fora todas essas agulhas incômodas que espetaram na minha pele, não me tiraram nada: nós somos assim mesmo como você está vendo.”

“Nós? Nós quem?”

“Nós, os marcianos.”

Marcianos? Era realmente a última coisa que ele esperava ouvir...

“Você pensava o quê? Que éramos homenzinhos verdes? Acho que você está nos confundindo com duendes... Somos mais parecidos contigo do que imagina.”

“Como pode? Marte é seco, tem uma atmosfera rarefeita, desprovida de oxigênio.”

“Você está sendo antropocêntrico demais. De onde vem esta sua certeza de que todo ser vivo precisa respirar oxigênio?”

“Além disso já mandamos sondas para Marte, e não encontramos marciano nenhum lá.”

“Bom, tudo o que posso dizer é que vocês não procuraram direito... Mas preciso confessar: nós marcianos até que sentimos uma pontinha de orgulho quando descobrimos que vocês estavam conseguindo enviar objetos para fora de seu planeta.”

“Como assim? Vocês não? E seus discos voadores?”

“Discos o quê? Não, meu amigo. Me dói muito dizer isto, mas a decadência de nós marcianos começou antes mesmo de desenvolvermos a tecnologia das viagens espaciais, quando começamos a estragar nosso planeta de uma forma irreversível. Nunca saímos de Marte, ao menos não por nossos próprios esforços, e atualmente somos obrigados a nos esconder no subsolo onde ainda existe um pouco de água e oxigênio.”

“Mas você disse que não respiravam oxigênio...”

“Não disse isto. Só disse que ele não é necessáriamente necessário para se desenvolver vida. Nós precisamos sim, só que bem menos que vocês. Na verdade, para nós o excesso dele é um veneno! Para vocês também, mas sua tolerância é bem maior...”

“Então ainda existem marcianos, mas vivendo debaixo da superfície?”

“É por isto que nem temos mais pigmentação na íris: depois de algumas dezenas de milhares de anos de evolução vivendo nestas tocas a proteção se tornou desnecessária. Mas estes discos voadores dos quais você fala... eles não são nossos.”

Um tentáculo aparece do nada e se dirige a uma das criaturas cinzentas em torno do terráqueo. A criatura, antes estática, parece ganhar vida quando o tentáculo toca sua nuca.

“Os discos são dEles então?”

“Não sei. Mas eles devem ter levado as matrizes marcianas para a terra de alguma forma a algumas centenas de milhares de anos atrás. Precisavam ter algum tipo de veículo espacial para fazer isto.”

“Matrizes marcianas? Do que você está falando?”

“Eles vinham fazendo estas experiências conosco há muito tempo antes de levarmos nosso planeta ao cataclisma final. Na época até que éramos mais parecidos com vocês, tirando todo este pelo da cabeça e esse negócio que vocês têm hoje em volta do orifício auricular...”

“Você quer dizer ORELHAS ?”

“Que seja. Dêem o nome que quiserem para esta coisa feia, hehehe.”

A criatura cinzenta se aproxima do terráqueo com uma espécie de capacete. Ele não consegue entender por que não pode se mover e fugir dali, mas seu companheiro marciano percebe a dúvida e responde em telepatia:

“Eles seccionaram sua espinha dorsal para fazerem os experimentos com mais segurança.”

“QUÊ??? ELES ME DEIXARAM PARALÍTICO??”

“Relaxa, irmão. Eles sabem consertar isto depois.”

“Você me chamou de ‘irmão’ ?? Não entendo...”

“Acho que primos seria um termo mais adequado. Sabe, nós marcianos nunca conseguimos entender estas relações de parentesco que vocês terráqueos usam. Na nossa sociedade, todos os progenitores de uma comunidade são os ‘pais’, e todas as suas crias crescem em conjunto como ‘irmão’. Isto nos livrou de muitos conceitos éticos que atormentam vocês. A idéia de “incesto”, por exemplo: para nós marcianos é muito difícil compreendê-la. Por algum motivo nós em Marte não desenvolvemos este conceito de posse que vocês terráqueos têm: estes são MEUS filhos, e aqueles outros são SEUS... Quando disse ‘irmão’, estava falando do ponto de vista genético”

“Explica melhor. Para mim tudo isto é novidade!”

Neste momento ele sente que o capacete é preso em torno de sua cabeça. Apesar de não sentir uma dor insuportável, ele percebe claramente que algo a está perfurando.

“Cara, que Eles estão fazendo agora? Estou me borrando de medo...”

“Tenta esquecer, pense em outra coisa para não atrapalhar a experiência, assim eles te liberam logo!”

“Certo, vou tentar... Então continue me contando esta história, talvez isto me distraia. O que é que você falava mesmo sobre genética?”

“Então... Eles perceberam que do jeito que estávamos estragando a atmosfera do nosso querido planeta Marte seríamos obrigados a nos abrigar no subsolo em pouco tempo, e a população reduziria drasticamente com isto. Além disso, a vida entocados debaixo da terra levaria a alterações genéticas ao longo da evolução futura que não interessavam para as experiências que Eles ainda pretendiam fazer conosco, por isto Eles resolveram conservar parte do código genético original de alguns marcianos levando-os para a Terra. Mas entenda, o ambiente da Terra não era dos mais agradáveis para um marciano viver: temperatura muito alta, umidade absurda, além de uma taxa de 20% de oxigênio na atmosfera que mataria um marciano em questão de horas por hiperventilação. Para conservar os genes, era necessário usar alguma espécie nativa do planeta como hospedeiro, já adaptada ao ambiente. E... - surpresa!! - coincidiu com o surgimento dos seus ancestrais mais primitivos, o Homo Erectus”

“Você quer dizer que uma parte dos humanos vem de Marte?”

“Você parece surpreso. Acha que na escala evolutiva algumas centenas de milhares de anos são suficientes para um primata antes saltando de galho em galho se desenvolver num ser racional capaz de enviar veículos pelo espaço interestelar? Os dinossauros tiveram muito mais tempo do que isto para evoluir, e ainda assim não surgiu nenhum tipo de lagarto gênio, não é mesmo?”

“E os marcianos?”

“Nossa evolução foi muito mais lenta, não tivemos este empurrão inicial. Desde que saímos das cavernas até o momento de construirmos as primeiras cidades, algumas dezenas de milhões de anos se passaram. Vocês evoluiram de carona com nossos genes, já pegaram o bonde quase no ponto final...”

“Você está inventando coisas. Tem também os gorilas e chipanzés, que já são relativamente bem evoluídos.”

“Eles, os cinzentos, não sabiam qual criatura da época iria se sobressair, por isso usaram os ancestrais destes símios como hospedeiros também. Vocês humanos só se adiantaram em uns, sei lá, cinqüenta mil anos! Mas se seus primos tiverem este tempo a mais para evoluir, pode ter certeza que eles também vão chegar onde vocês chegaram! Está nos genes, hehe!”

Logo passou num flash pela cabeça do terráqueo o filme “Planeta dos Macacos”, mas a comunicação cessou neste exato momento. Alguma coisa saiu errado com a experiência. A sua consciência do terráqueo foi sumindo aos poucos, até se tornar inexistente. Sim, ele havia morrido. O marciano na mesa ao lado ainda tentava se comunicar em desespero:

“Terráqueo, o que aconteceu? Fale comigo! Está tudo bem?”

Inútil, ele já não sentia mais a força vital de seu interlocutor naquele contato telepático. O marciano perdeu também toda a esperança que tinha de voltar ao seu amado planeta vermelho depois dos cinzentos terminarem a experiência, concluiu que desta vez eles haviam feito uma promessa falsa para ele. Tinha medo de olhar para o lado e descobrir o que havia acontecido ao seu novo amigo da Terra, mas olhou assim mesmo. A visão era pavorosa: o humano estava inerte sobre a mesa de operações, com o crânio serrado pouco acima da altura dos olhos. Um tentáculo negro segurava o capacete de dentro do qual se penduravam os dois hemisférios separados do antigo cérebro daquele humano.


Vários tentáculos começaram a sair de dentro daquela bolha de ar onde estavam os humanos da Terra e de Marte, bem como os dez humanóides cinzentos. Dentro da bolha havia uma criatura viva, outra morta e dez, digamos assim, nem vivas nem mortas. Eram orgânicos, sem dúvida alguma, mas não se poderia afirmar que eram vivos. Tratavam-se apenas de biômatos*, ossos recobertos de músculos, pele, um sistema nervoso distribuído e nada mais. Nem sangue, nem coração, nem órgãos digestivos, respiratórios,... nada!! Haviam terminações nervosas expostas em suas nucas, e delas é que vinham todos os comandos para mover estes biômatos. Terminações nervosas livres também existiam na ponta de cada um dos tentáculos, e ficava claro agora que eram eles que animavam aquelas criaturas cinzentas, simples bonecos seguindo a vontade de impulsos nervosos enviados pelos tentáculos, quando eles tocavam os biômatos na região correta de seus corpos.

Um por um os tentáculos saiam daquela bolha de ar. Fora da bolha existia o denso oceano de mercúrio líquido cobrindo todo aquele estranho planeta. Os tentáculos pertenciam a uma criatura monstruosa, inonimável, uma simbiose inusitada de uma água-viva com um enorme polvo de inúmeros tentáculos. Não, olhando bem, na verdade eram dois polvos gigantes em torno da pequena bolha de ar. Um era enorme, e o segundo ainda maior que o primeiro! Olhar é só uma forma de dizer: naquele denso ambiente de metal líquido, o breu era absoluto, nenhuma luz existia. Haviam imagens sim, mas não de fótons, e sim das emissões elétricas de baixa freqüência daquelas estranhas criaturas. Sinais elétricos se propagavam daquele primeiro polvo, de um lóbulo saliente acima daquilo que, para simplificar, vamos chamar de “cabeça”. Afinal, vivendo num gigantesco oceano metálico, haveria alguma forma mais eficiente de se comunicar? Difícil traduzir em termos humanos o que é que estava sendo dito, mas parecia alguém se lamentando, aborrecido com alguma coisa:

- Mamãe!!!! Mamãe!!!

- Que foi agora, Cthulu?

- Buáááááá! Buááááá! Meu humano...

- Que tem o seu humano?

- Meu humano quebrou de novo!!

Mamãe Cthulu parecia indignada.

- De novo não, Cthulu!! Eu avisei que estes dois era para devolver depois... Que foi que você fez desta vez?

- O cérebro... ele partiu no meio...

- Cthulu, quantas vezes vou ter que repetir isto: apesar de não usarem, os humanos precisam do cérebro para continuarem vivos! Se você tirar, eles quebram!

- Eu quero outro humano, eu quero, eu quero, eu quero...

Arcos voltaicos caóticos se propagavam pelo oceano de mercúrio, afastando-se daquele polvo-água-viva menor e incomodando criaturas semelhantes à sua volta. As birras de uma criança são insuportáveis qualquer que seja a espécie do Universo que você esteja observando. Foi por isto que a Mamãe Cthulu então cedeu:

- Tá bom! Tá bom! Quando eu passar na Terra de novo eu abduzo outro humano para você.

Cthulu ainda não parecia satisfeito. Relutou algum tempo, contraiu seus tentáculos em torno da boca central. Mas finalmente “falou”:

- Traz outro marciano também?

Mamãe Cthulu coloca um de seus tentáculos dentro da bolha, toca a nuca de um dos biômatos cinzentos e, através dos olhos gigantes dele, vê um marciano se contorcendo, com o topo da cabeça exposto e mal conectado a... um hemisfério direito de um cérebro humano! Ela tira rapidamente o tentáculo de dentro da bolha e começa a emitir raios no pequeno Cthulu. À primeira vista tais raios pareciam mortais, de potência de alguns megatons capaz de destruir a civilização de boa parte de serem racionais existentes na galáxia. Mas quando convertidos em escala humana ou marciana poderiam muito bem ser traduzidos como umas boas palmadas.

- Isto é para você aprender a não quebrar seus brinquedos!


FIM



* BIÔMATOS: tomei o termo emprestado do romance “Encontro com Rama”, de Arthur Clarke, mas não tenho certeza se o termo é dele mesmo. Prometo pesquisar mais sobre isto e postar aqui o que descobrir. A idéia é que “biômatos” sejam seres orgânico “construídos”, ou seja, não gerados por processos vitais de reprodução. Uma espécie de robô ou autômato, só que construído com tecidos orgânicos ao invés de metais e parafusos...

12/07/2011

...E ele construiu uma casa torta

**** (de Robert A. Heinlein) ****

Bom, acho que já estava na hora de eu ser menos egoista e começar a postar contos de outros autores também, não é?
É difícil selecionar que conto lido eu gostei mais, mas digamos que este é o meu preferido num tipo de ficção científica bem específica, que eu gostaria de batizar (se vocês me permitirem) de "ficção matemática". Trata-se da história de um arquiteto que resolveu projetar uma casa com uma geometria, digamos assim, pouco convencional... As consequências são bem interessantes, e acabamos até lendo uma pequena aula de geometria espacial nos divertindo, quase sem perceber.
Bom, devo confessar que este conto inspirou um pouco o conto "Visão Trinocular" com o qual abri este blog. Quem o leu deve ter percebido a influência que este aqui teve naquele. Divirtam-se ! ;-)

OBS.: a seguir, link para duas ilustrações que fiz para exemplificar o conto:

http://www.linux.ime.usp.br/~qvain/img/casa_palitos.gif
http://www.linux.ime.usp.br/~qvain/img/casa_tesseract.gif

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Os americanos são considerados loucos em qualquer parte do mundo.
Em geral, admitem que há uma boa base para esta acusação, mas apontam a Califórnia como o foco de infecção. Os californianos afirmam com seriedade que essa reputação vem, unicamente, dos atos praticados pelos habitantes do condado de Los Angeles. Os habitantes de Los Angeles, se pressionados, admitirão a acusação, mas explicarão imediatamente: "É Hollywood. Não é nossa culpa -- não procuramos isso; Hollywood simplesmente aconteceu."
Os habitantes de Hollywood não se importam; vangloriam-se disso. Se o leitor estiver interessado, eles o levarão de carro até Laurel Canyon, "... onde mantemos os casos violentos". Os habitantes do Canyon -- as mulheres de pernas bronzeadas, os homens de calção, constantemente ocupados em construir e reconstruir suas alegres casas, nunca terminadas -- olham com leve desprezo para as criaturas insípidas que moram em apartamentos, guardando zelosamente no coração o conhecimento secreto de que eles, e somente eles, sabem como viver.
Avenida Lookout Mountain, é o nome de uma garganta secundária que se eleva de Laurel Canyon. Os outros habitantes não gostam que isto seja mencionado -- afinal, tudo tem um limite.
Lá no alto de Lookout Mountain, no número 8775, do lado oposto do Hermit -- o Hermit original de Hollywood -- morava Quintus Teal, arquiteto graduado.
Até a arquitetura do sul da Califónia é diferente. Os cachorros-quentes são vendidos numa estrutura construída como um cãozinho, chamado "The Pup". As casquinhas de sorvete são vendidas em uma casquinha gigante feita de estuque, e anúncios luminosos proclamam "Adquira o Hábito da Tigela de Chili!", colocados nos telhados de prédios que, evidentemente, são tigelas de chili. A gasolina, o óleo e os mapas rodoviários grátis são distribuídos embaixo das asas de aviões de carga trimotores, enquanto que toaletes, rigorosamente fiscalizados e inspecionados de hora em hora para o seu conforto, estão localizados na cabina do avião. Estas coisas poderão surpreender ou divertir o turista, mas os habitantes do lugar, que caminham de cabeça descoberta sob o famoso sol californiano, ao meio-dia, acham isso a coisa mais natural do mundo.
Quintus Teal considerava tímidos, desajeitados e fracos os esforços dos seus colegas na arquitetura.
-- O que é uma casa? -- perguntou ao seu amigo Homer Bailey.
-- Bem... -- Bailey respondeu cautelosamente --, falando em termos gerais, sempre considerei uma casa como uma invenção para a gente se abrigar da chuva.
-- Nada disso! Você é tão ruim como os outros.
-- Eu não disse que a definição era completa...
-- Completa! Não chega nem perto. Desse ponto de vista seria a mesma coisa estar de cócoras nas cavernas. Mas não culpo você -- continuou Teal com magnanimidade. -- Você não é pior do que esses caras que a gente vê por aí, fazendo arquitetura. Mesmo os Modernos -- tudo o que eles fizeram foi abandonar a Escola Bolo-de-Noiva em favor da Escola Posto-de-Serviço; descartaram-se dos pericotes e jogaram um pouco de cromado, mas no fundo são tão conservadores como uma prefeitura do interior. Neutra! Schindler! O que é que esses caras têm? O que é que Frank Lloyd Wright tem que eu não tenho?
-- Contratos -- respondeu seu amigo, laconicamente.
-- Hem? O que você disse? -- Teal tropeçou nas palavras, hesitou, mas recuperou-se. -- Contratos. Correto. E por quê? Porque eu não penso numa casa como uma caverna atapetada; penso nela como uma máquina para se viver, um processo vital, uma coisa viva e dinâmica, que muda com o humor do seu ocupante -- não é um enorme esquife, morto, estático. Por que devemos nos sujeitar aos conceitos petrificados dos nossos antepassados? Qualquer tolo com os mais parcos conhecimentos de geometria descritiva pode desenhar uma casa com a maior facilidade. A geometria estática de Euclides é a única matemática? Devemos nós ignorar completamente a teoria Picard-Vessiot? E que me diz dos sistemas modulares? Isto sem falar nas ricas sugestões da estereoquímica. Não haverá lugar na arquitetura para a transformação, o homomorfologia, as estruturas acionais?
-- Macacos me mordam se eu sei -- respondeu Bailey. -- Por mim pode até estar falando sobre a quarta dimensão que não me diz nada.
-- E por que não? Por que deveríamos limitar-nos ao... Espere! -- Interrompeu-se e ficou olhando para longe. -- Homer, acho que você disse uma coisa certa aí E por que não? Pense na infinita riqueza de relacionamento e articulação nas quartas dimensões. Que casa, que casa... -- Ficou imóvel, seus pálidos olhos saltados piscavam pensativamente.
Bailey estendeu a mão e sacudiu-lhe o braço. -- Acorde. De que diabo você está falando, quartas dimensões? O tempo é a quarta dimensão; você não pode meter pregos nisso.
Teal sacudiu o braço, libertando-o. -- Certo. Certo. O tempo é a quarta dimensão, mas estou pensando na quarta dimensão espacial, como comprimento, altura e largura. Em economia de materiais e conveniência de disposições não há nada que se lhe compare. Isso sem falar da economia de terreno -- poderia colocar uma casa de oito cômodos no terreno agora ocupado por uma casa de um só Como um tesseract...
-- O que é um tesseract?
-- Você não foi a escola? O tesseract é um hipercubo, uma figura quadrada, com uma quarta dimensão, assim como um cubo tem três e um quadrado duas. -- Teal correu até a cozinha do seu apartamento e voltou com uma caixa de palitos que esvaziou sobre a mesa, entre os dois, varrendo com a mão, displicentemente, copos e uma garrafa de gin Holland, quase vazia. -- Vou precisar de um pouco de plasticina. Tinha um pouco aqui na semana passada. -- Remexeu numa das gavetas da mesa de trabalho, atopetada de coisas, que obstruía um canto da sala de jantar e voltou com um pouco de argila oleoso. -- Aqui está.
-- O que é que vai fazer?
-- Vou lhe mostrar. -- Teal, imediatamente, tirou pedacinhos de argila e fez bolinhas do tamanho de ervilhas. Espetou palitos em quatro delas e uniu-as, formando um quadrado. -- Olhe! Isto é um quadrado.
-- Isso é óbvio.
-- Outro igual a esse, mais quatro palitos, e temos um cubo. -- Os palitos estavam agora arrumados como a armação de uma caixa quadrada, um cubo, com as bolinhas de argila segurando os cantos. -- Agora fazemos outro cubo igual ao primeiro e ambos serão dois lados do tesseract.
Bailey começou a ajudar a fazer as bolinhas de massa para o segundo cubo, mas ficou fascinado pela textura sensual da argila dócil e começou a trabalhá-la, dando-le forma com os dedos.
-- Olhe -- disse, mostrando o seu trabalho, uma pequena figura --, Gypsy Rose Lee!
-- Parece mais com Gargântua; ela devia processá-lo. Agora preste atenção. Você abre um canto do primeiro cubo, prende o segundo cubo a um canto e depois fecha esse canto. Então, tome mais oito palitos e ligue o fundo do primeiro cubo ao fundo do segundo, inclinado, e a parte superior do primeiro à parte superior do segundo, da mesma maneira. -- Teal fez isto rapidamente, enquanto falava.
-- E o que é que isso deve ser? -- perguntou Bailey, desconfiado.
-- Isto é um tesseract, oito cubos formando os lados de um hipercubo em quatro dimensões.
-- Para mim, isso parece mais uma cama-de-gato. De qualquer forma, você tem aí somente dois cubos. Onde estão os outros seis?
-- Use sua imaginação, homem. Considere a parte de cima do primeiro cubo em relação à parte superior do segundo cubo; esse é o cubo número três. Então os dois cubos de baixo, depois a parte da frente de cada cubo, as partes de trás o lado direito, o lado esquerdo -- oito cubos -- disse, apontando para eles.
-- Ééé... eu os vejo. Mas, ainda assim, não são cubos, são -- como se diz -- prismas. Não são quadrados, eles se inclinam.
-- Isso é o modo como você olha para eles, em perspectiva. Se você desenhasse um cubo num pedaço de papel, os lados dos quadrados seriam inclinados, não seriam? Isso é perspectiva. Quando você olha para uma figura quadridimensional em três dimensões, naturalmente que parece torta. Mas são cubos assim mesmo.
-- Talvez sejam para você, irmão, mas, para mim, eles ainda parecem tortos.
Teal não fez caso das objeções e continuou: -- Agora considere isto como sendo a estrutura de uma casa de oito cômodos; há uma peça no andar térreo -- isso são as áreas de serviço e a garagem. Há seis peças saindo dela no andar seguinte: lining, sala de jantar, banheiro, quartos de dormir, etc. E lá no topo, completamente integrado, com janelas em todos os quatro lados, estará seu gabinete de trabalho. Olhe aí! Que tal, gosta?
-- Parece-me que você tem a banheira pendurada do forro do lining. Essas salas estão entrelaçadas como se fossem um polvo.
-- Só em perspectiva, só em perspectiva. Olhe, vou fazer de outro modo, para que você possa vê-la. -- Desta vez Teal fez um cubo de palitos, depois fez um segundo cubo com metades de palitos e colocou-o bem no centro do primeiro, prendendo os cantos do cubo pequeno aos cantos do cubo grande com pedaços pequenos de palitos. -- Agora -- o cubo grande é o seu andar térreo, o cubo pequeno aí dentro é o gabinete de trabalho no andar superior. Os seis cubos que os ligam são os outros quartos. Está vendo?
Bailey estudou a figura e abanou a cabeça. -- Ainda vejo apenas dois cubos: um grande e um pequeno! Essas outras seis coisas, desta vez, parecem pirâmides em vez de prismas, mas, ainda não são cubos.
Certo, certo, você os está vendo numa perspectiva diferente. Não pode ver isso?
-- Bem, talvez. Mas, esse quarto aí dentro. Está completamente rodeado dessas geringonças. Pensei que você tinha dito que tem janelas nos quatro lados.
-- E tem -- apenas, parece que está rodeado. Isso é o detalhe principal de uma casa tesseract: vista externa em todos os aposentos e, no entanto, cada parede serve para dois quartos e uma casa de oito cômodos requer apenas os alicerces para um só quarto. é revolucionário.
-- Revolucionário é pouco. Você esté louco, rapaz; você não pode construir uma casa assim. Esse quarto interno está do lado de dentro e ali é que fica.
Teal olhou para o amigo com exasperação controlada. -- São caras como você que mantêm a arquitetura na sua infância. Quantos lados quadrados tem um cubo?
-- Seis.
-- E quantos deles estão do lado de dentro?
-- Ora, nenhum. Todos estão do lado de fora.
-- Muito bem. Agora escute -- um tesseract tem oito lados cúbicos, todos no lado de fora. Agora observe. Vou abrir este tesseract como se abre uma caixa de papelão cúbica até deixá-la completamente plana. Desse modo você poderá ver todos os oito cubos. Trabalhando com muita rapidez ele construiu quatro cubos, empilhando-os um em cima do outro, fazendo uma torre cambaleante. Então construiu mais quatro cubos saindo das faces expostas do segundo cubo da torre. A estrutura oscilou um pouco nas juntas, não muito firmes, feitas das bolinhas de argila, mas ficou de pé, oito cubos numa cruz invertida, uma cruz dupla, pois os quatro cubos adicionais se projetavam em quatro direções.
-- Você pode ver agora? Descansa no aposento do andar térreo, os outros seis cubos são os outros quartos e ali está seu gabinete de trabalho, bem no topo.
Baileu estudou aquilo com mais aprovação do que tivera para as outras figuras. -- Pelo menos posso entendê-la. Você chama a isto também de tesseract?
-- Isto é um tesseract desdobrado em três dimensões. Para rearmá-lo você enfia o cubo de cima no cubo de baixo, dobra aqueles cubos do lado até que encontrem o cubo de cima, e é isso aí. Você faz essa dobração através de uma quarta dimensão, naturalmente; você não deforma nenhum dos cubos ou os dobra para dentro de outro.
Bailey estudou mais um pouco a estrutura cambaleante. -- Escute aqui -- disse finalmente --, por que não esquece de dobrar esta coisa através de uma quarta dimensão -- de qualquer forma você não pode fazê-lo -- e constrói uma casa como isto?
-- O que é que você quer dizer que não posso? é apenas um problema matemático, simples...
-- Devagar, filho. Pode ser simples matemática, mas você nunca conseguiria que seus planos fossem aprovados para construção. Não existe uma quarta dimensão; esqueça. Mas este tipo de casa -- poderia ter algumas vantagens.
Teal estudou o modelo. -- Hm-m-m... talvez você tenha razão. Poderíamos ter o mesmo número de quartos e teríamos o mesmo tamanho de terreno. Sim, e poderíamos pôr esse piso central em feitio de cruz, apontando para o nordeste e o sudoeste e, assim por diante de modo que cada quarto recebesse a luz do sol o dia todo. O eixo interno presta-se lindamente ao aquecimento central. Colocaremos a sala de jantar no sudeste, com janelas panorâmicas em cada peça Muito bem, Homer. Vou fazê-la! Onde é que você que que a construa?
-- Espere um pouco! Espere um pouco! Não disse que você iria construí-la para mim...
-- É lógico que vou. Para quem mais? Sua mulher quer uma casa nova; e esta é a casa.
-- Mas, a Sra. Bailey quer uma casa em estilo georgiano...
-- Isso foi só uma idéia dela. As mulheres não sabem o que querem...
-- A Sra. Bailey sabe.
-- Só uma idéia que algum arquiteto antiquado lhe meteu na cabeça. Ela dirige um carro de 1941, não dirige? Ela se veste na última moda -- por que deveria ela morar numa casa do século dezoito? Esta casa será mais avançada do que um modelo de 1941: está anos dentro do futuro. Ela será comentada por toda a cidade.
-- Bem -- terei de falar com ela.
-- Nada disso. Vamos fazer-lhe uma surpresa. Tome outro drinque.
-- De qualquer forma vamos de carro até Bakersfield. A companhia vai pôr dois poços em funcionamento amanhã.
-- Tolice. Essa é exatamente a oportunidade que queremos. Será uma surpresa para ela quando voltarem. Pode me encher o cheque agora e suas preocupações estarão terminadas.
-- Não deveria fazer nada disso sem consultá-la. Ela não vai gostar.
-- Diga, quem é que veste as calças na sua família?
O cheque foi assinado quando já estavam na metade da segunda garrafa.
No sul da Califónia as coisas são feitas com rapidez. As casas comuns ali são construídas em um mês. Sob as ordens excitadas e minuciosas de Teal, a casa tesseract elevava-se vertiginosamente em direção ao céu em dias, não em semanas, e seu segundo andar, em feitio de cruz, prejetava-se em direção aos quatro cantos do mundo. Teve alguma dificuldade, a princípio, com os inspetores por causa desses quatro quartos salientes, mas, utilizando vigas resistentes e dinheiro fácil, conseguiu convencê-los da solidez da sua engenharia.
Conforme o combinado, Teal dirigiu o seu carro até a porta da frente da residência dos Bailey na manhã seguinte à volta do casal à cidade. Improvisou um toque especial na sua buzina de dois tons. Bailey espetou a cabeça para fora da porta da frente.
-- Por que não usa a campainha? -- disse
-- É muito vagarosa -- respondeu Teal, alegremente. -- Sou um homem de sção. A Sra. Bailey está pronta? Ah, aí está a senhora! Bem-vinda ao lar. Pule aqui dentro que temos uma surpresa para a senhora!
-- Você conhece Teal, minha querida -- disse Bailey, pouco à vontade.
A Sra. Bailey fungou: -- Conheço-o. Iremos no nosso carro, Homer.
-- Certamente, minha querida.
-- Boa idéia -- concordou Teal --, tem muito mais força do que o meu; chegaremos lá mais depressa. Eu dirijo, conheço o caminho. -- Tirou as chaves da mão de Bailey, acomodou-se no assento do motorista e já tinha o motor ligado antes que a Sra. Bailey pudesse fazer qualquer coisa.
-- Nunca precisam se preocupar quando dirijo -- disse Teal à Sra. Bailey, virando a cabeça ao falar, ao mesmo tempo que fazia zunir o possante automóvel pela avenida, virando depois no Sunset Boulevard --É uma questão de força e controle, um processo dinâmico, é minha especialidade; numca tive um acidente sério.
-- Você não precisará de mais do que um -- respondeu era, mordaz. -- Quer, por favor, manter os olhos no trânsito?
Teal tentou explicar a ela que a situação do tráfego era uma questão, não de vista, mas de uma intuitiva integração de direções, velocidades e probabilidades, porém Bailey interrompeu-o bruscamente. -- Onde está a casa, Quintus?
-- Casa? -- perguntou desconfiada a Sra. Bailey. -- Que história é essa de casa, Homer? Você andou aprontando alguma coisa sem me dizer nada?
Teal respondeu com seu melhor modo diplomático: -- Certamente que é uma casa, Sra. Bailey. E que casa! É uma surpresa de um marido devotado para a senhora. Espere até vê-la.
-- Vou esperar -- disse ela secamente. -- Em que estilo é?
-- Esta casa inaugura um novo estilo. É mais avançada que a televisão, é mais nova do que a semana que vem. Deve ser vista para ser apreciada. E por falar nisso -- continuou rapidamente, evitando uma resposta --, vocês dois sentiram o terremoto ontem à noite?
-- Terremoto? Que terremoto? Homer, houve um terremoto?
-- Só um pequenininho -- continuou Teal --, às duas da madrugada, mais ou menos. Se não estivesse acordado, não teria notado.
-- A Sra. Bailey estremeceu. -- Oh, esta terra horrível! Escutou isso, Homer? Poderíamos ter sido mortos na cama sem nunca saber o que aconteceu. Por que foi que me deixer convencer a deixar o Iowa?
-- Mas, minha querida -- protestou ele atrapalhado --, você queria vir para a Califónia, não gostava de Des Moines.
-- Não precisamos entrar em detalhes -- disse ela com firmeza. -- Você é um homem; deveria prever coisas como essa. Terremotos!
-- Isso é uma coisa que não precisa temer no seu novo lar, Sra. Bailey -- disse Tea. -- é completamente à prova de terremotos; cada parte está em perfeito equilíbrio dinâmico com a outra parte.
-- Bem, espero que esteja. Onde está essa casa?
-- Logo depois dessa curva. Aí está o cartaz. -- Um enorme cartaz, em feitio de seta, da espécie usada pelos corretores de imóveis, proclamava em letras grandes e brilhantes -- mesmo para o sul da Califónia:

A CASA DO FUTURO
Colossal -- Assombrosa -- Revolucionária
Veja como viverão seus netos
Q. Teal, Arquiteto

-- Naturalmente que isso será tirado dali -- disse ele, apressadamente, notando a expressão da Sra. Bailey --, logo que vocês se instalaram. -- Fez a curva e parou o carro, com um rangido de freio, em frente a Casa do Futuro. -- Voilà! -- exclamou Teal, observando seus rostos para ver a reação.
Bailey olhava com incredulidade a Sra. Bailey, sem disfarçar a aversão. Ambos viam uma massa cúbica simples que possuía portas e janelas, mas, sem nenhum outro detalhe de construção, salvo que era decorada com intricados desenhos matemáticos. -- Teal -- disse Bailey, lentamente --, que diabo você tem andado fazendo?
Teal olhou de seus rostos para a casa. A torre louca, com seus quartos salientes do segundo andar, desaparecera. Não restava nem um traço dos sete aposentos acima do andar térreo. Nada restava a não ser o único cômodo que descansava sobre os alicerces. -- Macacos me mordam! -- gritou. -- Fui roubado!
Começou a correr.
Mas não ajudou em nada. Tando do lado da frente como nos fundos, a história era a mesma: os outros sete quartos haviam desaparecido, sumido completamente. Bailey alcançou-o e agarrou-lhe o braço.
-- Explique-se. Que história é esta de ter sido roubado? Como é que foi construir uma coisa destas -- não foi o que combinamos.
-- Mas, eu não fiz isto. Construí exatamente o que planejamos construir, uma casa de oito cômodos na forma de um tesseract desdobrado. Fui sabotado; foi isso! Os outros arquitetos da cidade não tiveram coragem de me deixar acabar o projeto; sabiam que estariam liquidados se o fizessem.
-- Quando é que você esteve aqui pela última vez?
-- Ontem à tarde.
-- Tudo estava em ordem, então?
-- Sim. Os jardineiros já estavam terminando.
Bailey olhou em volta para a paisagem impecavelmente acabada. -- Não vejo como sete quartos poderiam ter sido desmontados e carregados daqui numa só noite sem estragar o jardim.
Teal também olhou ao seu redor. -- Não parece. Não posso compreender.
A Sra. Bailey juntou-se a eles. -- E daí? E daí? Será que devo distrair-me sozinha? Vamos dar uma olhada já que estamos aqui, apesar de que, estou avisando, Homer, não vou gostar.
-- É, já que estamos aqui -- concordou Teal, tirando uma chave do bolso, com a qual abriu a porta, deixando-os entrar pela porta da frente. -- Talvez encontremos algumas pistas.
O hall de entrada estava em perfeito estado, abertas as portas corrediças que o separavem do espaço para a garagem, de modo a permitir que tivessem uma boa visão do compartimento inteiro. -- Isto parece que está bem -- observou Bailey. Vamos até o telhado, tentar descobrir o que aconteceu. Onde está a escada? Ou será que roubaram isso também?
-- Oh não -- respondeu Teal --, olhe... -- Apertou um botão abaixo da chave da luz; um painel no forro deslizou e um lanço de escadas, leve e gracioso, desceu silenciosamente. Seus reforços era o gélido prateado do duralumínio, os degraus e a parte vertical dos mesmos de plástico transparente. Teal retorceu-se como um menino que conseguiu realizar um truque com as cartas, enquanto a Sra. Bailey degelava perceptivelmente.
Era uma beleza.
-- Muito bacana -- admitiu Bailey. -- Contudo, não parece levar a parte alguma.
-- Oh, isso... -- Teal seguiu o seu olhar. -- O alçapão levanta quando você se aproxima do topo. Poços de escadas abertos são um anacronismo. Venha. -- Como predissera, o tampo da escada saía do caminho à medida que subiam e permitiu que desembocassem no alto, porém, não como esperavam, no teto do único quarto. Encontraram-se parados no meio de um dos cinco quartos que compunham o segundo andar da estrutura original.
Pela primeira vez, que se saiba, Teal não teve nada a dizer. Bailey fez-lhe eco, mastigando o seu charuto. Tudo estava em perfeita ordem. Diante deles, através da porta aberta e de uma divisão translúcida, esta a cozinha, o sonho de um chef, com uma engenharia doméstica das mais modernas. Metal Monel, balcão de uma peça só, com luz escondida, arranjo funcional; à esquerda, a sala de jantar, formal, mas graciosas e hospitaleira, esperava hóspedes, sua mobília disposta com perfeição.
Teal sabia, antes de virar a cabeça, que o living e a saleta seriam encontrados numa existência tanto substancial quanto impossível.
-- Bem, devo admitir que isto é encantador -- aprovou a Sra. Bailey --, e a cozinha é fantástica demais para se acreditar -- embora nunca teria adivinhado, ao vê-la pelo lado de fora, que esta casa tivesse tando espaço em cima. Naturalmente, algumas mudanças terão de ser feitas. Aquela secretária, por exemplo -- se a colocássemos aqui e puséssemos o sofá lá...
-- Te fecha, Matilde -- interrompeu Bailey, bruscamente. -- O que você acha disto, Teal?
-- Ora, Homer Bailey! O desafo...
-- Te fecha, eu disse. Bem, Teal?
O arquiteto mexeu seu corpo desajeitado. -- Estou com medo de dizer. Vamos subir.
-- Como?
-- Assim. -- Tocou outro botão. Outra escada em cores mais profundas, companheira da ponte de fadas que os trouxera até ali, dava acesso ao andar seguinte. Subiram, a Sra. Bailey reclamando atrás deles, e encontraram-se no dormitório principal. As cortinas estavam fechadas, assim como as do andar de baixo, mas uma luz suave iluminou o aposento, automaticamente. Teal imediatamente acionou o botão que controlava outro lanço de escada e subiram às pressas até o gabinete de trabalho do andar superior.
-- Olhe, Teal -- perguntou Bailey, quando tinha recuperado o fôlego --, podemos chegar até o telhado acima desta sala? Então poderíamos dar uma olhada em volta.
-- Certamente; é uma plataforma-observatório. -- Subiram um quarto lanço de escadas, mas quando a tampa no alto se abriu para deixá-los passar ao outro nível, encontraram-se, não no telhado, mas, de pé na sala do andar térreo por onde tinham entrado na casa.
O rosto do Sr. Bailey adquiriu uma cor cinza-doentio. -- Anjos do céu -- gritou --, este lugar está assombrado. Nós vamos sair daqui! -- Agarrando sua mulher escancarou a porta e atirou-se para fora.
Teal estava preocupado demais para incomodar-se com a saída deles. Havia uma resposta para tudo isto, uma resposta na qual não acreditava. Mas foi forçado a interromper suas conjecturas porque gritos roucos chegavam-lhe de algum lugar lá em cima. Abaixou a escada e correu para o alto. Bailey estava no aposento central, curvado sobre a Sra. Bailey, que desmaiara. Teal percebeu a situação, foi diretamente para o bar da saleta e serviu três dedos de conhaque num copo que alcançou a Bailey. -- Pronto, isto a reanimará.
Bailey bebeu-o.
-- Isso era para a Sra. Bailey -- disse Teal.
-- Não discuta -- disse Bailey, secamente. -- Sirva outro. -- Teal teve a precaução de tomar um gole antes de voltar com a dose destinada à mulher do seu cliente. Encontrou-a quando abria os olhos.
-- Aqui, Sra. Bailey -- disse, tentando acalmá-la --, isto vai fazê-la sentir-se melhor.
-- Eu nunca toco em álcool -- protestou, tomando o conteúdo de um gole.
-- Agora, digam-me o que aconteceu -- sugeriu Teal. -- Pensei que ambos tivessem ido embora.
-- Mas nós fomos -- saímos pela porta da frente e nos encontramos aqui em cima, na saleta.
-- Diabos, é verdade! Hm-m-m... esperem um minuto. -- Teal entrou na saleta. Lá descobriu que a janela panorâmica, situada numa extremidade do aposento, estava aberta. Espiou para fora, cautelosamente. Fitou com espanto, não para uma paisagem da Califónia, mas, para dentro do aposento do andar térreo -- ou um fac-símile dele. Não falou nada, mas voltou ao poço da escada que deixara aberto e olhou para baixo. O andar térreo ainda estava no lugar. De algum modo, conseguia estar em dois lugares diferentes ao mesmo tempo -- em níveis diferentes.
Voltou para a sala central e afundou-se numa poltrona baixa em frente de Bailey, olhando-o por cima dos seus joelhos ossudos.
-- Homer -- disse solenemente --, você sabe o que aconteceu?
-- Não, eu não sei... mas, se não descobrir logo, alguma coisa vai acontecer, e muito drástica também!
-- Homer, isto é uma realização das minhas teorias. Esta casa é um verdadeiro tesseract!
-- Do que é que ele está falando, Homer?
-- Espere, Matilde... ora, Teal, isso é ridículo. Você aprontou alguma trapaça aqui e eu não vou tolerar isso -- quase matando a Sra. Bailey de susto e deixando-me nervoso. Só o que quero é sair daqui, sem mais amostras de seus alçapões e brincadeiras idiotas de mau gosto.
-- Fale por você, Homer -- interrompeu a Sra. Bailey, --, eu não fiquei com medo; só me senti esquisita por uns momentos. É o meu coração; todas as pessoas da minha família são delicadas e sensíveis. Agora, com respeito a esta tessi-coisa -- explique-se, Sr. Teal. Fale.
Contou-lhe do melhor modo possível, apesar das numerosas interrupções sobre a teoria que estava por trás da casa. -- Do modo como vejo as coisas, Sra. Bailey -- terminou --, esta casa, embora perfeitamente estável em três dimensões, não era estável em quatro dimensões. Construí uma casa no formato de um tesseract desdobrado; alguma coisa aconteceu com ela, uma sacudidela ou um tremor, e caiu no seu formato normal , dobrou-se. -- Estalou os dedos, subitamente. -- Já sei! O terremoto!
-- Terremoto?
-- Sim, sim, o pequeno abalo que tivemos ontem à noite. De um ponto de vista quadridimensional esta casa era como um plano equilibrado numa das arestas. Um empurrãozinho e dobrou-se nas juntas naturais, formando uma figura quadridimensional estável.
-- Pensei que você alardeava que esta casa era segura.
-- É segura -- tridimensionalmente.
-- Não chamo segura -- comentou Bailey, irritado -- uma casa que desmonta ao menor abalo.
-- Mas olhe à sua volta, homem! -- protestou Teal. -- Nada foi perturbado, nem uma peça de cristal rachada. Uma alternação através de uma quarta dimensão não pode afetar uma figura tridimensional do mesmo modo como não se pode sacudir as letras de uma página impressa. Se vocês estivessem dormindo aqui, ontem à noite, nunca teriam acordado.
-- É exatamente disso que tenho medo. E por falar nisso, o seu grande gênio já descobriu algum jeito de nos tirar desta arapuca?
-- Hem? Oh, sim, você e a Sra. Bailey saíram e aterrisaram de volta aqui em cima, não foi? Mas estou certo de que não haverá nenhuma dificuldade real -- entramos: podemos sair. Vou tentar. -- Levantou-se e desceu apressadamente antes de terminar o que estava dizendo. Abriu a porta da frente, saiu e encontrou-se fitando seus companheiros, da outra ponta da saleta do segundo andar. -- Bem, parece haver alguns pequenos problemas -- admitiu, alegremente. -- Uma mera tecnicalidade, embora sempre possamos sair pela janela. -- Afastou com um puxão os longos cortinados que cobriam as portas-janelas, situadas numa das paredes da saleta. Subitamente, estacou.
-- Hm-m-m... -- disse --, isto é interessante... muito.
-- O que é? -- perguntou Bailey, juntando-se a ele.
-- Isto. -- A janela dava diretamente para a sala de jantar em vez de dar para fora. Bailey voltou para o canto onde a saleta e a sala de jantar se encontravam com a sala central num ângulo de noventa graus.
-- Mas, isso não pode ser -- protestou --, essa janela está, talvez, de quatro e meio a seis metros da sala de jantar.
-- Não num tesseract -- corrigiu Teal. -- Veja. -- Abriu a janela e saiu, falando por cima do ombro.
Do ponto de vista dos Baileys ele simplemente desapareceu.
Mas não do seu. Levou alguns segundos para recuperar o fôlego. Então, cautelosamente, soltou-se da roseira com a qual ficara quase que irrevogavelmente entrelaçado, tomando mentalmente nota de nunca mais encomendar ajardinamento que incluísse plantas com espinhos, e olhou em volta.
Estava do lado de fora da casa. O volume compacto da sala do andar térreo elevava-se ao seu lado. Aparentemente, caíra do telhado.
Dobrou a esquina da casa correndo, abriu a porta da frente, com violência, e subiu correndo as escadas. -- Homer! -- chamou. -- Sra. Bailey! Encontrei uma saída!
Bailey pareceu mais aborrecido do que contente em vê-lo. -- O que foi que aconteceu com você?
-- Caí para fora. Estive do lado de fora da casa. Vocês podem fazer isso com a mesma facilidade -- apenas atravessem essas portas-janelas. Cuidado com a roseira, talvez tenhamos que construir outra escada.
-- Como foi que voltou a entrar?
-- Pela porta da frente.
-- Então sairemos da mesma maneira. Venha, querida. -- Bailey enfiou, resolutamente, o chapéu na cabeça e desceu as escadas com passo firme, a esposa agarrada ao seu braço.
Teal encontrou-os na saleta. -- Eu podia ter-lhes dito que isso não funcionaria -- observou. -- Agora, eis o que devemos fazer: do modo como vejo as coisas, numa figura quadridimensional, um homem tem duas escolhas cada vez que cruza uma linha de junção, como uma parede ou um limiar. Comumente, ele fará uma volta de noventa graus na quarta dimensão, só que não sentirá isso nas suas três dimensões. Olhem. -- Teal atravessou a mesma janela pela qual caíra há poucos comentos. Atravessou-a e chegou à sala de jantar, bem onde estava, ainda falando.
-- Observei onde ia e cheguei onde tencionava. -- Voltou para a saleta. -- Da outra vez não prestei atenção, desloquei-me através do espaço normal e caí para fora da casa. Deve ser um caso de orientação subconsciente.
-- Detestaria ter de depender de orientação subconsciente quando saio de manhã para apanhar o jornal.
-- Você não terá de fazê-lo; tornar-se-á automático. Bem, para sair da casa, desta vez -- Sra. Bailey, se a senhora ficar de pé aqui, com as costas para a janela e pular para trás, tenho absoluta certeza de que a senhora aterrisará no jardim.
O rosto da Sra. Bailey expressava sua opinião sobre Teal e suas idéias. -- Homer Bailey -- disse ela com voz esganiçada, -- Você vai ficar parado aí e deixar que ele sugira uma coisas des...
-- Mas, Sra. Bailey -- tentou explicar Teal --, podemos amarrar uma corda na senhora e baixá-la fácil.
-- Esqueça, Teal -- interrompeu Bailey, bruscamente. -- Vamos ter de encontrar coisa melhor do que essa. Nem a Sra. Bailey nem eu estamos em condições de pular.
Teal ficou momentaneamente mudo; seguiu-se um curto silêncio. Bailey quebrou-o com: -- Você escutou isso, Teal?
-- Escutei o quê?
-- Alguém falando a distância. Você não acha que talvez haja mais alguém na casa, pregando peças na gente?
-- Oh, não há uma chance. Eu tenho a única chave que existe.
-- Mas, eu tenho certeza -- confirmou a Sra. Bailey. -- Estou ouvindo-os desde que entramos. Vozes. Homer, não posso agüentar muito mais disto. Faça alguma coisa.
-- Ora, ora, Sra. Bailey -- disse Teal, tentando acalmá-la --, não fique perturbada. Não pode haver mais ninguém na casa, mas irei investigar para ter certeza. Homer, permaneça aqui com a Sra. Bailey e fique de olho nos quartos deste andar. -- Passou da saleta para a sala do andar térreo e dali para a cozinha e depois para o quarto de dormir. Isto levou-o de volta à saleta, por um caminho em linha reta, isto é, indo diretamente para a frente todo o trajeto, ele retornou ao lugar de onde partira.
-- Não há ninguém por aqui -- disse. -- Abri todas as portas e janelas no caminho... menos esta. -- Chegou à janela do lado oposto àquela por onde caíra minutos atrás e descerrou as cortinas.
Viu um homem de costas para ele a quatro aposentos de distância. Teal abriu a porta-janela e mergulhou na outra sala gritanto: -- Lá vai ele! Pare, ladrão!
A pessoa, evidentemente, ouviu-o: fugiu precipitadamente. Teal perseguiu-o, seus membros desajeitados mexendo-se ao mesmo tempo como um polichinelo, pelo living, cozinha, sala de jantar, saleta -- sala após sala -- entretanto, apesar dos mais árduos esforços de Teal, a distância de quatro quartos que o intruso levava de vantagem quando começou, não parecia diminuir.
Viu o perseguido pular desajeitado, porém rapidamente, por cima do caixilho baixo da porta-janela e, ao fazê-lo, o chapéu caiu de sua cabeça. Quando chegou ao lugar onde o intruso perdera o chapéu, abaixou-se para apanha-lo, satisfeito de ter uma desculpa para parar e tomar fôlego. Voltou para a saleta.
-- Acho que ele escapou -- disse. -- De qualquer forma, aqui está o chapéu dele. Talvez possamos identifica-lo.
Bailey tomou o chapéu e olhou para ele depois fungou e enfiou-o na cabeça de Teal. Ajustava-se com perfeição. Teal parecia perplexo; tirou o chapéu e examinou-o. Na carneira viam-se as iniciais "Q.T.". Era o seu próprio chapéu.
Lentamente, a compreensão filtrou-se através das feições de Teal. Voltou a porta-janela e olhou para a série de aposentos pelos quais correta atrás do misterioso estranho. Viram-no agitar os braços como um semáforo.
-- O que é que está fazendo? -- perguntou Bailey.
-- Venha ver. -- Os dois juntaram-se a ele e seguiram seu olhar, fixando com olhos esbugalhados o mesmo que ele fitava. A quatro aposentos de distância, viram as costas de três pessoas, dois homens e uma mulher. O mais alto e magro dos dois homens agitava os braços de maneira idiota.
A Sra. Bailey deu um grito e desmaiou novamente.

Minutos depois, quando a Sra. Bailey estava reanimada e já um tanto mais composta, Bailey e Teal fizeram um balanço da situação.
-- Teal -- disse Bailey --, não vou perder o meu tempo em botar a culpa em você; as recriminações são inúteis e estou certo de que você não planejou que isto acontecesse, mas suponho que você percebe que estamos em sérios apuros. Como é que vamos sair deste lugar? Agora parece que vamos ficar aqui até morrer de fome, cada quarto dá para outro quarto.
-- Oh, não é tão mau assim. Saí uma vez, você sabe.
-- Sim, mas você não pode repetir isso -- você tentou.
-- De qualquer forma, não tentamos todos os quartos. Ainda temos o gabinete de trabalho.
-- Ah, sim, o gabinete de trabalho. Fomos por lá logo que chegamos e não paramos. Tem idéia se podemos sair pelas janelas de lá?
-- Não fique muito esperançoso. Matematicamente, ele deve dar para as quatro peças laterais deste andar. Entretanto, nunca abrimos as cortinas; talvez devêssemos fazê-lo.
-- Bom, não vai fazer mal nenhum. Querida, acho que é melhor você ficar aqui e descansar...
-- Ficar sozinha neste lugar horrível? Isso é que não! -- A Sra. Bailey levantou-se de um pulo do sofá onde estivera se recuperando, antes mesmo de acabar de falar.
Subiram a escada. -- Esta é a sala interna, não é, Teal? -- perguntou Bailey, quando passavam pelo quarto de dormir principal e subiam ao estúdio. -- Quero dizer se é o cubo pequeno do seu diagrama, que estava no meio do cubo grande e completamente rodeado.
-- Isso mesmo -- concordou Teal. -- Bem, vamos dar uma olhada. Acho que esta janela deve dar para a cozinha. -- Agarrou as cordas das venezianas e puxou-as.
Não dava para a cozinha. Ondas de vertigem sacudiram-nos. Involuntariamente, caíram no chão, tentando em vão agarrar-se aos desenhos do tapete para não cair. -- Feche-a! Feche-a! -- gemeu Bailey.
Dominando, em parte, um medo atávido e primitivo, Teal arrastou-se de volta à janela e conseguiu soltar a veneziana. A janela dava para baixo, em vez de para fora, de uma altura terrificante.
A Sra. Bailey desmaiara novamente.
Teal voltou para apanhar mais conhaque, enquanto Bailey esfregava os pulsos da esposa. Quando ela recuperou os sentidos, Teal foi cautelosamente até a janela e levantou uma ponta da persiana. Escorando os joelhos, estudou o panorama. Virou-se para Bailey: -- Venha olhar isto, Homer. Veja se você o reconhece.
-- Você fique longe daí, Homer Bailey!
-- Ora, Matilde, terei cuidado. -- Bailey juntou-se a Teal e olhou para fora.
-- Vê lá em cima? Aquele é o Edifício Chrysler, isto é certo. E lá está o rio East e o Brooklyn. -- Olhavam diretamente para baixo, pelo lado de um prédio tremendamente alto. Mais de uns trezentos metros além, uma cidade de brinquedo, muito real e ativa, espalhava-se bem à frente de ambos.
-- O que mais ou menos consigo entender é que estamos olhando para baixo, por um dos lados do edifício Empire State. de um ponto acima de sua torre.
-- E o que é? Uma miragem?
-- Não creio -- é perfeito demais. Acho que o espaço dobrou-se através da quarta dimensão, aqui, e que estamos olhando além da dobra.
-- Você quer dizer que, realmente, não estamos vendo isso?
-- Não, estamos vendo isso de verdade. Não sei o que aconteceria se pulássemos por esta janela, mas, eu, de jeito nenhum, quero experimentar. Mas, que vista! Rapaz, que vista! Vamos experimentar as outras janelas.
Aproximaram-se da outra janela com mais cautela, e foi bom que assim fizessem, pois era ainda mais desconcertante, fazia vacilar a razão mais do que a outra que dava para a altura vertiginosa do arranha-céu. Era uma simples paisagem marinha, vasto oceano e céu azul -- porém o mar ficava onde deveria ser o céu e vice-versa. Desta vez estavam mais preparados para isso, mas ambos sentiram enjôo à vista das ondas rolando no alto; rapidamente, abaixaram a cortina sem dar chance à Sra. Bailey de ser perturbada por aquilo.
Teal olhou para a terceira janela. -- Tem coragem de experimentar, Homer?
-- Hrrumpf - bem, não ficaremos satisfeitos se não o fizermos. Devagar. -- Teal levantou a cortina alguns centímetros. Não viu nada e levantou-a mais um pouco -- ainda nada. Lentamente, levantou-a até que a janela estivesse completamente visível. Olharam para fora, para nada.
Nada, absolutamente nada. Que cor tem o nada? Não seja tolo! Que forma tem? Forma é atributo de alguma coisa. Não tinha nem profundidade nem forma. Nem mesmo cor preta tinha. Era nada.
Bailey mastigava o seu charuto. -- Teal, o que é que você pensa disto?
A atitude despreocupada de Teal foi sacudida pela primeira vez. -- Não sei, Homer; realmente, não sei -- mas acho que essa janela deveria ser murada. -- Olhou, por uns instantes, para a cortina abaixada. -- Acho que olhamos para um lugar onde o espaço não é. Olhamos do outro lado de uma esquina quadridimensional e não havia nada lá. -- Esfregou os olhos. -- Estou com dor de cabeça.
Esperaram um pouco antes de enfrentar a quarta janela. Como uma carta, ainda não aberta, poderia não conter más notícias. A dúvida deixava alguma esperança. Finalmente, o suspense ficou intolerável e Bailey acabou puxando a corda da persiana sem dar atenção aos protestos da esposa.
Não era tão ruim. Uma vista estendia-se à sua frente, em posição normal, a um nível em que o gabinete de trabalho parecia estar no andar térreo. Mas era nitidamente hostil.
Um sol quente, muito quente, abatia-se de um céu cor de limão. O terreno plano parecia queimado e estéril, de um marrom desbotado, incapaz de sustentar qualquer tipo de vida. Porém, vida havia: estranhas árvores atrofiadas que elevavam braços retorcidos e nodosos para o céu. Pequenas moitas de folhas espinhentas cresciam nas extremidades dessa vegetação disforme.
-- Santo Deus -- suspirou Bailey --, onde é isso?
Teal sacudiu a cabeça, o olhar preocupado. -- Isso é demais para mim.
-- Não se parece com nada na Terra. Parece mais com outro planeta -- Marte, talvez.
-- Não saberia dizer. Mas, você sabe, Homer, poderia ser pior do que isso, pior do que outro planeta, quero dizer.
-- Hem? O que é que está dizendo?
-- Poderia ser completamente fora do nosso espaço. Não tenho certeza de que esse seja o nosso sol. Parece brilhante demais.
A Sra. Bailey aproximara-se timidamente, juntando-se a eles, e agora olhava para a bizarra paisagem. -- Homer -- disse com voz apagada --, essas árvores horrorosas... elas me assustam.
Ele deu-lhe uma palmadinha na mão.
Teal tentou abrir o trinco da janela.
-- O que é que você está fazendo? -- perguntou Bailey.
-- Pensei que se enfiasse a cabeça do lado de fora da janela poderia dar uma olhada e dizer mais alguma coisa.
-- Bem... certo -- disse Bailey com má vontade --, mas tome cuidado.
-- Tomarei. -- Abriu a janela um pouquinho e cheirou. -- O ar é bom, pelo menos. -- Abriu toda a janela.
Sua atenção foi desviada antes que pudesse pôr seu plano em prática. Um tremos desagradável, como o primeiro sinal de náusea, sacudiu todo o prédio, por um longo segundo e logo parou.
-- Terremoto! -- Todos falaram ao mesmo tempo. A Sra. Bailey jogou os braços em volta do pescoço do marido.
Teal engoliu em seco e se recompôs, dizendo: -- Tudo bem, Sra. Bailey. Esta casa é perfeitamente segura. A senhora sabe que pode esperar tremores de acomodação do terreno depois de um abalo como o de ontem à noite. -- Mal acabara de recompor suas feições numa expressão de confiança, quando veio o segundo tremos. Este não foi nenhuma trepidação suave, mas a verdadeira ondulação nauseante.
Em todo californiano, nativo ou enxertado, existe um reflexo primitivo, profundamente enraizado. Um terremoto enche-o de uma claustrofobia que lhe sacode a alma, que o impele cegamente a sair de casa!. Escoteiros modelos empurrarão para fora do seu caminho velhas vovós para obedecerem a esse impulso. Conta-se que Teal e Bailey aterrissaram em cima da Sra. Bailey. Evidentemente, ela deve ter sido a primeira a saltar pela janela. A ordem de precedência não podia ser atribuida ao cavalheirismo; deve-se presumir que ela estivesse numa posição mais adequada para saltar.
Acalmaram-se, puseram os pensamentos em ordem e tentaram tirar a areia dos olhos. Suas primeiras sensações foram de alívio e de sentir a areia firme do deserto embaixo deles. Então, Bailey percebeu alguma coisa que os fez ficar de pé e cortar o discurso que a Sra. Bailey estava a ponto de fazer.
-- Onde está a casa?
Sumira. Não havia nenhum sinal dela. Estavam parados no centro de uma desolação plana: o panorama que tinham visto da janela. Mas, além das árvores retorcidas, torturadas, não se via nada além do céu amarelo e a luminária lá no alto, cujo resplendor de fornalha era já quase insuportável.
Bailey olhou em volta, lentamente, depois voltou-se para o arquiteto.
-- E então, Teal? -- Sua voz era ameaçadora.
Teal deu de ombros, com desânimo. -- Gostaria de saber. Gostaria mesmo de ter certeza de que estamos na Terra.
-- Bem, não podemos ficar parados aqui. É morte certa. Que direção tomaremos?
-- Qualquer uma, acho. Vamos manter o rumo pelo sol.
Já tinham caminhado penosamente, por uma distância indeterminada, quando a Sra. Bailey pediu para descansar. Pararam. Teal disse, num aparte, para Bailey: -- Tem alguma idéia?
-- Não... não, nenhuma. Escute, ouve alguma coisa?
Teal escutou. -- Talvez... a não ser que seja a minha imaginação.
-- Parece um automóvel. Puxa, é um automóvel!
Chegaram à rodovia que passava a menos de noventa metros. O automóvel, quando chegou, era apenas um velho caminhão pequeno, dirigido por um rancheiro. Parou, fazendo barulho no pedregulho, ao vê-los abanar. -- Estamos perdidos. Pode nos ajudar?
-- Certamente. Entrem.
-- Para onde vai?
-- Para Los Angeles.
-- Los Angeles? Diga, que lugar é este?
-- Ora, vocês estão bem no meio da Floresta Nacional Joshua-Tree.
A volta voi tão deprimente quanto a Retirada de Moscou. O Sr. e Sra. Bailey estavam sentados na cabina com o motorista, enquanto Teal sacolejava na parte traseira do caminhão, tentando projeger a cabeça do sol. Bailey subornou o bom rancheiro para que fizesse um desvio até onde estava a casa tesseract, não porque quisesse vê-la novamente, mas, para apanhar o seu carro.
Finalmente, o rancheiro virou a curba que os trouxe de volta ao lugar de onde começaram. Mas a casa não estava mais lá.
Não ficara nem mesmo o quarto do andar térreo. Desaparecera. Os Bailey, interessados, mesmo sem querer, examinaram os alicerces junto com Teal.
- -Você tem alguma resposta para isto, Teal? -- perguntou Bailey.
-- Deve ser que no último abalo ela simplesmente caiu noutra seção do espaço. Posso ver agora que deveria tê-la ancorado nos alicerces.
-- Não é só isso o que você deveria ter feito.
-- Bem, não vejo motivo para ficar abatido com isto. A casa estava no seguro e eu aprendi uma enormidade. Há possibilidades, homem, possibilidades! Puxa, neste momento tenho uma grande, nova e revolucionária idéia para uma casa...
Teal desviou rapidamente a cabeça para não ser atingido por Bailey. Sempre foi um homem de ação.

05/07/2011

O MIRANTE GEOCÊNTRICO

Não conseguia imaginar um ponto de observação astronômico melhor que aquele. Com aquele céu límpido pontilhado de estrelas era impossível não ter a ilusão perfeita de estar no centro de uma gigantesca abóbada, observando o resultado de um mecanismo oculto atrás de uma parede inatingível. Mas havia uma mancha de cor leitosa dividindo em duas esta abóbada de absoluto breu, pontilhada aqui e ali por pontos luminosos isolados: era a via-láctea. Em pleno século XXI, logicamente eu sabia que não estava observando aquilo tudo do centro de coisa alguma. Mas naquele lugar especial era até possível entender porque nós, seres humanos tão orgulhosos de nossa racionalidade, demoramos tanto tempo até compreender que estávamos errados na interpretação daquilo que víamos na "abóbada celeste".

Havia uma grama aconchegante cobrindo toda aquela planície. Árvores mais altas, de copas densas, cercavam aquele meio-círculo coberto de grama, exceto por duas trilhas que entravam por entre estas árvores, uma de cada lado do semicírculo. À frente, direção oeste, havia uma cerca. Além desta cerca, um precipício. A cerca era bem frágil, e ficava óbvio que sua finalidade não era realmente a de impedir que alguém caísse no tal precipício caso estivesse determinado a isto. Ela só estava lá para lembrar que havia um precipício neste lugar, que dificilmente seria percebido de outra forma. Ao se aproximar desta cerca baixa, que mal chegava à altura da cintura, via-se lá embaixo uma praia cercada de altos paredões rochosos dos dois lados. Em frente se via o horizonte do oceano, onde neste exato momento aparecia um dos últimos pedaços dourados do sol. Um pouco antes das cercas que avisavam daquele mortal precipício havia um banco de madeira, praticamente no meio do semicírculo cercado pelas árvores. Sim, havia uma simetria quase artificial naquele mirante que reforçava ainda mais a ilusão de se estar observando o céu a partir do centro de uma esfera cósmica.

Quando a vi chegando pela primeira vez daquela trilha da direita eu estava observando a estrela alfa de Órion, a gigante vermelha Betelgeuse. Fazia observações a olho nu, algo bastante natural naquela situação em particular, de céu tão límpido à beira do mar. Por isto fiquei bastante intrigado vendo aquela criatura chegar com todo seu aparato mecânico. Mas aquele local de observação comportava sem problema algum dois observadores, de modo que neste primeiro encontro fiquei quieto no meu canto, fazendo minhas observações, enquanto ela fazia as dela a alguma distância. Bom, admito que minha timidez também contribuiu para que a aproximação não tivesse ocorrido desta primeira vez.

No dia seguinte ela voltou com todo o seu aparato: astrolábio, telescópio, bússola... Para mim bastava uma carta celeste e uma lanterna. Na verdade a lanterna era quase desnecessária, pois havia uma lua cheia formidável naquela noite! Isto me motivou a deixar um pouco de lado a procura de estrelas de baixa magnitude para observar os detalhes da superfície lunar, por muito tempo confundidos com mares e oceanos. Notei que ela também se ocupava da mesma tarefa, porém com a inestimável ajuda do jogo de lentes de seu telescópio. Trocamos alguns olhares, mas continuamos cada um em seu canto fazendo as próprias observações astronômicas. E assim foram mais dois, três, quatro dias.

No quinto dia ela chegou antes de mim. Não me lembrava muito bem se eu havia chegado pela trilha da direita ou da esquerda naquele mirante. Ou melhor... sim, definitivamente vim pela da direita, a que ela sempre havia tomado nos dias anteriores. Se não fosse assim, com certeza não teria passado por ela ao chegar. Desta vez eu trazia um binóculo, numa esperança remota de ver a débil mancha de um novo cometa no céu, recentemente descoberto. Como sempre nos últimos dias, o céu estava límpido. Com alguma sorte, eu conseguiria ver alguma coisa pelo meu modesto binóculo.

- Ah! Também resolveu se render à tecnologia?

Demorei um pouco para notar que ela havia me dito algo, e um pouco mais para entender o que dizia. Lembrando do binóculo que trazia pendurado ao pescoço, retribui com um sorriso. Olhei bem para ela: era uma moça bem bonita! Pensei: "Será que é astrônoma, ou estudante de astronomia?" Olhei para o equipamento que ela trazia para observação e logo percebi a idiotice de minha pergunta: "Não ela não estuda astronomia nada!! Esse telescópio que ela trás aqui é para caçar borboleta..." Ainda bem que esta pergunta ficou só em pensamento! Nunca me perdoaria se parecesse um imbecil logo na primeira meia dúzia de palavras que trocasse com aquela desconhecida. Achei melhor permanecer em silêncio pelo menos mais aquela vez, e fui para meu canto habitual de observação enquando ela permaneceu no dela. Para falar a verdade, desta vez eu fiquei um pouco mais perto dela do que o habitual.

Cerca de 2 horas da manhã, e o cometa alvo de minha observação deveria agora estar no zênite. Terminei de comer meu lanche de sanduíche de atum e olhei para cima, pelo meu binóculo. Sabia que ele deveria estar a cerca de um quarto de grau daquela estrela, mas por mais que procurasse não consegui ver o mínimo brilho de sua cauda. Nada! Foi frustrante. Percebi que ela também não estava obtendo resultados, mesmo com um equipamento bem mais potente. Se ela nada estava conseguindo com aquele caro telescópio, que chance eu tinha de ver algo com este binóculo barato? Mas continuei tentando a noite toda por pura teimosia. Lógico que não vi nada. Ela havia percebido meu desapontamento, pois tentou me consolar:

- Ainda está muito longe hoje! Amanhã ele vai estar mais perto da Terra, então será mais brilhante. Talvez tenhamos mais sorte...

Não respondi nada de novo, temendo falar qualquer besteira. É incrível como um rosto bonito é capaz de nos deixar mudos! Mas respondi sorrindo com o olhar, concordando que amanhã teríamos melhores resultados.

...............................

Voltei no dias seguinte por volta de 8 horas da noite. Aquele astro errante cruzava o céu a uma velocidade vertiginosa, de tal forma que ele deveria aparecer hoje nascendo por detrás das copas das árvores daquele semicírculo por volta de 10 horas da noite. Havia pouco tempo para eu fazer um rápido lanche e fixar uma pequena luneta ao tripé, que achava mais apropriado para a observação do que aquele ridículo binóculo da noite anterior. Ela chegou por volta de 15 para as 9 horas, pela trilha de sempre. Mas desta vez estava mais atrapalhada em trazer o equipamento, e logo percebi o porquê: ela trazia dois telescópios! Montou tudo, comeu rapidamente um lanche que tirara da mochila, e então se dirigiu a mim:

- Acho que você não vai conseguir enxergar nada nesta lunetinha aí. Te trouxe um telescópio!

Lutei violentamente contra a gagueira, mas finalmente respondi:

- Obrigado!

Era um excelente equipamento, possuindo até mesmo um servomecanismo programável capaz de corrigir a rotação da terra para acompanhar seu alvo no céu. O cometa foi pontual! Mas que observação ridícula, não é mesmo? Por que não seria? Felizmente consegui evitar de vocalizar também este comentário. Não sei, talvez não tenha conseguido evitar e tenha pensado alto, pois a ouvi dizer:

- Por que ele atrasaria? Acha que o cometa seria louco em desrespeitar uma ordem de Sir Isaac Newton? - e me abre um sorriso maravilhoso.

- Não, lógico que não! - foi o que me limitei a responder, evitando fazer qualquer outro comentário infeliz.

Ela havia ajustado muito bem o servomecanismo dos telescópios, pois por várias horas ele seguiu perfeitamente no céu aquela mancha tênue do cometa corrigindo a rotação da terra, sem que nunca a imagem desviasse do centro da ocular do equipamento. Percebi que ela não era apenas uma observadora de estrelas amadora como eu, mas que deveria ter uma prática diária com isto. Tomei coragem e perguntei:

- Você estuda astronomia?

- Estudei. Hoje trabalho com isto. Sou astrônoma profissional.

- Eu desconfiava que sim. Sabe, quando te vi chegando com os telescópios... - ops! meu desconfiômetro de comentários cretinos disparou neste momento. Tentei emendar uma pergunta para mudar de assunto: - Qual o seu nome?

- Ágata.

Me pareceu que ela completaria com "E o seu?", mas não o fez. Na verdade, pareceu que seu sorriso se apagou por um breve instante. Mas senti um alívio enorme por ela não ter perguntado isto, porque... eu não lembrava!!! Não é a coisa mais idiota do mundo? Que garota era esta capaz de me balançar tanto a ponto de me escapar, por uns momentos, meu próprio nome? Eu simplesmente não me lembrava qual era o meu nome naquela hora, e teria ficado numa situação muito embaraçosa se Ágata tivesse me perguntado isto. Felizmente ela não perguntou. Mas mesmo assim, também fiquei intrigado em entender por que ela NÃO PERGUNTOU. Não seria a continuação esperada daquele diálogo, em que dois desconhecidos se apresentam?

- É estranho perceber que nos dias de hoje ainda se descobre cometas assim, vindo sem aviso nenhum, não é? - tentei mudar de assunto. Ela pareceu aliviada com a mudança.

- Sim, este cometa é bem particular. Normalmente se procura cometas ou asteróides novos que tenham órbitas bem próximas do plano da eclíptica. Mas este é diferente, a órbita dele é quase perpendicular ao plano da eclíptica. Ninguém espera encontrar cometas vindo desta direção, e foi por isso que demorou tanto para alguém perceber que ele estava perto.

Me aproximei novamente da ocular do telescópio para observá-lo.

- Espero que não caia na nossa cabeça! - ah não! aqui estou eu de novo falando besteiras....

- Fica tranqüilo, isso não vai acontecer. - abrindo o olho direito um pouco, o que não estava na ocular do telescópio, percebo que Ágata tenta tocar minha mão. Mas vejo que ela recua, e também acho melhor não comentar nada.

Havia algo particular naquele cometa: parecia ter duas caudas. Deveria comentar isto com ela? Estava claro que elas existiam, não podia estar vendo coisas. Tomei coragem:

Estranho, parece que ele tem duas caudas.

Ele tem sim, não é tão raro isto acontecer.

Uma cauda brilhante apontava na direção contrária daquela onde deveria estar osol. Outra, um pouco menor, se desviava numa curva.

- A mais brilhante é iônica, feita de partículas carregadas eletricamente e repelidas pela força do vento solar. A que faz uma curva é de poeira bem fina, deslocadas pela pressão dos raios solares. Ela se curva porque a força de repulsão é bem mais fraca.

- Pressão da luz? Isto é novidade para mim...

- Não dá para perceber aqui, a atmosfera é densa demais para isto ser observável. Mas em ambiente de quase vácuo é perceptível, apesar de fraco. Já ouviu falar da idéia de veleiros interestelares?

- Naves que seriam capazes de se mover com o vento solar?

- Não, estes são os veleiros solares. Dentro do sistema solar faz mais sentido usar estes mesmo, pois a força do vento solar é bem maior que a pressão da luz. Mas entre as estrelas, onde os efeitos do vento solar seriam irrisórios, a idéia é ser mesmo empurrado pela luz, usando a pressão dos fótons colidindo numa superfície refletora gigantesca. O efeito é pequeno, mas constante e de graça. Se não existir muita pressa em chegar ao destino, é a forma ideal de se viajar entre as estrelas.

A noite continuou com nós especulando vários meios de se transportar pelo espaço num futuro próximo, ou distante... Talvez distante demais, mas era bom poder sonhar com eles. Não percebi o tempo passando, nem como acabou, como e quando ela foi embora, como voltei... Mas achei incrível poder discutir estas idéias malucas com mais alguém.

.........................

A passagem daquele cometa realmente havia sido muito rápida, de forma que no dia seguinte ele já estava tão longe da Terra que nem o telescópio de Ágata ela capaz de torná-lo visível. Eu ainda não me sentia bem à vontade com Ágata, mas ela já se mostrava bastante falante. Era mesmo entusiasmada com seu trabalho, falava de suas pesquisas com exoplanetas, as técnicas para detectá-los, a descoberta de anãs marrons extremamente frias...

- A temperatura na superfície destas estrelas é apenas um pouco maior que a da água fervente. Até mesmo mercúrio, um minúsculo planeta do nosso sistema solar, é mais quente que este tipo de estrela.

Apesar de bastante interessado pelo assunto, minhas observações eram meramente as de um amador. Era fascinante poder discutir sobre estes assuntos com uma pessoa que realmente fazia daquilo sua profissão.

- Mas você trabalha de dia?

- Sim, por quê?

- Como vê as estrelas? - perguntei, já desconfiando que era uma pergunta idiota.

- Trabalho em radioastronomia, bobinho! Não preciso usar meus olhos para isto. Uso os olhos do computador. - e abre aquele sorriso que já começava a me conquistar de uma forma que já parecia sem retorno.

- Ah, entendo! Então observar estrelas aqui é só um hobby...

- É.

Que grande coincidência termos escolhido aquele mesmo lugar para nossas observações!

- Trabalha de dia, e durante a noite vem aqui ver as estrelas da maneira antiga.

- Isso mesmo!

- E quando é que você dorme?

Ágata fecha o rosto. Percebi que acabara de fazer uma pergunta impertinente, embora não soubesse exatamente em que ponto ela era embaraçosa.

- Desculpa, não é da minha conta...

- Não é isso. É que... - ela está confusa. - Ah, esquece!!

Me parece que ela está desesperada para mudar de assunto ao comentar:

- É possível que fiquemos sem noites por algumas semanas, daqui a uns 10 ou 20 anos.

- Como assim?

- Venho estudando nos últimos meses uma possível candidata a supernovaa estrela Eta Carinae. Está muito instável atualmente, a variação de brilho dela já acontece em questão de dias.

Não sabia do fato. E fiquei realmente preocupado!

- Corremos risco?

- Fica tranqüilo, está distante demais! Talvez corramos o risco de passar um ou dois meses sofrendo de uma insônia terrível, pois especula-se que durante a explosão ela vá iluminar nossas noites com o brilho de umas 10 luas cheias. Talvez tenha ocorrido o mesmo fenômeno uns 2000 anos atrás com outra supernova, que conhecemos hoje como a Estrela de Belém.

- E vai acontecer quando?

- Ainda não temos como saber, mesmo porque nunca foi observado o fenômeno nos tempos modernos. Mas as teorias atuais sobre o ciclo de vida das esdtrelas nos dão certa segurança que vai acontecer em algum instante dentro das próximas décadas. Mas certeza do dia exato... isto ainda não podemos determinar. Existe uma incerteza quanto a massa exata desta estrela para que possamos fazer um cálculo mais preciso.

- Gostaria de ainda estar por aqui para observar isto.

- Como astrônoma, eu também sonho com isto. Nem que já esteja usando bengala quando acontecer!

- Posso vir aqui neste mirante com você, para observarmos isto juntos.

Juro que falei isto sem pensar, só para continuar o assunto. De forma alguma foi uma tentativa de cantada, mas percebi que Ágata ficou sem graça. E sorriu:

- He he, eu de bengala, e você de andador.

Foi esta a primeira vez que aconteceu aquele fenômeno do carrilhão. Pensando bem, é possível que tenha ocorrido na noite anterior também e eu não tenha percebido. Começava com um tênue som de sinos distantes, que crescia progressivamente até se tornar ensurdecedor. O som se tornava tão intenso a ponto de perceber claramente que perdia a consciência. Não lembro de nada que aconteceu em seguida.

...........................

No dia seguinte Ágata me encontrou sentando no banco de madeira no centro do semicírculo do mirante. O sol começava a tocar a linha de oceano no horizonte oeste à nossa frente. As cores do céu à sua volta começavam a descer o espectro luminoso com o passar do tempo, primeiro amarelo, depois laranja, vermelho intenso. Ela sentou-se ao meu lado quieta, também estava observando aquele belo arrebol. Os pontos brilhantes apareciam à medida em que o céu escurecia, com o sol mergulhando nas águas. Mas que besteira, é lógico que ele não estava mergulhando em água nenhuma! Ainda bem que só pensei nisto, e não falei tal besteira em voz alta para que fosse ouvida por uma astrônoma profissional.

Ainda estava vívida em minhas lembranças o “apagão” da noite anterior. Que teria acontecido? Esperava que Ágata me dissesse algo, mas dela não veio nenhum comentário. Eu teria desmaiado? Como saí de lá? Não me lembrava. Mais ainda: como havia chegado hoje naquele mirante, naquele banco, observando o por do sol? Me lembrava muito menos ainda... Mas não quis incomodar Ágata com isto. Sentia que, se algo importante tivesse acontecido, ela comentaria. Ou será que me escondia algo? Teria eu algum problema neurológico? Não, ela comentaria imediatamente se tivesse ocorrido algo grave, para minha própria segurança. Olhei para o lado: ela parecia especialmente bonita hoje! Amanhã eu pergunto a ela o que aconteceu. Hoje não. Seria imperdoável estragar aquele momento.

- Você não trouxe seus equipamentos hoje, não é?

Ela me olhou com ternura.

- Hoje não, eles só atrapalhariam. Hoje vim observar você...

Engasguei. Por favor, não pensem que sou machista, mas é que realmente não estou acostumado a ver uma garota tomando tal iniciativa, lançando uma cantada destas. Me pegou de surpresa!

- Ah, mas tem coisa bem mais interessante para observar aqui na nossa frente, não acha?

O último pedaço no topo do sol acabava de mergulhar nas águas. A lua não havia ainda surgido, de modo que escureceu rápido. Percebi que, pouco a pouco, Ágata tentava encostar em mim. Ou será que era eu que o fazia? Ou ambos? Não importa. Era noite completa quando percebi que estávamos lado a lado. Ambos indecisos, com medo de ser ousado demais, mas ao mesmo tempo torcendo para que o outro tomasse a iniciativa. Isso durou minutos, mas foi interrompido por uma coincidência incrível!

Lembram que o sol havia acabado de sumir no horizonte? Pois daquele exato ponto começa a surgir um segundo clarão, mas agora era pálido ao invés de dourado. Aos poucos surgiu o topo de um círculo cor de prata, subindo pouco a pouco e iluminando a escuridão de minutos atrás: era a lua cheia nascendo poucos minutos após o sol de por. Quanta coincidência! Não pude conter meu instinto poético observando o fenômeno, e comentei com Ágata:

- Olha só! Parece até que o disco dourado do sol mergulhou no mar e, purificado com o banho, agora sai dele como o disco cor de prata da lua cheia! Que sorte isto acontecer justo hoje, não acha, Ágata?

A beleza do espetáculo não havia me deixado perceber, mas Ágata já não estava encostada em mim. Olhei para seu rosto, e ela estava pálida, gelada! Não entendi nada...

- Calma, calma. Tem uma explicação, meu querido.

- Explicação para que, Ágata? É a coisa mais bonita que já vi! E quanta coincidência isto ter acontecido justo quando nós...

Como num bote, Ágata me envolve em seus braços e me beija. Mas é estranho, não sinto paixão neste beijo, parece mais como se ela tenta-se me calar, cortar o assunto... Não, estou imaginando coisas. É um “cala a boca” sim. É ela me dizendo “Para de falar besteiras e me beija, seu banana!”. Resolvo não pensar mais no assunto, naquela metamorfose solar, e aproveitar o momento. Enfim, foi ela então quem tomou a iniciativa!

Meu coração está disparado quando começa a aparecer ao fundo aquele som que vai se tornar tão odiado nos dias seguintes: o carrilhão essurdecedor daqueles sinos. Seria conseqüência da emoção do momento? Não sei, o fato é que tudo se repete: o carrilhão aumenta até se tornar ensurdecedor, e depois disto mergulho mais uma vez no nada...

.............................

Na noite seguinte chego por volta das 23 horas no mirante. Ágata já está lá. Deitada na grama, olha para cima, e tento descobrir qual a direção.

- Demorou hoje! – seu rosto está radiante.

- Nada de telescópios de novo?

- Não, bastam meus próprios olhos para ver isto. – e aponta para cima.

Concordo que os olhos delas bastam, embora por outro motivo. Deito ao seu lado, tentando localizar o ponto que ela aponta. E realmente era algo maravilhoso!

- Caramba! Nunca tinha percebido isto!

- Ora, você nunca prestou atenção! Sempre esteve lá...

Era realmente espetacular! Via-se nitidamente o centro brilhante, e em volta dele os braços em espiral ocupando quase a extensão de uma lua cheia! Como nunca havia percebido antes a nossa vizinha cósmica, a galáxia de Andrômeda?

- Parece até que a vejo girar!

- Não seja bobo, você está vendo coisas. Está parada no céu, como sempre esteve.

Passaram-se alguns minutos em que ficamos observando o fenômeno de mãos dadas. Como é possível eu nunca ter percebido algo tão fantástico deste tipo no céu?

- Sempre esteve aí? Ou é algo recente?

- Esse tipo de coisa é muito grande, um aglomerado de bilhões de estrelas. Não aparece de um dia para o outro. Lógico que sempre esteve aí, pelo menos no nos últimos milhões de anos.

- Mas falo sério, nunca notei mesmo!

A ilusão de que girava era realmente muito forte!

- Posso jurar que esta coisa está girando.

- Deixa de besteira, querido. Um aglomerado de estrela destes demora milhões de anos para mudar de uma forma perceptível.

- Sei lá, acho que deve ser uma ilusão de ótica.

- Com certeza!

- É que esses braços, esta forma de espiral... deve ser isto.

Sinto Ágata soltar minha mão bruscamente, e se sentar:

- Espirais? O que você está vendo?!

- Ora, nossa vizinha! A galáxia de Adrômeda!

- Ninguém vê Andrômeda a olho nu! Não com esses detalhes.

- Ora, está na minha frente, onde você me apontou!

Ela fica em pé num sobressalto.

- NÃO! Você vê coisas! Isto não é Andrômeda! É a Grande Nuvem de Magalhães!

- Mas Ágata, estou vendo as espirais da galáxia, e... – não consigo entender a reação tão violenta que ela teve.

- Por que é que você sempre insiste em ver coisas que não existem, hein? Por quê? POR QUÊ?? POR QUÊ??!! – lágrimas começam a escorrer de seu rosto.

- O que eu fiz??

Ela chora, e soluça incontrolavelmente.

- Por que isto? Pra que estragar tudo logo agora??

Ela sai em disparada por uma das trilhas. Eu estou confuso demais para ir atrás dela. Continuo deitado com minhas dúvidas, olhando para cima, para a galáxia de Andrômeda.

- Não entendo. Estas espirais, e tudo mais. Lógico que conheço as nuvens de Magalhães, e não são elas que estou vendo agora.

Continuo olhando para cima, para a galáxia em espiral que agora claramente me parece girando! Estou vendo coisas? Tem algo a ver com aquele maldito carrilhão que me apaga todas as noites? Teria eu algum grave problema que Ágata está tentando me esconder? Sem respostas, continuo olhando fixo para a espiral. De repente surge uma mancha em seu lugar! Que maravilha! Teria voltado ao normal,e estaria agora observando a Grande Nuvem de Magalhães, como esperado? Não, pouco depois surge de novo a galáxia espiral. A mancha eram apenas as lágrimas que nasciam em meus olhos deformando a imagem, que torna-se de novo a maldita espiral assim que as lágrimas escorrem pela minha face. Penso em me levantar logo e ir atrás de Ágata, mentir que realmente eu estava enganado, que não havia galáxia nenhuma na direção para onde eu olhava, mas o barulho do carrilhão ao fundo apaga totalmente qualquer vontade. Agora sei muito bem como isto terminaria.

............................

Esperei Ágata muito tempo na noite seguinte. Deveriam ser 3 ou 4 da manhã quando a vi surgir por uma das trilhas entre as árvores. Estava resolvido a perguntar do estranho Fenômeno Carrilhão, como já o havia batizado. Mas também queria me desculpar, ou quem sabe fosse até melhor fazer de conta que nada aconteceu, que eu realmente via coisas, inventar alguma desculpa... Estava realmente perdido. Mas novamente foi ela quem começou com as explicações:

- Querido, eu gostaria mesmo de me desculpar por ontem. Não deveria ter ficado tão nervosa.

- Tudo bem, não me importo. – mas era mentira, me importava sim! Mas seria esta a melhor hora de lhe dizer isto?

Deitou-se no centro do semicírculo, e me chamou para ficar do seu lado.

- Não está tão brilhante hoje como estava ontem.

Olhei para cima: a Grande Nuvem de Magalhães! Nenhum sinal da galáxia espiral da noite anterior!

- Ágata, acho que estou com um problema.

Ela põe os dedos em meus lábios, para que eu me cale.

- Psiu! Nada de problemas hoje!

- Mas é que ontem...

- Amanhã! Me fale disso amanhã!

- Mas tem um som...

- Agora só ouço o som do mar lá embaixo.

Tudo conspirava para aquele desfecho: a grama macia, a temperatura agradável, o som das ondas na praia lá embaixo. Para que estragar tudo com meus problemas? Eles podiam esperar mais um dia. Nos amamos intensamente naquele final de madrugada, até começarem a aparecer os primeiros raios de sol no horizonte à nossa frente. Era o final perfeito daquela noite, até o momento em que comecei a ouvir, mais uma vez, o som do carrilhão daqueles malditos sinos...

....................................

Não dava para esperar um dia mais, eu precisava saber o que acontecia comigo. Antes mesmo de cumprimentar Ágata, já a alvejei com a pergunta:

- Ágata, que aconteceu comigo ontem?

Ela sorriu. Estaria vendo coisas, ou o sorriso parecia forçado?

- Ora, o que aconteceu conosco você quer dizer... Não lembra?

Sorri de volta. O meu era verdadeiro.

- Lógico que sim, foi maravilhoso.

Mas não podia deixar que ela desviasse o assunto agora que havia me decidido a esclarecê-lo.

- Digo depois. Está me escondendo algo para me proteger? Tive algum ataque epiléptico, ou coisa do tipo que você não queira me contar?

Ela empalideceu no mesmo instante.

- Nã...não! Claro que não! Eu lhe diria...

- Então o que foi?

- Que foi o quê? Nada aconteceu depois! Poderia esquecer isto? Nos amamos, adormecemos...

- E depois?

- Depois? Ora...

- Não me lembro do que aconteceu depois!

Ágata tenta me abraçar, mas agora está claro que é mais uma tentativa de encerrar a discussão.

- Eu preciso saber, Ágata! Se for algo grave, quanto antes me tratar é melhor.

- Você está inventando coisas de novo!!! PARE COM ISSO!! – percebo que novamente ela começa a perder a razão.

- Não foi a primeira vez! Na verdade, lembrando agora, parece que isto acontece sempre!

- Esquece isto, querido! Está começando algo tão bonito entre a gente! Pra que criar problemas?

- Está tudo meio estranho, Ágata! – aponto para cima.- Esta nebulosa, por exemplo, a Nuvem de Magalhães. Lembra que brigamos feio por causa dela.

- Por favor, não volte neste assunto.

- Agora vejo a mancha que ela sempre foi. Mas no dia podia jurar estar vendo uma galáxia espiral. Entenda, posso estar tendo alucinações. Talvez seja algo curável.

- Por favor, PARE!!

- E aquele por do sol? De repente te percebi gelada, não entendi nada! Uma coincidência tão bonita...

Ela cai de joelhos. Está em prantos.

- Este lugar, você, eu... Por favor, não quero que acabe! Esquece estas coisas, querido!

- Quem sou eu, Ágata?

- Quê?

- Meu nome. Qual é? Não me lembro.

- Ora, deixa de bobagens!

- Nunca te contei qual é, sabe por quê? Por que não sei!

- Lógico que sabe, você me disse!

- Não disse! Que pessoa normal esquece o próprio nome? Entende a gravidade do problema? E tem aquele som que sempre ouço, um carrilhão. Você ouve também?

Nunca havia feito tempo ruim naquele Mirante Geocêntrico, mas naquele instante nuvens começavam a fechar o céu. Ágata me agarra em desespero, e começa a me beijar.

- Nada disso importa, querido. Só eu e você.

- Diga meu nome.

- Quê?

- Ágata, diga meu nome, por favor!

Ela se afasta, cabeça baixa.

- Ora, é...

- Qual meu nome, Ágata??

Ela foge em desespero. Mas desta vez eu a sigo. Entro pela trilha entre as árvores, mas pareço estar num pesadelo estranho: ela não leva a lugar nenhum! Perdido num labirinto, nem chego ao seu objetivo nem consigo voltar para o mirante, por onde entrei nele. Ágata está sempre á minha frente, mas sempre fora de meu alcance. O som dos trovões fica cada vez mais intenso, e pela primeira vez uma tempestade cai sobre aquele local de céu sempre límpido. Demoro para perceber, mas enfim, sobressaindo-se ao rugir dos trovões, o ensurdecedor carrilhão fica bem claro. Do que aconteceu depois, nada sei.

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“Andrômeda... Quanta idiotice, Ágata!!”


Ágata não conseguia se concentrar em seu trabalho no observatório naquele dia. A imagem da galáxia espiral brilhava na tela de seu monitor.


“Burra! Isso que dá querer enfeitar demais as coisas!” Ela não conseguia se perdoar. “Logo agora que estava indo tudo tão bem...”


Por mais estranho que pudesse parecer, ela estava vivendo um romance. Talvez o maior de sua vida, embora ela nem mesmo soubesse o nome de seu namorado. Como é que por um detalhe tão ridículo ela talvez tenha colocado tudo a perder? Todo mundo tem um nome, não é? Ele não podia ser uma exceção.


Ela suspirava de paixão. Definitivamente, ela não seria capaz de se concentrar no trabalho aquela tarde. Eta Carinae podia esperar mais um dia, certamente a supernova não iria explodir hoje. Agora ela precisava era voltar para casa e pensar numa maneira de consertar a besteira que iniciou.


Enquanto voltava, via o sol se pondo na direção oeste. Então lembrou-se:“Não, Ágata! Isto realmente foi imperdoável! Ele não é burro, vai acabar percebendo isto! Como explicar isto a ele?” Ele quem? Apertou o passo. Sim, precisava voltar logo para casa e bolar uma boa explicação para aquilo tudo.


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Permaneci uma ou duas horas sentado no banco, relembrando todos os fatos. As reações de Ágata, como nos conhecemos, meus apagões de memória... Fora este último detalhe, tudo parecia irritantemente perfeito! Havia conhecido a garota de minha vida, astrônoma, com quem podia passar horas e horas discutindo sobre um assunto que também era outra paixão de minha vida. Era bom demais para ser verdade! Tudo aquilo parecia um sonho! Passei um tempo tentando coordenar os fatos astronômicos inexplicáveis observados recentemente e acabei chegando à mais terrível conclusão de minha vida. Vi Ágata chegando naquele instante. Sim, já sabia o que estava acontecendo. Tudo de encaixava nesta explicação. Precisava contar a ela, por mais doloroso que isto fosse.

- Ágata, eu já sei o que está acontecendo. – começo a chorar.

- Benzinho, posso te esclarecer tudo. Pode parecer estranho, mas tudo é explicável!

- Deixa eu começar desta vez, tudo bem?

Vi medo em seu olhar. Mas ela parou e sentou-se para me ouvir.

- Lembra daquele por do sol que nós vimos? Que logo foi seguido pela lua cheia nascendo? Então, na hora achei tão fantástica aquela coincidência que nem pensei que pudesse haver algo errado. Mas agora sei o que é.

- Querido, naquele dia, sabe... Estão acontecendo alguns fenômenos astronômicos peculiares ultimamente... a supernova Eta carinae, lembra? Explodiu.. e o eixo da terra, por exemplo...

- Ágata, por favor, não precisa inventar nada. Eu sei o que está acontecendo!

- É que a explosão da Eta Carinae fez com que...

Desta vez eu coloco o dedo em seus lábios, não podia suportar uma astrônoma contrariando todos os seus princípios para tentar explicar fenômenos que definitivamente não podiam ser explicados.

- Ágata, por favor! Eu sei: a lua nunca nasce no oeste! Nada nasce no oeste! A lua não podia começar a subir do mesmo ponto em que o sol desceu minutos atrás! Nada faria o eixo de rotação do planeta girar 180 graus em questão de minutos, nem inverter o sentido de rotação de uma hora para outra. E mesmo que algum fenômeno tivesse uma ínfima chance de fazer isto acontecer, com certeza não seria de uma forma imperceptível! Haveriam marés gigantescas, talvez o próprio planeta se partisse com o turbilhão que se formaria no magma líquido em seu interior! Lógico, isto supondo que algo fosse capaz de inverter o sentido da rotação de tal forma... Não, Ágata. O que estávamos vendo era impossível de acontecer.

Ela chorava sem parar.

- Tem outra explicação, amorzinho! Ainda não sabemos como, mas...

- Ágata, não faça isto! Já sei de tudo!

Ela me abraça bem forte. Eu continuo.

- Depois, tem Andrômedra. Óbvio que ela não é visível a olho nu! Não daquele tamanho! E nenhum cataclisma cósmico seria capaz de deixá-la tão próxima de nós de um dia para o outro!

- Tem as lentes gravitacionais, já ouviu falar? – ela atropelava as palavras em desespero. – Por pouco tempo, sabe... Uma coincidência... como se fosse um telescópio gigante.

- Ágata, não precisa fazer isto. Não tente forçar explicações absurdas, minha linda! Esta claro agora: eu só vi o que queria ver!

Ágata me abraça mais forte, tenta me beijar, para que eu me cale.

- Não continue! Pense só em nós! Está acontecendo uma coisa tão bonita entre a gente, não é?

- Bonita demais, Ágata! Perfeita demais! Como num sonho.

Ela se afasta com um empurrão.

- Tudo isto é um sonho, Ágata! Este céu sempre límpido e perfeito, esta grama, este mar, você... Lembra daquele dia em que nos amamos aqui mesmo onde estamos agora? Depois vimos o sol nascer, não é mesmo? Mas... no oeste? Impossível, Ágata. Só vimos aquilo que queríamos mesmo ver! Porque era tudo um sonho.

- Por favor, pare agora!! Não queria que você descobrisse isto nunca! Eu te amo!

- Eu também te amo, Ágata! Mas estava tudo perfeito demais, não é mesmo? Porque era um sonho! Nada disso existe: este mar não existe, este mirante não existe, este céu não existe. Me dói muito chegar a esta conclusão, mas... Ágata, você também não existe! Nesses dias todos eu estou apenas sonhando com você, não é?

Ela se levanta. O tempo mais uma vez fecha naquele mirante geocêntrico. Ágata tenta correr, mas para a poucos metros.

- Você entendeu tudo errado! Não é nada disso!! O que eu sinto por você existe!

Começa a chover forte. E o surge o carrilhão infernal. Ágata chora aos soluços.

- Querido, é exatamente o contrário!! VOCÊ é que não existe! Sou EU que estou sonhando com você esses dias todos!!!

O chão foge de meus pés, me sinto caindo num abismo sem fundo. A chuva preenche todos os espaços à minha volta. Novamente me sinto perdendo a consciência, mas desta vez a sensação é muito pior: sei que é definitivo!!

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Ágata acorda e joga para longe o barulhento despertador de corda sobre o criado-mudo ao lado de sua cama. Era único objeto barulhento o bastante para fazê-la acordar todas as manhãs. “Maldito relógio barulhento!! Tomara que tenha quebrado de vez!”


Olha para os esboços pregados na parece. Ela nunca havia sido muito boa em desenhar retratos, mas dava para reconhecer neles o rosto do namorado de seus sonhos. Voltaria a vê-lo? Ela tentou nas noites seguinte, mas o mirante sempre estava vazio. Desistiu. Lógico que ele não apareceria mais! Não deve ser fácil para ninguém descobrir que não existe, exceto nos sonhos românticos de uma astrônoma carente. Mas ela poderia ter sido mais cuidadosa, não é mesmo? Talvez conseguisse sustentar aquilo por mais tempo, se pelo menos tivesse dado um nome a ele.


Mais uma noite ela volta em sonho ao seu mirante geocêntrico. Senta-se no banco de madeira. Está só, desolada! Pensa em pular no precipício à sua frente. “Que besteira, Ágata! Isto é um sonho! Acha que vai acontecer alguma coisa?” Óbvio que nada aconteceria. No máximo ela acordaria sobressaltada, como é comum acontecer quando sonhamos com quedas.


Mas desta vez ela percebe algo debaixo do banco. Um manuscrito? Começa a folheá-lo. Há uma dedicatória: “À minha amada Ágata, caso não nos encontremos mais. De seu amado ______ (por favor, dê-me um nome!)” Que grande coincidência ela encontrar uma caneta em seu bolso! Bom, Ágata nem fica tão surpresa com isto: ela está no meio de um sonho lúcido, pode controlar tudo que acontece nele. Inclusive fazer aparecer uma caneta em seu bolso. Ela pensa, preenche a lacuna. “Ah, agora pelo menos posso lembrar de você com um nome, meu amor!” E começa a ler:



Não conseguia imaginar um ponto de observação astronômico melhor que aquele. Com aquele céu límpido pontilhado de estrelas era impossível não ter a ilusão perfeita de estar no centro de uma gigantesca abóbada, observando o resultado de um mecanismo oculto atrás de uma parede inatingível...


FIM