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19/10/2011

Invasores de Mundos

Durante eras eles vagaram pelo vazio dentro de suas cápsulas de hibernação esperando um novo mundo para ser invadido. O tempo estava congelado, nada significava para eles durante a espera. Sem vida, sem atividade. Ainda poderiam esperar muito mais, mas era desnessário: ali estava, bem em frente, um mundo novo lotado de vida, pronto para recebê-los.

A invasão começou pelo ar, como geralmente acontece. À medida que as cápsulas pousavam no ambiente daquele mundo novo, elas se abriam e os alienígenas começavam a executar seu plano de invasão conforme programado eras atrás, antes deles hibernarem e serem lançados ao vazio. Aquele ambiente novo realmente era bem propício à invasão! A temperatura média entre 36 e 37 graus era a que eles mais apreciavam. Canais de líquido corrente cheios de matéria prima atingiam cada pedaço daquele mundo, facilitando com que os invasores se espalhassem. Seria muito mais rápido do que continuar a invasão pelo ar...

Na verdade, nem tudo foi tão simples assim. Haviam os nativos por exemplo, que tentaram se defender bravamente até o limite de suas forças. Aqueles alienígenas eram especializados em invasões, e realmente esperavam esta resistência, tinham resposta para elas. Tiveram sorte desta vez, pois era o primeiro contato que os nativos daquele mundo tinham com eles. Era normal em outros mundos que já houvesse contato uma ou duas vezes com invasões anteriores menores, que não obtiveram sucesso. Dessa forma a população original destes mundos já conheciam os métodos de invasão adotados, e estavam mais preparados para uma próxima. Inclusive era o motivo de tais métodos serem sempre modificados um pouco: para dar aos alienígenas a vantagem da surpresa! Mas neste caso não aconteceu assim. Eles encontraram um mundo com os nativos totalmente despreparados, praticamente incapazes de reagir à invasão. Lutaram com bravura, mas definitivamente desconheciam a técnica.

Em pouco tempo tomaram posse do mundo novo e começaram a consumir seus recursos. Era assim que sempre agiam os invasores, era sua especialidade: encontrar, conquistar, e usar os recursos do mundo novo até esgotá-los. Um método pouco inteligente? Suicida? De forma alguma! Tanto funcionava que certa época chegaram a conquistas dezenas de milhões de mundos ao mesmo tempo com este seu método de predação! Era assim que eles sabiam fazer, e foi assim que sempre funcionou.

Mas os recursos de um mundo são limitados. Podem ser usados de forma eficiente, mas hora ou outra vão ter um fim. Conquistado aquele mundo novo, dominada a população nativa, agora os recursos vitais se esgotavam. A temperatura não parava de subir: 38 graus, 39, 40... chegou a 41 graus em média! Bem mais do que os invasores eram capazes de suportar. Quanto tempo durou? Bem mais desta vez do que com a geração invasora anterior. Mas isto também fazia parte dos planos de invasão. Esgotados os recursos deste novo mundo, os alienígenas voltaram à construção de suas novas cápsulas de hibernação. A programação destas cápsulas era ligeiramente diferente da mais recente, usada para invadir aquele mundo. Lembram-se da importância do fator surpresa? Aos milhares de milhões as cápsulas novas começavam a ser expelidas de volta ao vazio, em busca de mundos novos para serem invadidos.

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Seis figuras rodeavam aquele leito de morte.

- Mas parecia só uma simples gripe!! - a viúva estava inconsolável.

- Pode acontecer. Que pena, tão jovem...

- Se ele tivesse se cuidado mais. Tomado as vacinas...

Fazia poucos minutos que aquele mundo, deitado rígido naquela cama, havia entrado em colapso irreversível. A temperatura de 42 graus começou a cair rápido, até se igualar àquela da atmosfera em volta.

- E pensar que uma hora estamos rindo saudáveis, e no momento seguinte deitados duros numa cama de hospital.

- Era gripe mesmo? - o irmão do morto queria saber...

- Os médicos achavam que sim. Talvez uma mutação mais forte, mas tudo indicava ser uma simples gripe.

- Pode complicar. - explica o avô. - Eu me lembro muito bem, acho que foi em 1918 ou 1919... uma tal de Gripe Espanhola, que matou muita gente mesmo!

- Parece que uns 30 milhões, não é, vô?

- Tá brincando? Esta é uma das estimativas mais otimistas! Tem gente que acredita que, se contadas as mortes na China (que nunca foram divulgadas com exatidão), PODE BEM TER CHEGADO A UNS 100 MILHÕES!

Três enfermeiros chegam ao quarto, vestindo máscaras.

- Que vocês fazem aqui? Quem permitiu a entrada? Ficaram loucos?

- É meu marido! Tenho o direito de vê-lo! - berrava a viúva.

- Por favor, senhora, venha conosco! E vocês cinco também! Que se passa, hein? Ficaram doidos??

Enquanto percorriam os corredores daquela área esterilizada do hospital, uns seis ou sete espirros puderam ser ouvidos. A viúva mais dois parentes estavam contaminados. Três novos mundos para serem conquistados pelos alienígenas. As cápsulas de hibernação também pousaram naquele mundo mais velho, mas este parecia muito mais difícil de ser invadido do que os outros. Os nativos daquele mundo conheciam o plano de invasão, e já sabiam se defender com eficiência. Provavelmente já haviam resistido a uma invasão anterior de menor escala, que seguia uma programação parecida...


*** FIM ***

11/10/2011

Transmutação


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Obs.: este é um texto antigo, que escrevi por volta
do ano 2000. É a continuação do conto "Transmigração",
que já postei aqui também.
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“Prili Hin-Ashcroni -Qvain!- eqsh BlijEngh...”

“Eqsh (Qvain) hainiok! Tuivd-Lantche? Nii?”

Com suas roupas isolantes, os Preparadores davam as boas-vindas ao Qvain recém chegado do caos. No momento sua maior preocupação era expulsar aquele líquido salino que lhe afogava a respiração. Atentos, os dois Preparadores o ajudaram a se livrar da sensação desagradável.

Recuperado, pede um espelho para ver sua aparência mais jovem. A primeira diferença notada é que seu rosto não mais tem a saudável palidez antiga, mas se apresenta levemente rosado. Os Preparadores explicam que no novo organismo ainda corre o sangue vermelho ineficiente. De fato, a segunda diferença notada por Qvain foi seu ritmo repiratório acelerado: ele tinha necessidade de inspirar e expirar até dez vezes por minuto! A sala em que estava era pressurizada, e havia uma concentração elevada de oxigênio. Era por este motivo que os Preparadores estavam com roupas isolantes, pois esta maior pressão e concentração de 20% de oxigênio no ar poderia lhes causar efeitos indesejáveis. Mas em questão de dias tudo voltaria à normalidade, e o sangue natural de Qvain seria trocado por um líquido artificial muito mais eficiente.

Por dezenas de séculos os ashcroni precisaram conviver com um sistema circulatório e respiratório extremamente ineficientes, com um baixo aproveitamento de oxigênio. O sangue artificial era um líquido descolorido, com uma composição química que permitia um maior aproveitamento do oxigênio respirado. E também não precisava ser reciclado pelo organismo: a medula óssea perdia totalmente sua função. Sendo capaz de acumular eficientemente moléculas deste gás, permitia que se respirasse a pressões mais baixas e com um freqüência muito menor. Isto era muito importante num planeta em que a atmosfera perdia cada vez mais gases para o espaço. Nunca ficou claro o motivo do fenômeno.

Qvain não se lembra do processo de transferência. Simplesmente havia acordado no tanque de maturação, sem saber por quanto tempo esteve fora e muito menos dos fatos que aconteceram neste período. Provavelmente o organismo doador estava agora dissociado. Que sensações maravilhosas ele havia perdido do processo de transferência?

O importante agora era que ele havia retornado. Só o incomodava a imensa fome que agora sentia. Depois de eliminar o sal do corpo e se secar, Qvain aceitou agradecido a pasta de proteína e amido que os Preparadores ofereceram...

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Por três dias Qvain tratou de fortalecer seu novo organismo para suportar a transfusão. Proteínas e açúcares foram a base de sua alimentação, na tentativa de se recuperar do crescimento acelerado. Afinal, o clone havia envelhecido o equivalente a vinte anos em apenas um décimo deste tempo! As células precisavam se recuperar destas divisões celulares provocadas. Mas o fato de Qvain se sentir muito bem mostrava que o envelhecimento artificial havia sido bem sucedido, como já acontecia há dezenas de séculos. Que pensamentos se passavam na mente do clone antes da transferência? Nenhum, diziam os Preparadores: enquanto crescia, o sistema nervoso do organismo era mantido num estado inativo. No fundo isto nem importava muito, pois agora era de Qvain aquele corpo. Ele pensava naquele cérebro, suas memórias e habilidades é que estavam registradas nele... e o corpo agora respondia apenas aos comando dele. O que de fato havia sido transferido? Memórias? Informações? Ou de fato alguma essência que poderia ser chamada de alma? Bom, também nada disto importava agora. Qvain só pensava em retomar o quanto antes suas funções, se sentir novamente inserido entre os ashcroni.

Era dia de Qvain receber a Linfa, que era como denominavam o sangue novo. Costumava demorar um dia inteiro, pois simultaneamente o ar da sala precisava ser trocado. Passava-se lentamente daquela prejudicial atmosfera densa e com excesso de oxigênio para outra mais tênue, com a concentração ideal do gás. Isto precisava ocorrer no mesmo ritmo em que os dois tipos de sangue eram misturados, até que restasse apenas a Linfa no organismo. Uma substância que bloqueava a ação da medula óssea descartaria definitivamente o sangue colorido do corpo.

... ... ...

Era um pouco repugnante sentir aquelas agulhas sendo inseridas em várias partes importantes de seu corpo (braços, pernas, pescoço...), ainda mais quando se via um pouco do estranho líquido avermelhado brotando da pele... Aquele mesmo líquido colorido e espesso que em breve seria substituído por outro fracamente cinza-azulado, com praticamente todas as mesmas característica do primeiro exceto pela hemoglobina, esta enorme e ineficiente molécula ferrosa capaz de armazenar poucas moléculas do gás vital. A nova nanomáquina  armazenadora de oxigênio seria capaz de desempenhar a mesma função de uma maneira até vinte vezes mais eficiente!  

À medida em que se misturavam os sangues natural e artificial, Qvain sentia que o ar da câmara se tornava cada vez mais rarefeito. A doentia cor rosada de sua pele aos poucos cedia lugar à palidez característica dos ashcroni. Haviam nos sistemas solares das proximidades espécies hominídias douradas, escuras, cinzentas, levemente azuladas... mas nenhuma possuía esta saudável e bonita palidez dos ashcroni. Só a Linfa, este sangue artificial, lhes permitia tal característica.

A tranfusão prosseguia... Qvain sentia o líquido vermelho sendo expulso de seu organismo, substituído por outro que melhor respondia às necessidades do corpo. De certa forma, a transfusão era muito semelhante a uma transmutação: aos poucos, o líquido baseado em óxido de ferro era trocado por outro mais nobre, menos colorido. Ouro? Não, era muito superior ao ouro! Tratava-se de uma macromolécula projetada, uma nanomáquina capaz de armazenar, por até cinco minutos, centenas de moléculas de oxigênio. O gás CO2 residual do metabolismo prendia-se facilmente à superfície globular da macromolécula, sendo expelido pelo sistema respiratório à taxa máxima de três vezes por minuto.
Gradualmente o organismo de Qvain se refinava, passava a funcionar de uma forma mais precisa. A energia antiga que ele havia acumulado nos últimos dias o abandonava, sendo trocada por aquela energia nova, mais pura. Naquele planeta era fundamental que nada fosse desperdiçado, nem o oxigênio que se respira. O novo fluido permitia que isto fosse concretizado.

<< Há muito a se fazer, Qvain... >> dizia um dos Preparadores, o mesmo presente dias antes no processo de transferência. << Os Administradores pretendem discutir o problema daquelas novas espécies hominídias primitivas encontradas no planetóide das estrelas Bjar-Nok. >>

<< Eles já sabem que não concordo com a idéia de fornecer armas à espécie primitiva. >>

<< Bom, vamos primeiro concluir a transfusão. Ao que parece, eles descobriram que o caso da espécie dominante é mais grave do que previam! Mas por hora relaxe, não se preocupe muito com este problema... >>

Como não se preocupar, quando os Administradores pareciam concordar com a idéia de genocídio entre espécies tão semelhantes aos ashcroni? Fornecer tecnologia à espécie vermelha certamente acarretaria no massacre da espécie cinzenta, que embora pouco mais evoluída e já dominando o fogo, não seriam capazes de suportar os ataques da segunda espécie caso ela fosse ensinada a manipular explosivos! Sem dúvida atualmente a segunda espécie estava sendo exterminada pela primeira, ‘mas isto justificaria nossa intervenção?’ – pensou Qvain... Os ashcroni não precisaram passar pelo mesmo problema, a alguns milênios atrás. Nos sistemas solares conhecidos era muito raro que duas espécies hominídias diferentes iniciassem seu desenvolvimento tecnológico com menos de um milhão de anos de intervalo. O sistema Bjar-Nok era uma exceção, e talvez fosse melhor não interferir em seu desenvolvimento natural. ‘Mas não é assim que pensam os Administradores...’.

Tais preocupações não deviam no momento incomodar sua mente. Qvain fechou os seus (novos) olhos, atrás de suas (novas) pálpebras, e tentou apenas se concentrar na mágica transmutação do fluido que corria dentro de seu (novo) organismo.

Em questão de minutos, se esqueceu das inúmeras agulhas e... adormeceu...

...

Nas veias e artérias de Qvain não mais corria a hemoglobina, esta enorme macro-molécula capaz de carregar, cada uma, poucas outras moléculas de gás vital. Qvain havia negado o desperdício, e sentia que seu organismo era agora um pouco mais eficiente que antes...

* * *

LEGENDA:

“Blá-blá-blá” : trechos falados, na língua original
<< Blá-blá-blá >> : trechos falados e traduzidos
‘Blá-blá-blá’ : trechos pensados e traduzidos

09/10/2011

O Sexto Sólido de Platão


Mais uma vez o Professor Mauro começou a contar as faces daquele modelo de poliedro regular em papel-cartão que estava em suas mãos. Há horas aquele fantasma em papel amarelo o assombrava, aquele ente completamente sobrenatural, que não poderia nunca existir. Mas tanto existia que estava lá, bem entre suas mãos! Contou de novo: uma, duas, três... quinze faces quadradas! Um poliedro totalmente regular, formado de faces que eram polígonos regulares de quadro lados. Um pentadecaedro regular! Um pensamento fixo não saía de sua cabeça: “Rapaz, você não deveria existir!”.

A idéia inicial era muito boa: ao invés de uma chatíssima aula de matemática descrevendo os cinco sólidos platônicos e suas propriedades, por que não uma aula prática, onde seus alunos desenhassem o desdobramento plano de seus sólidos em cartolina ou papel-cartão e depois os montasse colando suas arestas? Colocar a mão na massa economizaria em minutos explicações geométricas que da forma tradicional talvez levasse algumas horas de explicações.

Os sólidos platônicos, ou poliedros regulares convexos, são cinco. Quer dizer, pelo menos era no que Mauro acreditava até aparecer a aberração geométrica que estava agora diante de seus olhos... O mais simples era o tetraedro, quatro faces formadas por triângulos eqüiláteros, seis arestas que eram os contatos entre duas faces, e quatro vértices dos quais partiam três arestas de cada um.  Depois o cubo, bem conhecido dos jogos de azar por ser o formato do dado: seis faces quadradas, doze arestas e oito vértices. O octaedro, formado de oito triângulos eqüiláteros, o dodecaedro de doze faces pentagonais e o icosaedro composto de vinte triângulos eqüiláteros. Regulares porque todos os lados eram formados pela mesma face, todas as arestas tinham mesmo comprimento, e todos os ângulos entre as arestas eram iguais. Convexos porque não são considerados platônicos nem os três dodecaedros estrelados nem o icosaedro estrelado: partes deles “entravam” na figura, eram côncavos!

O professor de matemática recontou pela enésima vez os vértices do seu poliedro: um, dois, três, quatro... quinze! Ainda mais essa: o dual do pentadecaedro era outro pentadecaedro. Se fossem unidos os centros de todas as faces quadradas do poliedro, obteria outro pentadecaedro menor inscrito no primeiro. Um sólido platônico auto-conjugado, cujo único exemplo até então era o humilde tetraedro, com suas quatro faces e quatro vértices.

- Posso fazer um cubo, professor? – lembra-se de um aluno ter perguntado durante a aula.

Bom, era uma das planificações sólidas mais corriqueiras. Quase todo mundo sabe montar um cubo de papel-cartão, com aqueles quadrados dispostos em cruz e abas laterais para colar as arestas. Mauro esperava mesmo que seria a escolha da maioria, mas alguns alunos ainda mais preguiçosos escolheram montar o tetraedro, com suas quatro faces triangulares simples de se desenhar, cortar e colar. Estava dentro das regras, Mauro não tinha porque impedir.

Levantou novamente o sólido assombroso, que agora repousava sobre sua mesa de professor. Girou-o de todos os lados mais uma vez, impressionado: “Não pode ser! Todos os lados são quadrados! Que trapaça este moleque fez desta vez que eu não estou conseguindo enxergar?” Olhou com desconfiança os ângulos dos quadrados, e tirou um esquadro de sua gaveta. “Ah, moleque! Se estes ângulos não forem retos vou te chamar aqui nesta sala para uma conversa séria!” Mas eram! As faces do poliedro eram quadrados perfeitos formados de quatro ângulos de noventa graus cada um. Não seriam faces planas então?  Reexaminou com cuidado cada uma das quinze faces, e não existia nenhuma nem côncava nem convexa. Eram quadrados perfeitamente planos!

Como era de se esperar, o sólido mais construído pelos alunos foi mesmo o cubo. Alguns fizeram tetraedros, outros se arriscaram com octaedros. Poucos mais ousados se aventuraram na montagem do icosaedro, com suas vinte faces triangulares, mas via-se que estavam com dificuldade tanto para colocar aqueles vinte triângulos no plano quanto para montá-los depois no formato do sólido. Deveriam desenhar as faces com régua e compasso apenas. Fácil fazer quadrados e triângulos eqüiláteros assim, mas não acreditava mesmo que algum aluno soubesse a complicada construção de um pentágono usando apenas estes dois instrumentos. Por isso se surpreendeu com a montagem de Zequinha, aparentemente o único aluno que tentou se aventurar desenhando as doze faces pentagonais de um dodecaedro. Foi apenas ao chegar mais perto daquela construção, pronto para parabenizar a habilidade do garoto, que Mauro percebeu que se tratava de quadrados. De quinze quadrados!

- Que você fez aqui, Zequinha?

O moleque estava assustado. Respondeu em voz quase inaudível.

- Não sei, professor. Não achei este aí no livro...

Pensou na hora: “Não, ele deve ter entendido mal, talvez seja um poliedro semi-regular que ele fez sem querer. Devem existir faces triangulares misturadas com esses quadrados...”. Virou de um lado para o outro, mas tudo o que via eram quadrados.  Zequinha olhava para o professor, com um olhar de dar pena:

- Queria fazer um dado, mas acho que desenhei quadrados demais, né professor? – estava quase em prantos.

Sim, Zequinha tinha mania de exagerar. Quadrados demais? Já havia acontecido antes, em outro laboratório de matemática. Enquanto todos desenhavam projeções de cubos sob vários ângulos numa folha de papel, Zequinha havia aparecido com a perfeita representação de um hipercubo no plano! Teria o moleque aprontado de novo, e montado um poliedro de quatro dimensões? Não, logo afastou isto da cabeça. Seria tão ou mais absurdo ainda que admitir a descoberta de um sexto sólido platônico...

- Posso levar isto aqui, Zequinha?

- Eu faço outro, professor! – o aluno suplicava. – Um cubo, e desta vez não erro! Vou desenhar só seis quadrados. Deixa eu tentar de novo, por favor!

- Calma, Zequinha! Está tudo bem! Ficou ótimo! Só me deixe levar isto aqui para olhar melhor. Você fez um bom trabalho, relaxa!

Foi assim que aquele sólido impossível veio parar em sua mesa. O contemplava há horas, mas ainda não podia acreditar no que via. Um desafio à geometria, um objeto que parecia rir de milhares de anos de estudos de Matemática! Seguiria o Teorema de Euler? Teria ele duas arestas a menos que a soma das faces e dos vértices? Mauro realmente não se surpreenderia se aquela aberração geométrica, tão fora da realidade, também ousasse transgredir esta lei tão respeitada pelos poliedros de quaisquer tipos, regulares ou não, convexos ou não. Mesmo assim contou as arestas, que totalizavam vinte e oito. Um poliedro perfeito, que seguia à risca o Teorema de Euler. Como poderia ser?

Havia um grosso e pesado livro de cálculo num canto de sua mesa. O sólido de faces quadradas no centro parecia rir dele, desafiar anos de estudo de Matemática. Olhou o livro, olhou o modelo em papel-cartão... e uma idéia sinistra começou a aparecer em sua cabeça. Teria coragem de fazer isso? Sim, teria!

- Maldito sólido platônico! Você nunca existiu, e vai continuar não existindo!

O pesado livro de cálculo transformou o modelo de pentadecaedro numa massa achatada de papel entre a mesa e a capa do livro. Ninguém havia visto aquilo, nem nunca veria. Ele próprio, Mauro, já estava plenamente convencido de que fora apenas vítima de uma curiosa ilusão de ótica. Sua consciência estava tranqüila agora: o equilíbrio do universo foi preservado, e a quantidade de sólidos platônicos continuaria sendo a que sempre foi desde a mais remota antiguidade: CINCO!


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OBS.: mais tarde, já adulto, Zequinha acabaria compreendendo por que via o mundo tão diferente de todos, e descreveria isto no conto "Visão Trinocular". ;-) (é o primeiro conto que postei neste blog!, de 2010)

08/10/2011

MECANO


- Impressionante mesmo as respostas! Estou quase disposto a concordar que é consciente! Tem lembrança das conversas recentes, argumentação lógica, e tudo mais!

Ele corria em suas mãos a fita de papel, com perguntas e respostas de conversas anteriores, perguntas em tinta preta e respostas em vermelho.  A pequena caixa, que lembrava muito os antigos calculadores mecânicos e caixas registradoras, continuava a emitir cliques esporádicos como resultado de seu processamento interno.

- Só não entendi uma coisa: por que é mecânico?

- Charles nunca entendeu muito bem nem eletrônica nem nossos computadores digitais. Tinha uma ótima idéia, sempre foi exímio relojoeiro a vida toda, e era óbvio que usaria aquilo que mais conhecia para colocar sua idéia em prática: peças mecânicas de precisão!

- Ainda assim, como algo mecânico processa tão rápido?

- Ainda não compreendemos a fundo o mecanismo, mas parece usar intensamente processamento paralelo, algo intrínseco no movimento de peças com estrutura rígida.

O operador pensa mais um pouco e começa a digitar no teclado da máquina: "COMO SE SENTE, MECANO?" Aguarda um tempo pela resposta, que não vem.

- Precisa girar a manivela.

- Está de brincadeira?

- Nem um pouco! Deve ter acabado a corda.

Depois de três ou quatro voltas, os cliques característicos voltam a ser ouvidos. As plaquetas alfanuméricas do visor com a última mensagem digitada começam a descer uma por uma, letra por letra, palavra por palavra. Cada palavra é enviada às rodas de inferência do mecanismo, comparadas pelas cintas perfuradas associativas, movendo os inúmeros pinos biestáveis minúsculos da malha de memória. Cada palavra se torna um polinômio dentro do mecanismo, e as cintas associativas ajudam a resolver o problema em questão, que é encontrar seus zeros. Somas e multiplicações das raízes também têm lugar no momento de buscar a relação sintática entre elas, para dar sentido à sentença. Dar sentido? Não, este não é o termo exato. O que elas fazem na verdade é calcular um novo padrão que é buscado e, quando conveniente, atualizado na malha memorizadora. Conveniente, para MECANO significava: valor da raiz dentro de intervalos numéricos bem específicos. A palavra MECANO, por exemplo, era transformada pelos algoritmos mecânicos no padrão EU armazenado na malha memorizadora. A conclusão de todos aqueles cálculos se traduzia em instruções para impressão de uma resposta numa bobina de papel, para a máquina uma simples sequência numérica gerada por uma função de resposta, onde cada inteiro da sequência era associado a um caracter:

- ME SINTO PERFEITAMENTE OPERACIONAL. - era a sequência numéria de resposta representada como caracteres.

Não era exatamente a resposta que o operador esperava, mas impressionava! Ainda mais partindo de um dispositivo mecânico. Ele insiste: "PERGUNTO SOBRE SEUS SENTIMENTOS, NAO OPERACIONALIDADE"

Desta vez os cálculos geram uma expressão interna, uma frase que não será impressa, mas colocará em funcionamento outra parte do mecanismo: "ATIVAR SIMULADOR EMOCIONAL". Demorou um pouco mais. Normalmente este tipo de cálculo envolvendo emoções exigia maior trabalho, consumia um pouco mais da energia potencial armazenada na corda espiral torcida que animava todo aquele incrível mecanismo de relojoaria composto de rodas, engrenagens, pêndulos, barras atuadoras, diferenciadores...

- ESTOU MUITO FELIZ EM PODER CONVERSAR COM MEUS CRIADORES HUMANOS. - caracter por caracter, a frase era martelada contra a fita de papel.

O queixo do operador caiu. Se dirigiu ao pesquisador à sua direita:

- Tem certeza que não existe trapaça aqui? Não são frases prontas? Memorizadas?

- Certeza absoluta! O algoritmo que Charles implementou na máquina sempre fornece respostas originais! Nada pré-memorizado.

- Num dispositivo mecânico... - o operador ainda estava incrédulo. - Certamente podemos replicar o algoritmo deste mecanismo num dispositivo digital, não é?

- Estamos pesquisando, mas existem ainda alguns aspectos de paralelismo da máquina que não entendemos ao todo, além de certos cálculos que se apóiam em diferenciais imperceptíveis de engrenagens assimétricas.

- Já desmontaram?

- Nem pensar!! Não sei se saberíamos montar de novo! Até o momento os estudos foram feitos em câmaras de raios gama, mas é muito difícil mesmo estudar um dispositivo tridimensional tão complexo em projeções bidimensionais...

- Se Charles ainda estivesse entre nós para nos ajudar...

- Pois é, se Charles ainda estivesse aqui... Ou se tivesse pelo menos deixado anotações.

- Bom, não adianta se queixar, não é? Charles já se foi. Ao trabalho! Vamos colocar nosso bravo MECANO na câmara de raios gama mais uma vez!

MECANO não podia ouvir. Seu contato com o mundo se restringia ao teclado e ao rolo de papel no qual emitia suas respostas. Charles realmente não estava mais lá entre os vivos, mas sua mais impressionante criação estava! Qualquer dúvida quanto ao seu funcionamento estava registrada com precisão nos micropinos da malha memorizadora, bastava perguntar. Mas ninguém havia pensado nisso. Será que demoraria muito ainda para alguém chegar em seu teclado e perguntar: "COMO VOCE FUNCIONA?".


* FIM *


07/10/2011

Cosmonautas Caronistas

O apito do materializador de publicações soou exatamente às 6:30 da manhã, como acontecia todos os dias. Era sempre pontual, e exatamente por este motivo mesmo Jean nunca sentiu falta de um despertador. Naquele horário, todos os dias, um exemplar da última edição do jornal local se materializava no cilindro receptor, páginas de celulose preenchidas com pigmentos coloridos como se acabassem de sair da prensa. De segunda a sexta-feira o equipamento substituía com vantagens qualquer despertador. Mas num sábado de manhã?? Daria para desativar isto, desligar este apito nos fins de semana? Jean ainda não era muito familiarizado com detalhes dos mecanismos desses equipamentos modernos, mas Victor certamente poderia ajudá-lo nisso mais tarde.

Levantou-se da cama. Vagarosamente as lâmpadas elétricas de Edson sentiram o movimento, e os filamentos centrais dos bulbos começaram a aumentar de intensidade.

- James?

Não era tão rico assim a ponto de ter um mordomo particular humano. Mas, como a maioria das pessoas naquela época, existia um autômato mecânico sempre pronto para executar as tarefas simples do dia a dia. Era mudo, mas ouvia muito bem. "Melhor assim", era o que Jean sempre pensava ao lembrar disto.

A engenhoca mecânica, da altura de um criado mudo, surgiu carregando uma bandeja com o café da manhã recém preparado. Cada ponta firmemente segura por cada um dos quatro braços mecânicos. A xícara de café fumegante acabara de sair da cafeteira elétrica. As quatro torradas, a geléia de ameixa, torrões de açúcar, tudo ocupava uma distribuição geométricamente perfeita sobre a bandeja, precisamente posicionadas pelos braços mecânicos de James. Muitas vezes Jean se perguntou: o autômato pensaria? Teria algum tipo de consciência? Não, não... é apenas um autômato, feito por mãos humanas! Era ridícula esta tendência corrente de tentar humanizar máquinas. Mas que dizer das pesquisas mais recentes, de máquinas criando outras mais sofisticadas? Quem é criador de quem, nestes casos? Bom, isto é um problema para o futuro! Pondo os pés no chão, o importante é usar as máquinas da melhor forma possível, usá-las para nos facilitar a vida!

- James, meu jornal, por favor!

Por favor? Haveria mesmo necessidade de ser tão polido com uma máquina? James obedeceria de qualquer maneira, independente de como ele pedisse! "Traga-me o jornal!", ou "Jornal", ou "Vai imbecil, e me traz a porcaria do jornal!"... tanto faz, de qualquer forma que Jean falasse o autômato seguiria à risca suas ordens. Mas Jean fazia questão da polidez, e por isso sempre completava suas ordens com um "por favor", ainda que fosse para uma máquina. E se dentro de seus mecanismos mentais elas tramassem uma revolta, vingança contra os humanos opressores? Jean preferia não correr riscos, por isso sempre procurava tratar educadamente seu autômato, como se ele fosse mesmo de carne e osso. Por isso mesmo, ao receber o jornal da garra mecânica de um de seus quatro braços (os outros três eram suficientes para suportar a bandeja, visto que três pontos não colieares sempre determinam um plano) ele fez questão de completar:

- Muito obrigado, James!

Seria o autômato capaz de responder? Apesar de apreciar sua mudez, poderia ser uma boa experiência acoplar a ele um vocoder simples para ouvir suas respostas. Teria o autômato capacidade de cálculo suficiente para elaborar respostas, ainda que simples? Também questionaria Victor a respeito. Era muito bom ter um amigo especialistas em tais autômatos e calculadoras automáticas!

Jean começa a ler a primeira página enquanto James deposita a bandeja sobre o criado-mudo ao lado de sua cama (este sim, um objeto realmente inanimado!). "18 de maio", começa a ler. Mas era impossível não ler primeiro a manchete principal, em letras garrafais, que estava na boca de praticamente todos os habitantes do planeta (e até fora dele, nos pólos lunares):


                 "HALLEY ESTÁ PRÓXIMO!!!"

"Depois de quase duas décadas de preparativos, de cápsulas de materiais, equipamentos e recursos humanos sendo lançados da Lua e da mesosfera terrestre quase que diariamente, cientistas dos quatro cantos do planeta esperam ansiosos a conclusão de seu sonho mais desejado: o encontro com o famoso cometa! Foram anos e mais anos de lançamentos, milhares de toneladas de material e equipamentos enviados àquele ponto especial, aguardando a aproximação do tão esperado corpo celeste, fóssil vivo que muito tem a dizer sobre nossas origens. Fotografias recentemente vindas da Lua, proveniente de observatórios lunares, mostram [vide figura impressa abaixo] uma construção em forma de estrela de 15 pontas rodeada de um enxame de cápsulas transportadoras de materiais e equipamentos. O formato em estrela é útil para criar a pseudo-gravidade gerada pela força centrífuga da estrutura em rotação, importante para os atuais astronautas que aguardam a chegada do corpo celeste." (...)

James pulou detalhes posteriores. Todos fatos conhecidos, já lidos e relidos, não valia a pena rever: cerca de 120 humanos enviados em 35 cápsulas, mais umas 700 cápsulas de matéria-prima, biomassa, equipamentos e autômatos de suporte, ao longo destes quase vinte anos de lançamentos diários. As cápsulas que enviavam astronautas eram bem peculiares, obras-primas de engenharia. Inicialmente minúsculas, formato aerodinâmico ideal para sair da atmosfera, no vácuo elas se desdobravam como um origami sendo desfeito. Mas com uma diferença fundamental: elas não se tornavam uma folha plana, mas uma estrutura cada vez mais complexa. Ao fim, essas cápsulas de sobrevivência se reuniam naquela atual estrutura de estrela, onde agora habitava aquela massa humana que aguardava a chegada do Halley, daqui a poucas horas. Continuou a ler o artigo, num ponto que lhe pareceu bem mais interessante:

"Contato visual garante que tudo (exceto por lamentáveis baixas de 3 saudáveis aventureiros da 17a. cápsula de sobrevivência, vitimados por um lamentável acidente de despressurização) está correndo como o planejado. Escafandros de vácuo foram testados com sucesso em meio àquela região cercada do éter, e os astronautas conseguiram com sucesso orientar as cápsulas de materiais. Saudamos a bravura destes guerreiros que se aventuraram imersos no éter para garantir o sucesso desta nossa empreitada. O intervalo de comunicação atual é de pouco mais de 1 minutos, visto que se encontram a cerca de 60 vezes a distância da Terra até a Lua..."

- Jean! Jean! Já estou aqui embaixo. Venha aqui você, não vou subir! Estou com pressa!

Victor estava na portaria do arranha-céus. Com a impaciência de sempre...

- Acabei de acordar, Victor! Suba você! São seis e meia da madrugada, a apresentação da orquestra elétrica é meio-dia! Aquiete-se!!!

- Tão cedo?

- É, bem cedo! Já tomou seu desjejum? Suba e me acompanhe então!

Fez-se breve silêncio na concha acústica acoplada à parede. Enfim, uma resposta:

- Tudo bem. Me autorize então a subida.

Jean pressionou um botão do lado da cama, e introduziu numa fenda do transdutor um cartão perfurado rígido com estes caracteres sobrepostos aos furos: "Victor - amigo". Isto permitiria sua entrada livre, desde, claro, ele não tivesse esquecido mais uma vez seu cartão contra-chave...

(...)

Demorou algum tempo até Victor subir. Tempo suficiente para Jean terminar rápido seu café e esperá-lo na sala de estar do apartamento. Afinal, 634 andares não era algo assim tão rápido de se percorrer, mesmo dentro dos cilindros elevadores magnéticos. De repente, se lembrou: "Victor tem pavor de elevadores magnéticos!!" Nada a ver com claustrofobia, pois o amigo não tinha problema algum com lugares fechados. Bem poderia se arriscar na carreira de astronauta, pois o empecilho principal, aquele que cortava cerca de 96% dos candidatos, nele era inexistente. Ele não temia elevadores em geral, apenas os magnéticos! Uma coisa era subir e descer dentro de uma cápsula sustentada por cabos de aço; outra completamente diferente era entrar num cilindro no meio de um túnel vertical de ar, suspenso no eixo central deste túnel por nada mais além de um campo magnético móvel em torno de suas paredes magneto-indutoras! Vantagens? Diziam que sim, que isto permitia colocar mais de uma cápsula de elevação no mesmo poço (desde que, óbvio, se tomasse o cuidado delas não se chocarem entre si!) Nos atuais edifícios de 2000 andares era comum até 50 cápsulas ocuparem o mesmo poço, cada uma delas encarregada de servir uma região de 40 andares. Tudo bom e bonito, mas... flutuar quilômetros acima do solo, suspenso apenas por um campo de força invisível? Victor talvez nunca fosse capaz de superar esta fobia! Com toda certeza, o motivo de nunca escolher morar em apartamentos. Jean realmente se surpreendeu ao ouví-lo chamar à porta do apartamento.

- Entra, seja bem vindo, mas... que cara é esta?

Victor estava pálido. Era evidente o pavor que precisou superar.

- Me desculpe, Victor! Esqueci mesmo!

- Tudo bem, tudo bem! Uma hora ou outra preciso enfrentar isto.

Pega o jornal, deixado na mesa de centro da sala de estar.

- Ah, chegou a hora!

Os olhos brilhavam! Parecia ter esquecido totalmente a fobia, recentemente despertada.

- Sim, o cometa chega amanhã. O ponto mais próximo da Terra em que chegará desta vez.

- Onde nós chegamos, hein!!! - seus olhos miravam o vazio. - Onde eles estão esperando mesmo?

- Num ponto a cerca de uma 60 vezes... 58 e poucos, eu acho... Sim, umas 58 vezes a distância entre a Terra e a Lua.

- Onde chegamos... Quem Poderia imaginar isto no século passado?

Jean lembrou da recente virada de século, de todas as expectativas, planos futuristas... Que havia sido concretizado? Muita coisa sim, mas não como o imaginado. Mas muitas outras não. Marte, por exemplo, continuava inalcançável! Sem planos viáveis de atingí-lo. Mas a nossa Lua, ah!!! Que orgulho! Colônias lunares permanentes nos dois pólos de nosso satélite, observatórios de precisão inimaginável, livres de distorções atmosféricas. E viagens de ida e volta de frequência aceitável, praticamente dez por semana em todo o planeta! Óbvio que a idéia de lançadores de aeróstatos foi uma revolução: leve o lançador de seu foguete até uma altura de atmosfera bem rarefeia, cerca de 60, 70 quilômetros de altitude. A velocidade de escape diminui muito pouco, mas você eliminou uma parte importante do problema: a resistência do ár! E agora eles não precisavam ser lançados verticalmente, mas obliquamente numa órbita que se alongava cada vez mais. Que considerável economia de propelentes!!! Inúmeras cápsulas espaciais foram lançadas com sucesso desta altitude, com considerável economia de energia.

- Dá para imaginar que em fins dos anos 60 do século passado lançavam aqueles foguetes gigantescos da superfície, desperdiçando aquela quantidade absurda de propelentes? Sendo que a solução sempre esteve na cara...

James se aproximou com uma segunda bandeja mais completa. A primeira era para um desjejum de uma pessoa, então ele precisou improvisar. Se saiu muito bem!

- Às vezes fico pensando, Victor... quanto daquelas previsões de virada de século nós concretizamos, hein?

- Algumas coisas erraram feio, não é? Máquinas voadoras portáteis? Pílulas de comida? Teletransporte? E as viagens no tempo de H.G.Wells? Quanta ingenuidade...

- Mas, ao mesmo tempo, todas essas coisas impensáveis. Colonizar um cometa, por exemplo: quem imaginaria isto?

Victor pensou um pouco.

- Existiu um escritor, Julio Verne, que escreveu algo parecido com isso. Como era mesmo o nome do livro? "Heitor Servadac"? Realmente não lembro...

- Ah, eu li este livro! Encomendei uns meses atrás no materializador. Fantasioso demais, não é? Sobre um cometa que teria passado "de raspão" na Terra e levado com ele parte da Europa e do mediterrâneo, não é? A história prossegue com os "caronistas" descrevendo a viagem deles sobre o cometa até os confins do Sistema Solar. Impressionante esta imaginação, ainda mais considerando a época em que foi escrito! Mas, definitivamente, fantasioso...

- E não é quase a mesma coisa que estamos tentando fazer agora?

- Não, é bem diferente! Primeiro, não é um acidente. Nós estamos preparando este encontro há décadas! Todas as cápsulas já estão no local esperado, aguardando a aproximação do cometa para ocuparem seus lugares, tomarem sua carona pelo Sistema Solar!

- "Cosmonautas Caronistas"... Bom título, Jean!! Escreveria um conto de ficção científica com este título, se isto já não estivesse prester a virar realidade...

- Ainda tenho medo. Acha que pode dar certo, Victor? Um ato heróico, mas... tem chance de dar certo?

- Quê você teme?

- Tem o éter, por exemplo! Espaço sem matéria consistente, alguns começam a denominar de vácuo.

- Vácuo? Não, esquece! Por onde a luz se propaga? Pelo nada? Impossível! Existe o éter, matéria sutil, imponderável, mas... definitivamente ele existe!

- Certo, mas... ele não é respirável! Uma falha minúscula nas cápsulas e nossos heróis morrem despressurizados, pois eles não podem respirar éter. É seguro uma viagem desta, ainda mais durante cerca de 75.3 anos?

- Não temos as cidades submarinas, Jean? Cúpulas debaixo de mais de dez quilômetros de água, onde se vive à pressão convencional? No espaço precisamos manter uma única atmosfera confinada, e não aguentar a pressão de milhares de metros de água...

- Realmente, o problema é inverso: não precisamos aguentar 10 quilômetros de pressão dos oceanos, e sim SEGURAR a pressão de uma atmosfera das cápsulas ou cúpulas espaciais.

- Impedir de sair é mais fácil de segurar a entrada... Além disso já temos uns dez anos de experiência nas colônias lunares.

- Sim, mas... de onde tiramos o oxigênio?

- Nas cidades submarinas não tiramos da água? E na Lua, antes de descobrirmos aquele gelo todo nos pólos, as colônias não tiravam oxigênio até mesmo da poeira lunar?

- Mas no cometa...

- A única diferença é que lá ela não estará líquida! Basta derretê-lo! O que mais existe no Halley é gelo de água!

- E energia para isso? O cometa vai ficar bem longe do Sol, acho que seu afélio é além da órbita de Netuno. Nenhum espelho concentrador parabólico poderá resolver isto, por maior que seja!

Victor aponta um ponto específico da reportagem:

"A energia dos aventureiros, tão longe de nossa estrela central, será fornecida pelo recém descoberto Fogo Atômico, já em experiências bem sucedidas na Cidade Lunar Boreal. Parece ser uma fonte suficiente para suportar até a volta do cometa para as proximidades do nosso planeta, que deve acontecer a pouco mais de 75 anos..."

- Fogo Atômico? Já ouvi falar, mas... não sei muito bem o que é ainda.

- E aquela caixinha bonita cheia de botões ali no canto serve para quê? -lembra Victor, apontando um teclado no canto da sala de estar.

Jean pega a pequena caixa de madeira sobre a qual se vê teclas de marfim, com o alfabeto esparramado sobre cada uma delas. Escreve: "FOGO ATOMICO", e completa "DESCR RESUMIDA. ENVIAR PORTUGAL CIDADE 1345 EDIF 3422 APTO 634/5". A pergunta entra pela parede através do cabo conectado ao teclado. Em pouco tempo a questão se espalha pela rede telegráfica mundial solicitando uma resposta. Surge em poucos segundos: o apito do materializador de publicações avisa que era hora de sanar suas dúvidas!

- Deixe-me ver. - Jean retira uma página única do materializador, e começa a ler. - "Fogo Atômico: forma de energia descoberta a alguns anos por..." blablabla, blablabla... "Baseia-se em desestabilizar núcleos atômicos de grande massa bombordeando-os com projéteis iônicos desprovidos de nuvem eletrônica..." Ah, isto é interessante!! "Pesquisas recentes apontam grades de grafite como possíveis controladores da reação em cadeia iniciada pela técnica, que recentemente varreu a cidade de Moscou num cogumelo de energia nunca antes vista pela humanidade. Nossas homenagens a esses bravos pesquisadores que se foram de forma tão precoce, e pêsames aos familiares e conhecidos." Tenho medo disso, sabe? Usar algo assim, sem pesquisa... Parece precipitado!

- Não havia opção. E a chance era única. Se esta passasse, teríamos de esperar outros 76 anos para repetí-la. E Halley nem estaria tão perto como estará agora...

- Será que ainda estaremos vivos quando eles retornarem?

- Bom, nem serão eles mesmos que retornarão. Talvez alguns, bem idosos. Mas quem herdará as informações todas serão os descendentes desta colônia. Valerá a pela, disto não tenho dúvida! Já imaginou o que significa um observatório instalado num cometa periódico? Que conhecimento poderemos adquirir? Passar quase raspando Marte daqui a algum tempo, por exemplo. Valeria a pena deixar lá uma cápsula? Enviar alguns dos colonos para lá, tentar contactar os construtores daqueles canais gigantescos do planeta vermelho?

- São heróis, isto admito! Pensar que um pedaço de gelo e lama de cerca de 11 quilômetros será o lar onde viverão pelo que resta de suas vidas...

- Imagine então, Jean, as fotos fantásticas que eles conseguirão de Júpiter, Saturno, Urano... com sorte, também de Netuno! Todos parecem ter mais satélites do que aqueles que nossos telescópios podem captar. Mas tão próximo assim, quantas maravilhas nos aguardam?

- Trên quartos de século até voltarem. Não sei se estaremos aqui para ver o resultado...

- Alguém estará! Isto vai compensar todo o esforço!

(...)

Cansaram-se de tanto especular sobre o futuro. Jean coloca em seu fotofonógrafo uma gravação da Orquestra Elétrica que eles presenciariam daqui a poucas horas. Que som límpido!

- Isto foi um avanço, sem dúvida!

- Sim, nem me lembro mais daqueles fonógrafos antigos, aquela agulha arranhando os sons esculpidos na superfície dos discos. Lembra deles? Nem faz tanto tempo assim...

- Lógico que lembro! E dos arranhões, que coisa inconveniente! Você estava sentado em sua poltrona, apreciando a gravação favorita, e de repente é obrigado a se levantar e dar um peteleco na agulha, que insiste em repetir aquele trecho numa cacofonia insuportável... Era tão fácil resolver, não é? Era só fotografar o som...

- Sim, tudo se resolveria fotografando o som umas quarenta mil vezes por segundo. O problema todo era: como tornar o som visível? A membrana de ponto central fluorescente resolveu todo o problema. Podíamos agora "ver" o som, e podíamos fotografá-lo também!

As notas do primeiro movimento da Orquestra Elétrica saíam límpidas dos dois cones amplificadores do fotofonógrafo. Separados, davam uma boa sensação de profundidade. Era possível se determinar com exatidão de que direção vinha o som de cada um dos instrumentos daquela composição.

- Quando conseguirem colocar este som límpido nos nossos visores, será uma maravilha!

Observação inquestionável! A nitidez dos atuais visores era impressionante, as películas com quadros de imagens eram convenientemente compactas, e recentemente coloridas. Desde o princípio com capacidade de visualização tridimensional, simples questão de gravar duas imagens ligeiramente deslocadas, com desvio de paralaxe capaz de nos proporcionar a impressionante ilusão. Até algum tempo atrás visível apenas com óculos bicromáticos, recentemente alguns visores os dispensavam, desde que observado de pontos específicos à frente da tela. Mas aqueles visores de quadros de imagem em movimento ainda pecavam pela falta de som. Difícil registrá-lo nas películas fotográficas, sincronizar os quadros com as ranhuras dos discos antigos, mas agora, com esta técnica de fotofonógrafos... "Sim, agora dava para sincronizar as coisas! Registrar os fotogramas sonoros ao lado dos quadros de imagens.", Victor pensou. "Isto pode dar certo!"

(...)

Entraram no cilindro elevador. Victor tentou controlar sua fobia da suspensão magnética, mas seu temor era evidente quando ele cruzou as portas automáticas. Desceram os 634 andares até o subsolo, e depois pelas escadas até a garagem.

Lá estavam os dois Jetmóveis! O formato justificava o nome: aquele veículo prata alongado lembrava mesmo um foguete! Também a velocidade! Felizmente a uns quinze anos já havia sido abolida a absurda "Lei da Bandeira Vermelha", que obrigava sempre existir alguém correndo à frente dos veículos automóveis, avisando os pedestres de sua aproximação com uma bandeira vermelha balançando e uma corneta barulhenta tocando. Isto já era passado, os atuais veículos poderiam correr, desafiar suas capacidades.

Quando Jean aproxima-se de seu veículo, sons monotônicos alternadamente longos e curtos, intercalados pos pausas igualmente longas e curtas, começam a ser ouvidos num padrão característico. Jean se apressa, e retira do veículo uma caixa do tamanho de um grosso livro, com cerca de uns 5 ou 6 quilos. ".- .-.. ---      .- .-.. ---      .- .-.. ---". Ele levanta a caixa de madeira e gira uma chave central na posição de "RESPOSTA". Começa a pressionar um botão abaixo desta chave num padrão parecido como o primeiro. Era um telegrafista experiente, código morse era seu segundo alfabeto! É incrível a quantidade de informação que se pode trocar usando apenas um botão!!

- UAU! - Victor está impressionado. - Não sabia que você tinha um desses!

Ali estava, em suas mão, a última palavra em tecnologia: o Telégrafo Sem Fio! Criado em 17 de janeiro de 1909, pouco mais de um ano. Transmissão e recepção de mensagens por ondas de rádio, descoberta científica recente, ondas eletromagnéticas se propagando através do éter.

- Impressionante mesmo, Jean! Ondas eletromagnéticas... Se soubéssemos disso antes, poderíamos enviar para os caronistas do Halley também! Já pensou? Bem mais prático que a forma de contato visual de hoje, com telescópios aqui e lá tentando não perder o foco enquanto trocam mensagens morse luminosas. Posso ver?

Geradores químicos lhe proviam da energia necessária. Como imaginar há vinte anos atrás, em pleno século 19, que um dia seria possível conectar-se à Rede Telegráfica Mundial usando um aparelho sem fios, alimentado por uma dúzia de Pilhas de Volta, leve e portátil o bastante para você conseguir levá-lo no próprio automóvel para todos os lugares?

- Isso já transmite voz?

- Só código morse por enquanto. Suficiente, não é?

- Só se for para você... Não me chamo Victor Frankeinstein se não conseguir colocar som ou até mesmo imagens nesta coisa. Quem era?

- Michelle! Quer saber se podemos levá-la à apresentação da orquestra elétrica.

- No meu Jetmóvel não dá, apesar de que apreciaria muito a companhia. Estou levando esse gravador fotofonográfico no banco do carona. Não quero perder nem um segundo do espetáculo!

- Tudo bem, ela vem comigo. - começa a entrar novamente aquele padrão de apitos curtos e longos no botão do aparelho. - Mas preciso reabastecer de água antes, tudo bem?

- Certo! O meu já está abastecido. Se precisar de carvão pode tirar um pouco do meu, tem bastante no vagão de carga!

- Não, de carvão eu abasteci ontem a noite. Só vou precisar mesmo é de água...

- Então, tem um posto daqui a uns cinco quilômetros, no meio do caminho até o prédio da Michelle. Vamos ver quem chega primeiro?

Ambos pulam para dentro e giram ao mesmo tempo a manivela central de partida nos painéis de seus veículos a vapor. Se dirigem ao posto de abastecimento de água e carvão mais próximo, disputando em seus novíssimos veículos prateados um verdadeiro racha na impresionante velocidade que beirava os quarenta quilômetros por hora!!!


* FIM *

01/10/2011

Castigo Eterno


 - Cântico I -


Nunca esperei encontrar nada após a morte. Na verdade nunca fui muito religioso enquanto vivo, de forma que quando comecei a perceber aquele túnel se formando à minha volta, com o distante ponto de luz branca no seu final, ainda tentei racionalizar o fato. Óbvio que ainda havia resquícios de vida em meu cérebro, e aquilo tudo não passava dos efeitos de falta de oxigenação de um corpo moribundo, próximo de se desligar completamente. Mas a sensação era real demais! Comecei a duvidar sinceramente deste meu ceticismo!

Olhei para baixo. Era eu mesmo lá? Cercado de médicos, numa mesa de operações? "Oras bolas, deixe de besteira! Devo ter ouvido tantas vezes esta velha ladainha de espírito observando seu próprio corpo que estou sonhando com ela. Relaxa, daqui a pouco vai acontecer o óbvio, aquilo em que você sempre acreditou: você morreu, e vai deixar de existir! Nada mais do que isso! Por enquanto, trate de curtir esta viagem proporcionada pela desoxigenação do cérebro, primeira e última que você vai presenciar!"

Acreditem! Eu realmente TENTEI acreditar nisto com todas as forças que ainda restavam em meu corpo moribundo! Mas a sensação de estar deslizando por um longo túnel começou a demorar muito mais tempo do que eu esperava para desaparecer. Espirais doidas fechavam tudo o que podia ver à minha volta, e a luz branca no fim do túnel crescia mais e mais com o passar do tempo. Haveria então algum fundamento naquilo que sempre desprezei em vida como simples fanatismo? Haveria em mim alguma parte eterna, que desconhecia? Alguma alma?

- Nós o perdemos. Hora do óbito, 20 horas e 17 minutos...

Meu lado racional volta a funcionar: se eu ouvi isto, de alguma forma meu aparelho auditivo ainda funciona. Morri? E ainda ouço estímulos do meu mundo? Que porcaria é essa?

- Solteiro. Nenhum familiar esperando, nem amigos... Melhor assim, não precisamos comunicar isto a ninguém por enquanto. Mas Carlos, você sabe que o erro foi seu, não é? Não percebeu que a pressão estava caindo? Tudo bem, que isso fique entre a gente. Mas que não se repita! De qualquer forma, no estado em que ele estava, se não fosse isso certamente seria por asfixia.

Nenhum amigo esperando? Caramba! Quanta consideração, hein!!!

- Desculpa Carlos! Olhando a coisa por outro ângulo, talvez você até tenha feito bem ao paciente. Abreviou uma morte inevitável que seria bem mais sofrida de outra forma...

Aquilo era real! Não poderia estar imaginando esta trama com tantos detalhes! Nunca fui tão imaginativo a este ponto...

Assim divagava, e me sentia aproximar cada vez mais rápido da luz branca no final daquele túnel, quando percebo a presença inquestionável de uma força maligna! Ela me puxava, sem dúvida alguma! Impedia que eu chegasse àquele ponto de luz! Deus, que situação absurda era esta pela qual eu estava passando? DEUS? Eu disse DEUS? Ateu, sempre tentando provar sua não-existência, me surpreendi pensando nEle nesta situação tão inusitada. Eu já não deveria ter morrido, deixado de existir e pensar a muito tempo? O que me fazia sentir aquele túnel à minha volta, com a luz ao final e uma força das trevas tentando me segurar, me levar para baixo? Era uma situação inesperada, e reagi de forma também inesperada: rezei! Se eu vivi no erro minha vida inteira, não poderia desprezar minha última chance de salvação! "Deus, perdoe-me ter duvidado de você minha vida toda! Mas te suplico agora: se possível, livre-me desta força maligna que tenta me puxar para baixo! Por favor, Deus, Buda, Krishna, Alá!!!!". Desesperado, nem sabia mais a quem dirigir meu pedido! Mas fui atendido! Duas figuras surgiram daquele distante ponto de luz. Reconheci a maior: o próprio arcanjo Miguel, acompanhado de um querubim. Pegou em minha mão, e disse:

- Você precisa desejar estar aqui! Você deseja?

- Sim, meu arcanjo! Eu desejo!

- Passar o resto de sua eternidade sob a proteção da Santíssima Trindade, Senhor dos Céus e da Terra?

- Sim, isto é tudo que eu...

Antes de terminar a frase, senti um tentáculo gosmento me puxando para trás, agarrado com firmeza pelas pernas. A face celestial do arcanjo Miguel se desfigurou neste mesmo instante, uma língua de víbora balançava entre dentes afiados de seu rosto antes angélico, esbravejando:

- Solta, demônio!!! Este aqui é nosso!!!

Igualmente medonho, chamas de ódio saíam dos olhos do pequeno querubim!

- Deixe aqui, Diabo!! Nós queremos este!!

Inútil! Arcanjo e querubim tentaram me segurar, mas a força maligna me puxou com toda sua força para baixo, e nada mais me lembro até o momento em que acordei na borda daquele vulcão...



- Cântico 2 -


- Desta vez quase que te levam de uma vez!! Se não te seguro... Você fica me devendo esta.

Olho em volta. Onde estou? E que figura obscura era aquela, dois chifres na testa e asas de morcego nas costas, que dirigia a mim suas palavras?

- Por pouco e você estaria agora no Paraíso, condenado a passar o resto de sua eternidade rendendo cânticos e homenagens ao Deus Santíssimo e toda sua hierarquia de anjos e arcanjos. Nem precisa me agradecer, saberei te cobrar o favor na hora certa.

Acordei atordoado. Tinha medo de perguntar, mas o fiz assim mesmo.

- Que lugar é este? Onde estou?

- Bom, muitos costumam chamar isto aqui de Inferno. Gosto do nome, acho bem sonoro...

Não podia acreditar naquilo! Então existia mesmo uma alma imortal? E eu, cabeça dura, desprezei todas as chances e acabei condenado à danação eterna? Isto não era justo... Como é que eu poderia saber que estava errado? Precisava de provas!

- Ai ai ai... como sou um infeliz... Você provavelmente é o carrasco que vai me fazer sofrer torturas eternas, não é?

- Do que você está falando, Asmodeo? Ainda não se lembrou de mim?

- De você? Quem é você?

- Baal! Esqueceu seu velho amigo de éons?

Baal... O nome não me era estranho! De fato! Antes de me agarrar ao ateísmo, eu havia estudado ocultismo a fundo! Lembro-me agora muito bem: o pacto demoníaco, a entidade manifestando seu nome... sim, era Baal, Balial, coisa parecida. Depois de me tornar ateu, passei a considerar toda aquela besteira de pacto como conseqüência dos chás de cogumelo e outras poções estranhas que tomei no ritual, mas agora... Parece que algo realmente havia acontecido!

- Você não cumpriu sua parte do trato! Dinheiro, fama, mulheres... Você não me deu nada disso!

- Ah, eu te prometeria qualquer coisa para te tirar daquele lugar! Você não merecia continuar ali... Além disso, você sempre foi capaz de conseguir tudo isto, sem precisar de pacto nenhum. No fundo no fundo, você não queria! O que queria era voltar para cá, mas não sabia disso.

- Voltar?

- Você ainda não lembra disso tudo aqui, não é?

Realmente, nada daquilo fazia sentido: o vulcão de um lado, abismo de outro. Que estava acontecendo?

- Vem comigo, vou te mostrar.

Abre suas asas negras e me pede para acompanhá-lo. Caminho até a borda do vulcão, observando o abismo negro lá embaixo.

- Você realmente não pretende descer a pé, não é?

- Como?

- Suas asas, Asmodeo! Em suas costas!

Tomo consciência de possuir formidáveis asas de morcego, de envergadura invejável.

- E eu devo pular?

- Ué, esqueceu como voar? Ninguém esquece, é igual andar de bicicleta.

Estico minhas asas e começo a planar para longe do vulcão, contemplando todo aquele estranho mundo cheirando a enxofre...



- Cântico 3 -


Uma cidade, ou algo que vagamente lembrava uma cidade, começou a aparecer abaixo de nós.

- Ah... a boa e velha cidade de Dite!!

Legiões de demônios se esparramavam pelas vielas tortuosas. Estremeço ao ver que Baal começava a descer pedindo que eu o acompanhasse.

- Não vem? Vai perder o show?

- Show? Que show?

- Sedit e sua banda de heavy metal!

- Ah! sempre achei que isto tinha nascido aqui mesmo...

Sedit começou seu solo num instrumento com formato de um longo unicórnio de cordas metálicas esticadas até uma base de crânio de bode. Baterista e vocalista estavam a postos, prontos para entrar no momento correto da música. Reconhecendo os primeiros acordes tão bem interpretados, não consigo deixar de comentar:

- Mas este não é o...

- Jimmi Hendrix? Sim, o próprio, mas... - Baal me chama reservadamente para o canto: - não o chame por este nome aqui, ok? Aqui ele prefere ser chamado pelo seu nome infernal. Publicidade, entende? Poucos aqui sabem quem é Jimmi Hendrix, mas "Sedit Chords  and Band" já é um nome reconhecido a milênios!

- E o baterista?

- Beherit, mas lá na Terra era conhecido por John Lennon.

- Lennon tocando bateria? Nunca poderia imaginar isto...

- Nem ele! Descobriu isto só na última vez que retornou.

Retorno? Show de rock no Inferno? Vendo toda aquela legião de demônios em volta, animados e dançando, percebi que muita coisa ainda precisava ser esclarecida. Mas acho melhor ser paciente, não seria capaz de assimilar tantas supresas tão rápido. O vocalista viajava dos graves retumbantes ao mais profundo agudo com facilidade impressionante! A voz não me era de todo estranha:

- E quem é este?

- Elvis, o Rei do Rock!

- Numa banda de heavy metal? Que surpresa. E o nome infernal dele?

- É Elvis mesmo! Ele é um dos poucos que tiveram a sorte de receber na Terra o seu próprio nome infernal. Questão de probabilidade, entende? Não é muito comum na terra os pais batizarem os filhos com nomes de demônios. Um preconceito lamentável da parte dos humanos...

As cenas que vi eram indescritíveis. Desorganização completa, alguns demônios sacudindo as cabeças, vários copulando, demônios com diabas, diabas com diabas, diabos com diabos... Alguns agredindo, outros sendo agredidos, mas uma coisa era evidente: todos felizes! Nenhuma sombra de sofrimento transparecia em lugar algum, mesmo os que eram agredidos as recebiam com satisfação evidente no olhar.

- Mas que bagunça, meu Deus... - me calo imediatamente, temendo ter proferido alguma "blasfêmia" naquele lugar de perdição. - Perdão, Baal! Acho que não deveria dizer esta palavra aqui, não é?

- Que palavra? Deus? Oras, pode pronunciá-la no momento que você quiser! Nenhuma lembrança ainda, Asmodeo? Ainda não conseguiu entender qual é a lei aqui?

Realmente não. Nada ainda parecia fazer sentido.

- A lei é não ter lei! "Faz o que tu queres, que há de ser tudo da Lei!"

- Anarquia?

- A mais total e completa! A única que realmente funciona.

- Mas, e Satanás? Não é esse o nome do chefe disto tudo aqui?

- Satã? Caramba, você ainda não se desligou completamente da vida terrena, não é Asmodeo? Ele é nosso fundador, todos temos um carinho especial por ele, mas... definitivamente, não manda em coisa nenhuma. Nem deseja isto. Quer simplesmente viver como qualquer um aqui: fazendo o que lhe der na telha!

A visão de demônios batendo e agredindo outros com pauladas ainda me incomodava.

- E aqueles que vi apanhando? Estão sendo castigados?

- Você viu expressão de sofrimento neles?

- Não. Vendo bem... realmente parecem felizes!

- E estão, te garanto! Totalmente satisfeitos em encontrar companheiros insanamente sádicos para lhes infringir os "castigos" tão desejados. Ninguém aqui faz nada que não tenha vontade.

- E todos aqueles diabos e diabas transando... Nunca imaginei que existiam demônios machos e fêmeas.

- Não existe mesmo. Provavelmente chegaram recentemente da terra, ainda estão meio presos aos desejos que sentiam lá. Nenhum problema, sempre vão encontrar parceiros e parceiras aqui na mesma situação. Há alguns séculos atrás eu próprio também tinha tal compulsão, e nunca fui censurado por manifestá-la sempre que sentia vontade. Mas a maioria está aqui no inferno há muito tempo mesmo, entende? Uma hora ou outra todos nós acabamos nos desinteressando por sexo, e nos tornamos demônios assexuados...

- Vi uma diaba naquele canto que, realmente...

- Lilith?? Ah, vejo que você se excitou, não é mesmo? Era de se esperar, você acabou de chegar da terra. O desejo sexual ainda é bem forte. Posso te apresentar algumas diabas daqui bem interessante, muitas delas já foram minhas amantes quando ainda me interessava por isto. Mas Lilith? Posso te apresentar a ela, mas temo que você vá se decepcionar...

- Ela já deixou de se interessar? É uma diaba assexuada?

- Assexuada? Rapaz, você não olhou bem para as curvas daquela diaba? Acredito que ela é uma das únicas que provavelmente nunca vai perder o interesse por sexo. Só que de uns séculos para cá ela está mais interessada mesmo é em outras diabas... Por enquanto acredito que você não seria nem um pouco interessante para ela.

- Por enquanto? Quer dizer que ela pode mudar?

- Lilith é um camaleão sexual! Sempre varia sua preferência, acredito que é exatamente por este motivo que ela nunca perdeu o interesse. Posso te apresentar, para que vocês se tornem amigos. Quem sabe se daqui a um ou dois séculos ela não passe a gostar de demônios machos novamente...

Baal levanta vôo ao término do show, pedindo que eu o siga. Muito mais altos desta vez, vejo claramente o caudaloso rio de sangue Estige, levando a uma cidade ainda maior que Dite.



- Cântico 4 -

Embora bem maior, a cidade que se descortinava abaixo era mais pacata. Poucos demônios caminhavam entre suas ruas espaçosas, bem diferente do caos da cidade de Dite, sede daquele show infernal.

- Você deve estar cheio de perguntas ainda, Asmodeo. Vamos descer aqui e conversar com mais calma.

Ao nos sentarmos no banco da praça central, atravessada por um riacho de lava vulcânica, Baal começou a falar:

- A primeira pergunta que deve martelar em sua cabeça é: por que eu estou no inferno? Estou pagando pelos meus pecados?

- Mais que isso: estou condenado a ficar aqui por toda a eternidade?

Baal pensou um pouco, e respondeu.

- Sim, se você se comportar bem é isso que vai acontecer. Mas é difícil, vez ou outra alguém desliza e é enviado a passar umas temporadas lá na terra...

- Não estou aqui sofrendo um castigo? Por ter recusado a chance de Salvação?

- De forma alguma! Na verdade, você simplesmente voltou para cá, como acontece com muitos depois que passam uma temporada lá no seu antigo planeta físico!

- Eu já estive aqui ANTES? Quer dizer, antes de ter nascido?

- Antes de ter nascido na última vez? Sim, mais umas quatro ou cinco vezes. Você sempre acaba caindo na mesma besteira... Eu mesmo só fui para lá umas duas vezes, e tenho certeza absoluta de não ter a mínima vontade de aparecer por aqueles cantos de novo. Na primeira vez me expulsaram a pedradas, e na segunda virei churrasco numa fogueira da Inquisição... Não, tenho certeza que não pretendo voltar tão cedo naquele inferno azul...

Em minha mente reinava absoluto caos. Primeiro, lembrei agora claramente, havia procurado no ocultismo maneiras de conseguir vantagens sobreumanas. Sim, era mesmo Baal que me apareceu naquele pacto demoníaco de algumas décadas atrás. Depois, desiludido, defendi o ateísmo com toda a força que pude. E agora, esta situação absurda aqui, eu um demônio de chifres e asas de morcego conversando com um velho amigo do Inferno.

- Então, Asmodeo: nem mesmo todo o peso da matéria daquele mundo físico apagou completamente as lembranças do seu amigo etéreo aqui quando você passava aquelas "férias corretivas forçadas" na terra. Me fez prometer coisas (que, diga-se de passagem, sempre foi capaz de conseguir por si próprio), mas o que realmente queria, sem saber, era que eu te ajudasse a voltar logo para cá. Havia aprendido a lição.

- Que lição? Pelo que eu entendi até agora, nascer na Terra é que é o verdadeiro castigo, não é? A terra seria, digamos assim o "Inferno do Inferno", para onde vocês mandam os demônios que agem mal aqui...

- Quase exato. Não vemos como castigo, mas como um corretivo...

- Ok, mas... Que crime cometi aqui para merecer ser mandado de novo pra terra?

- O pior de todos, Asmodeo. Um que você sempre repete, e espero que tenha aprendido de uma vez.

- Que crime? E aquela história de "faz o que tu queres...", tudo balela? Aqui não é a anarquia perfeita? Que crime cometi?

- O pior de todos para um mundo baseado em anarquia, como é o Inferno: você tentou criar um Partido...



- Cântico 5 -


Aos poucos fui lembrando pedaços de minha última estadia no Inferno, antes deste último exílio na terra. Discussões intermináveis com Lúcifer, tentativa de convencer Manom a apoiar meu lado. Que lado? Que eu queria realmente?

- Lembro bem agora, Baal. Eu tentei sabotar a anarquia. Por que, não me lembro do motivo...

- Sem pressa, Asmodeo! Tudo ao seu tempo!

Aos poucos tudo foi voltando. De início, as lembranças recentes.

- Aquele túnel, com a luz no fundo... Era real? Ou imaginação?

- Parte uma coisa, parte outra. Você vê certas coisas, e tenta completar o que falta com coisas que você acredita que deveriam ser assim ou assado.

- Miguel e o querubim, por exemplo. Existiam?

- Existiam as duas figuras. Miguel é meu velho conhecido! Mas como você os vê... Aí é de cada um! Você os viu como anjos, um indiano veria Krishna, para um muçulmano seria duas de suas 72 virgens...

De repente me lembro das figuras medonhas, Miguel e sua língua de víbora, com o querubim de olhos de fogo do lado. Descrevo a Baal.

- Por um instante, cegos pela raiva de o perderem mais uma vez, eles se mostraram da forma como são. Ou melhor, como você os imaginava antes de ser exilado de novo na terra. Com que rosto você acha que um ateu convicto pintaria anjos logo à sua frente? Como crianças fofas de carinhas rosadas?

- Era você me puxando para baixo, não é?

- Tínhamos um trato desde o começo. Você não se lembra, mas havíamos acertado isto desde sempre: "se ficar evidente que estou sendo seduzido a viver naquele círculo de servidão eterna, eu te autorizo a me puxar imediatamente com toda a força que você for capaz!!" Lembra disso?

Sim, começou a me surgir uma vaga lembrança de tal conversa pouco antes de minha última encarnação no mundo físico! E durante o pacto... lembro bem da entidade ter mencionado esta promessa, embora na ocasião minhas memórias estivessem turvas!

- Tudo isto é muito novo para mim, Baal. Lembro muito bem agora! Independente da fé, o consenso comum era que todos queriam merecer um tipo ou outro de "paraíso", escapando da condenação eterna... Sempre foi tão claro!!

- Preciso te confessar uma coisa: é inquestionável que lá no paraíso eles possuem uma equipe de publicidade invejável!! E de certa forma, quem acaba indo para lá, realmente merece ir para lá.

- Como assim?

- Pense bem, Asmodeo: vivemos aqui em anarquia completa, liberdade total, cada um tentando ser feliz da maneira que acredita ser a correta. Ninguém brigando por território, comida... aliás, percebeu que você não sente mais fome? Vez ou outra surge alguém questionando isto, dizendo que precisa haver uma ordem, que liberdade total não é algo tão bom assim... Que fazemos? Mandamos o sujeito para a terra, num lugar de recursos limitados, em que ele precise mesmo exercer esta necessidade de ordem, este racionamento de liberdade. Felizmente muitos entendem o recado, percebem o quanto é absurdo esta tentativa de cercear a liberdade e criar camadas de poder, reis, sub-reis, nobres, subalternos, esta porcaria toda! Lembram-se da liberdade total que tinham aqui, e voltam melhores! Esta idéia de tentar criar relações de poder some de suas cabeças! Acredito que eram boas suas intenções todas aquelas vezes em que tentou criar seu partido, mas te respondo assim: de boas intenções, o Inferno LITERALMENTE está cheio!

- Mas alguns cruzam o fim do túnel? Tem almas que entram pelos portões do paraíso?

- Para alguns o corretivo não funciona. Ficam ainda mais fanáticas pela obsessa pela ordem! Precisam ter prefeitos, presidentes, Reis! E precisam ter algo acima desses reis! Deus? Para alguns, ao invés desta temporada na terra servir de corretivo, ela reforça ainda mais sua convicção de que a ordem é necessária! Sim, eles acabam mesmo seduzidos pelo Paraíso, eternamente louvando a figura de seu Deus. Se são felizes? Não temos como saber, mas esperamos que sim. Não somos ruins, compreende? Isto faz parte de uma publicidade muito bem elaborada por eles, para atrair almas a seu círculo e tentar nos tornar horríveis, feios...

Coloco as mãos sobre meus chifres. Ao mesmo tempo, respiro aquele impregnante ár de enxofre.

- Isto não me parece bonito...

- Seus chifres? Está de brincadeira? Qualquer um venderia sua alma aos arcanjos (hehe, uma expressãozinha aqui do inferno!) para ter um par de chifres igual ao seu!

- Mas parece um tanto...

- Demoníaco? E o que você pensa que é?

- E todo esse cheiro de enxofre..

- Te incomoda?

- Realmente... não!

- E nem é enxofre físico, mas enxofre etéreo. Melhor oxidante que o oxigênio! Com certeza agora você fugiria do cheiro metálico nauseante do oxigênio etéreo...

- Mas é tudo tão estranho...

- Você vai acabar se desligando da Terra. Tudo então vai voltar a te parecer como sempre foi por éons...



- Cântico 6 -

"Partido Anti-Libertário - pela liberdade de se poder escolher não ter liberdade". O slogam aparecia agora claro em suas lembranças. O que o teria levado a inventar isso? Tédio? Talvez... Num mundo em que você poderia fazer tudo o que quisesse? Durante toda a eternidade? Isto era tempo demais! Por mais absurdo que fosse, todo mundo acabava inventando um motivo, uma afronta ao sistema anárquico "acéfalo", para merecer passar umas temporadas na terra. Estava agora muito claro isto tudo! Comuniquei a Baal minha conclusão! Via que lágrimas de satisfação escorriam pelos seus olhos...

- Então você finalmente entendeu, querido amigo!! Depois de SÉCULOS!

Era esta a real finalidade da terra! A eternidade era tempo demais! Os cidadão do Inferno acabavam se entediando de fazer exatamente qualquer coisa que passasse pelas suas cabeças, e precisavam de férias. Um período de privações num mundo físico, onde precisassem lutar por recursos, presenciar briga por poder e território, com uns mandando e outros obedecendo... Era disso que precisavam para renovar suas mentes! Verificar como as coisas poderiam ser bem piores do que eram no Inferno, e assim refeitos, desejarem voltar ao seu Lar com energia renovada. Alguns casos eram irrecuperáveis. Seduzidos pela idéia de ordem e respeito à hierarquia, acabavam levados aos vários Paraísos, de diversos sabores e cores, com o desejo de obedecer e seguir regras eternamente. Talvez estivessem felizes assim. Como sabê-lo?

Eu estava decidido: sempre inventaria coisas novas para não me entediar! Esta minha última estadia na terra, estava certo, seria mesmo a última! Dei mais uma olhada em Lilith, à minha frente. Velhos amigos? Não, apenas conhecidos. Mas agora, ou eu estou enganado, ou ela havia me chamado? Já devem ter se passado uns duzentos anos desde que nos conhecemos... talvez a camaleoa esteja novamente passando por suas mutações eternas. Eu, ainda um pouco preso a essas tentações que aprendi na terra, não vou desperdiçar a chance: vou arriscar!


* FIM *