- Cântico I -
Nunca esperei encontrar nada após a morte. Na verdade nunca fui muito religioso enquanto vivo, de forma que quando comecei a perceber aquele túnel se formando à minha volta, com o distante ponto de luz branca no seu final, ainda tentei racionalizar o fato. Óbvio que ainda havia resquícios de vida em meu cérebro, e aquilo tudo não passava dos efeitos de falta de oxigenação de um corpo moribundo, próximo de se desligar completamente. Mas a sensação era real demais! Comecei a duvidar sinceramente deste meu ceticismo!
Olhei para baixo. Era eu mesmo lá? Cercado de médicos, numa mesa de operações? "Oras bolas, deixe de besteira! Devo ter ouvido tantas vezes esta velha ladainha de espírito observando seu próprio corpo que estou sonhando com ela. Relaxa, daqui a pouco vai acontecer o óbvio, aquilo em que você sempre acreditou: você morreu, e vai deixar de existir! Nada mais do que isso! Por enquanto, trate de curtir esta viagem proporcionada pela desoxigenação do cérebro, primeira e última que você vai presenciar!"
Acreditem! Eu realmente TENTEI acreditar nisto com todas as forças que ainda restavam em meu corpo moribundo! Mas a sensação de estar deslizando por um longo túnel começou a demorar muito mais tempo do que eu esperava para desaparecer. Espirais doidas fechavam tudo o que podia ver à minha volta, e a luz branca no fim do túnel crescia mais e mais com o passar do tempo. Haveria então algum fundamento naquilo que sempre desprezei em vida como simples fanatismo? Haveria em mim alguma parte eterna, que desconhecia? Alguma alma?
- Nós o perdemos. Hora do óbito, 20 horas e 17 minutos...
Meu lado racional volta a funcionar: se eu ouvi isto, de alguma forma meu aparelho auditivo ainda funciona. Morri? E ainda ouço estímulos do meu mundo? Que porcaria é essa?
- Solteiro. Nenhum familiar esperando, nem amigos... Melhor assim, não precisamos comunicar isto a ninguém por enquanto. Mas Carlos, você sabe que o erro foi seu, não é? Não percebeu que a pressão estava caindo? Tudo bem, que isso fique entre a gente. Mas que não se repita! De qualquer forma, no estado em que ele estava, se não fosse isso certamente seria por asfixia.
Nenhum amigo esperando? Caramba! Quanta consideração, hein!!!
- Desculpa Carlos! Olhando a coisa por outro ângulo, talvez você até tenha feito bem ao paciente. Abreviou uma morte inevitável que seria bem mais sofrida de outra forma...
Aquilo era real! Não poderia estar imaginando esta trama com tantos detalhes! Nunca fui tão imaginativo a este ponto...
Assim divagava, e me sentia aproximar cada vez mais rápido da luz branca no final daquele túnel, quando percebo a presença inquestionável de uma força maligna! Ela me puxava, sem dúvida alguma! Impedia que eu chegasse àquele ponto de luz! Deus, que situação absurda era esta pela qual eu estava passando? DEUS? Eu disse DEUS? Ateu, sempre tentando provar sua não-existência, me surpreendi pensando nEle nesta situação tão inusitada. Eu já não deveria ter morrido, deixado de existir e pensar a muito tempo? O que me fazia sentir aquele túnel à minha volta, com a luz ao final e uma força das trevas tentando me segurar, me levar para baixo? Era uma situação inesperada, e reagi de forma também inesperada: rezei! Se eu vivi no erro minha vida inteira, não poderia desprezar minha última chance de salvação! "Deus, perdoe-me ter duvidado de você minha vida toda! Mas te suplico agora: se possível, livre-me desta força maligna que tenta me puxar para baixo! Por favor, Deus, Buda, Krishna, Alá!!!!". Desesperado, nem sabia mais a quem dirigir meu pedido! Mas fui atendido! Duas figuras surgiram daquele distante ponto de luz. Reconheci a maior: o próprio arcanjo Miguel, acompanhado de um querubim. Pegou em minha mão, e disse:
- Você precisa desejar estar aqui! Você deseja?
- Sim, meu arcanjo! Eu desejo!
- Passar o resto de sua eternidade sob a proteção da Santíssima Trindade, Senhor dos Céus e da Terra?
- Sim, isto é tudo que eu...
Antes de terminar a frase, senti um tentáculo gosmento me puxando para trás, agarrado com firmeza pelas pernas. A face celestial do arcanjo Miguel se desfigurou neste mesmo instante, uma língua de víbora balançava entre dentes afiados de seu rosto antes angélico, esbravejando:
- Solta, demônio!!! Este aqui é nosso!!!
Igualmente medonho, chamas de ódio saíam dos olhos do pequeno querubim!
- Deixe aqui, Diabo!! Nós queremos este!!
Inútil! Arcanjo e querubim tentaram me segurar, mas a força maligna me puxou com toda sua força para baixo, e nada mais me lembro até o momento em que acordei na borda daquele vulcão...
- Cântico 2 -
- Desta vez quase que te levam de uma vez!! Se não te seguro... Você fica me devendo esta.
Olho em volta. Onde estou? E que figura obscura era aquela, dois chifres na testa e asas de morcego nas costas, que dirigia a mim suas palavras?
- Por pouco e você estaria agora no Paraíso, condenado a passar o resto de sua eternidade rendendo cânticos e homenagens ao Deus Santíssimo e toda sua hierarquia de anjos e arcanjos. Nem precisa me agradecer, saberei te cobrar o favor na hora certa.
Acordei atordoado. Tinha medo de perguntar, mas o fiz assim mesmo.
- Que lugar é este? Onde estou?
- Bom, muitos costumam chamar isto aqui de Inferno. Gosto do nome, acho bem sonoro...
Não podia acreditar naquilo! Então existia mesmo uma alma imortal? E eu, cabeça dura, desprezei todas as chances e acabei condenado à danação eterna? Isto não era justo... Como é que eu poderia saber que estava errado? Precisava de provas!
- Ai ai ai... como sou um infeliz... Você provavelmente é o carrasco que vai me fazer sofrer torturas eternas, não é?
- Do que você está falando, Asmodeo? Ainda não se lembrou de mim?
- De você? Quem é você?
- Baal! Esqueceu seu velho amigo de éons?
Baal... O nome não me era estranho! De fato! Antes de me agarrar ao ateísmo, eu havia estudado ocultismo a fundo! Lembro-me agora muito bem: o pacto demoníaco, a entidade manifestando seu nome... sim, era Baal, Balial, coisa parecida. Depois de me tornar ateu, passei a considerar toda aquela besteira de pacto como conseqüência dos chás de cogumelo e outras poções estranhas que tomei no ritual, mas agora... Parece que algo realmente havia acontecido!
- Você não cumpriu sua parte do trato! Dinheiro, fama, mulheres... Você não me deu nada disso!
- Ah, eu te prometeria qualquer coisa para te tirar daquele lugar! Você não merecia continuar ali... Além disso, você sempre foi capaz de conseguir tudo isto, sem precisar de pacto nenhum. No fundo no fundo, você não queria! O que queria era voltar para cá, mas não sabia disso.
- Voltar?
- Você ainda não lembra disso tudo aqui, não é?
Realmente, nada daquilo fazia sentido: o vulcão de um lado, abismo de outro. Que estava acontecendo?
- Vem comigo, vou te mostrar.
Abre suas asas negras e me pede para acompanhá-lo. Caminho até a borda do vulcão, observando o abismo negro lá embaixo.
- Você realmente não pretende descer a pé, não é?
- Como?
- Suas asas, Asmodeo! Em suas costas!
Tomo consciência de possuir formidáveis asas de morcego, de envergadura invejável.
- E eu devo pular?
- Ué, esqueceu como voar? Ninguém esquece, é igual andar de bicicleta.
Estico minhas asas e começo a planar para longe do vulcão, contemplando todo aquele estranho mundo cheirando a enxofre...
- Cântico 3 -
Uma cidade, ou algo que vagamente lembrava uma cidade, começou a aparecer abaixo de nós.
- Ah... a boa e velha cidade de Dite!!
Legiões de demônios se esparramavam pelas vielas tortuosas. Estremeço ao ver que Baal começava a descer pedindo que eu o acompanhasse.
- Não vem? Vai perder o show?
- Show? Que show?
- Sedit e sua banda de heavy metal!
- Ah! sempre achei que isto tinha nascido aqui mesmo...
Sedit começou seu solo num instrumento com formato de um longo unicórnio de cordas metálicas esticadas até uma base de crânio de bode. Baterista e vocalista estavam a postos, prontos para entrar no momento correto da música. Reconhecendo os primeiros acordes tão bem interpretados, não consigo deixar de comentar:
- Mas este não é o...
- Jimmi Hendrix? Sim, o próprio, mas... - Baal me chama reservadamente para o canto: - não o chame por este nome aqui, ok? Aqui ele prefere ser chamado pelo seu nome infernal. Publicidade, entende? Poucos aqui sabem quem é Jimmi Hendrix, mas "Sedit Chords and Band" já é um nome reconhecido a milênios!
- E o baterista?
- Beherit, mas lá na Terra era conhecido por John Lennon.
- Lennon tocando bateria? Nunca poderia imaginar isto...
- Nem ele! Descobriu isto só na última vez que retornou.
Retorno? Show de rock no Inferno? Vendo toda aquela legião de demônios em volta, animados e dançando, percebi que muita coisa ainda precisava ser esclarecida. Mas acho melhor ser paciente, não seria capaz de assimilar tantas supresas tão rápido. O vocalista viajava dos graves retumbantes ao mais profundo agudo com facilidade impressionante! A voz não me era de todo estranha:
- E quem é este?
- Elvis, o Rei do Rock!
- Numa banda de heavy metal? Que surpresa. E o nome infernal dele?
- É Elvis mesmo! Ele é um dos poucos que tiveram a sorte de receber na Terra o seu próprio nome infernal. Questão de probabilidade, entende? Não é muito comum na terra os pais batizarem os filhos com nomes de demônios. Um preconceito lamentável da parte dos humanos...
As cenas que vi eram indescritíveis. Desorganização completa, alguns demônios sacudindo as cabeças, vários copulando, demônios com diabas, diabas com diabas, diabos com diabos... Alguns agredindo, outros sendo agredidos, mas uma coisa era evidente: todos felizes! Nenhuma sombra de sofrimento transparecia em lugar algum, mesmo os que eram agredidos as recebiam com satisfação evidente no olhar.
- Mas que bagunça, meu Deus... - me calo imediatamente, temendo ter proferido alguma "blasfêmia" naquele lugar de perdição. - Perdão, Baal! Acho que não deveria dizer esta palavra aqui, não é?
- Que palavra? Deus? Oras, pode pronunciá-la no momento que você quiser! Nenhuma lembrança ainda, Asmodeo? Ainda não conseguiu entender qual é a lei aqui?
Realmente não. Nada ainda parecia fazer sentido.
- A lei é não ter lei! "Faz o que tu queres, que há de ser tudo da Lei!"
- Anarquia?
- A mais total e completa! A única que realmente funciona.
- Mas, e Satanás? Não é esse o nome do chefe disto tudo aqui?
- Satã? Caramba, você ainda não se desligou completamente da vida terrena, não é Asmodeo? Ele é nosso fundador, todos temos um carinho especial por ele, mas... definitivamente, não manda em coisa nenhuma. Nem deseja isto. Quer simplesmente viver como qualquer um aqui: fazendo o que lhe der na telha!
A visão de demônios batendo e agredindo outros com pauladas ainda me incomodava.
- E aqueles que vi apanhando? Estão sendo castigados?
- Você viu expressão de sofrimento neles?
- Não. Vendo bem... realmente parecem felizes!
- E estão, te garanto! Totalmente satisfeitos em encontrar companheiros insanamente sádicos para lhes infringir os "castigos" tão desejados. Ninguém aqui faz nada que não tenha vontade.
- E todos aqueles diabos e diabas transando... Nunca imaginei que existiam demônios machos e fêmeas.
- Não existe mesmo. Provavelmente chegaram recentemente da terra, ainda estão meio presos aos desejos que sentiam lá. Nenhum problema, sempre vão encontrar parceiros e parceiras aqui na mesma situação. Há alguns séculos atrás eu próprio também tinha tal compulsão, e nunca fui censurado por manifestá-la sempre que sentia vontade. Mas a maioria está aqui no inferno há muito tempo mesmo, entende? Uma hora ou outra todos nós acabamos nos desinteressando por sexo, e nos tornamos demônios assexuados...
- Vi uma diaba naquele canto que, realmente...
- Lilith?? Ah, vejo que você se excitou, não é mesmo? Era de se esperar, você acabou de chegar da terra. O desejo sexual ainda é bem forte. Posso te apresentar algumas diabas daqui bem interessante, muitas delas já foram minhas amantes quando ainda me interessava por isto. Mas Lilith? Posso te apresentar a ela, mas temo que você vá se decepcionar...
- Ela já deixou de se interessar? É uma diaba assexuada?
- Assexuada? Rapaz, você não olhou bem para as curvas daquela diaba? Acredito que ela é uma das únicas que provavelmente nunca vai perder o interesse por sexo. Só que de uns séculos para cá ela está mais interessada mesmo é em outras diabas... Por enquanto acredito que você não seria nem um pouco interessante para ela.
- Por enquanto? Quer dizer que ela pode mudar?
- Lilith é um camaleão sexual! Sempre varia sua preferência, acredito que é exatamente por este motivo que ela nunca perdeu o interesse. Posso te apresentar, para que vocês se tornem amigos. Quem sabe se daqui a um ou dois séculos ela não passe a gostar de demônios machos novamente...
Baal levanta vôo ao término do show, pedindo que eu o siga. Muito mais altos desta vez, vejo claramente o caudaloso rio de sangue Estige, levando a uma cidade ainda maior que Dite.
- Cântico 4 -
Embora bem maior, a cidade que se descortinava abaixo era mais pacata. Poucos demônios caminhavam entre suas ruas espaçosas, bem diferente do caos da cidade de Dite, sede daquele show infernal.
- Você deve estar cheio de perguntas ainda, Asmodeo. Vamos descer aqui e conversar com mais calma.
Ao nos sentarmos no banco da praça central, atravessada por um riacho de lava vulcânica, Baal começou a falar:
- A primeira pergunta que deve martelar em sua cabeça é: por que eu estou no inferno? Estou pagando pelos meus pecados?
- Mais que isso: estou condenado a ficar aqui por toda a eternidade?
Baal pensou um pouco, e respondeu.
- Sim, se você se comportar bem é isso que vai acontecer. Mas é difícil, vez ou outra alguém desliza e é enviado a passar umas temporadas lá na terra...
- Não estou aqui sofrendo um castigo? Por ter recusado a chance de Salvação?
- De forma alguma! Na verdade, você simplesmente voltou para cá, como acontece com muitos depois que passam uma temporada lá no seu antigo planeta físico!
- Eu já estive aqui ANTES? Quer dizer, antes de ter nascido?
- Antes de ter nascido na última vez? Sim, mais umas quatro ou cinco vezes. Você sempre acaba caindo na mesma besteira... Eu mesmo só fui para lá umas duas vezes, e tenho certeza absoluta de não ter a mínima vontade de aparecer por aqueles cantos de novo. Na primeira vez me expulsaram a pedradas, e na segunda virei churrasco numa fogueira da Inquisição... Não, tenho certeza que não pretendo voltar tão cedo naquele inferno azul...
Em minha mente reinava absoluto caos. Primeiro, lembrei agora claramente, havia procurado no ocultismo maneiras de conseguir vantagens sobreumanas. Sim, era mesmo Baal que me apareceu naquele pacto demoníaco de algumas décadas atrás. Depois, desiludido, defendi o ateísmo com toda a força que pude. E agora, esta situação absurda aqui, eu um demônio de chifres e asas de morcego conversando com um velho amigo do Inferno.
- Então, Asmodeo: nem mesmo todo o peso da matéria daquele mundo físico apagou completamente as lembranças do seu amigo etéreo aqui quando você passava aquelas "férias corretivas forçadas" na terra. Me fez prometer coisas (que, diga-se de passagem, sempre foi capaz de conseguir por si próprio), mas o que realmente queria, sem saber, era que eu te ajudasse a voltar logo para cá. Havia aprendido a lição.
- Que lição? Pelo que eu entendi até agora, nascer na Terra é que é o verdadeiro castigo, não é? A terra seria, digamos assim o "Inferno do Inferno", para onde vocês mandam os demônios que agem mal aqui...
- Quase exato. Não vemos como castigo, mas como um corretivo...
- Ok, mas... Que crime cometi aqui para merecer ser mandado de novo pra terra?
- O pior de todos, Asmodeo. Um que você sempre repete, e espero que tenha aprendido de uma vez.
- Que crime? E aquela história de "faz o que tu queres...", tudo balela? Aqui não é a anarquia perfeita? Que crime cometi?
- O pior de todos para um mundo baseado em anarquia, como é o Inferno: você tentou criar um Partido...
- Cântico 5 -
Aos poucos fui lembrando pedaços de minha última estadia no Inferno, antes deste último exílio na terra. Discussões intermináveis com Lúcifer, tentativa de convencer Manom a apoiar meu lado. Que lado? Que eu queria realmente?
- Lembro bem agora, Baal. Eu tentei sabotar a anarquia. Por que, não me lembro do motivo...
- Sem pressa, Asmodeo! Tudo ao seu tempo!
Aos poucos tudo foi voltando. De início, as lembranças recentes.
- Aquele túnel, com a luz no fundo... Era real? Ou imaginação?
- Parte uma coisa, parte outra. Você vê certas coisas, e tenta completar o que falta com coisas que você acredita que deveriam ser assim ou assado.
- Miguel e o querubim, por exemplo. Existiam?
- Existiam as duas figuras. Miguel é meu velho conhecido! Mas como você os vê... Aí é de cada um! Você os viu como anjos, um indiano veria Krishna, para um muçulmano seria duas de suas 72 virgens...
De repente me lembro das figuras medonhas, Miguel e sua língua de víbora, com o querubim de olhos de fogo do lado. Descrevo a Baal.
- Por um instante, cegos pela raiva de o perderem mais uma vez, eles se mostraram da forma como são. Ou melhor, como você os imaginava antes de ser exilado de novo na terra. Com que rosto você acha que um ateu convicto pintaria anjos logo à sua frente? Como crianças fofas de carinhas rosadas?
- Era você me puxando para baixo, não é?
- Tínhamos um trato desde o começo. Você não se lembra, mas havíamos acertado isto desde sempre: "se ficar evidente que estou sendo seduzido a viver naquele círculo de servidão eterna, eu te autorizo a me puxar imediatamente com toda a força que você for capaz!!" Lembra disso?
Sim, começou a me surgir uma vaga lembrança de tal conversa pouco antes de minha última encarnação no mundo físico! E durante o pacto... lembro bem da entidade ter mencionado esta promessa, embora na ocasião minhas memórias estivessem turvas!
- Tudo isto é muito novo para mim, Baal. Lembro muito bem agora! Independente da fé, o consenso comum era que todos queriam merecer um tipo ou outro de "paraíso", escapando da condenação eterna... Sempre foi tão claro!!
- Preciso te confessar uma coisa: é inquestionável que lá no paraíso eles possuem uma equipe de publicidade invejável!! E de certa forma, quem acaba indo para lá, realmente merece ir para lá.
- Como assim?
- Pense bem, Asmodeo: vivemos aqui em anarquia completa, liberdade total, cada um tentando ser feliz da maneira que acredita ser a correta. Ninguém brigando por território, comida... aliás, percebeu que você não sente mais fome? Vez ou outra surge alguém questionando isto, dizendo que precisa haver uma ordem, que liberdade total não é algo tão bom assim... Que fazemos? Mandamos o sujeito para a terra, num lugar de recursos limitados, em que ele precise mesmo exercer esta necessidade de ordem, este racionamento de liberdade. Felizmente muitos entendem o recado, percebem o quanto é absurdo esta tentativa de cercear a liberdade e criar camadas de poder, reis, sub-reis, nobres, subalternos, esta porcaria toda! Lembram-se da liberdade total que tinham aqui, e voltam melhores! Esta idéia de tentar criar relações de poder some de suas cabeças! Acredito que eram boas suas intenções todas aquelas vezes em que tentou criar seu partido, mas te respondo assim: de boas intenções, o Inferno LITERALMENTE está cheio!
- Mas alguns cruzam o fim do túnel? Tem almas que entram pelos portões do paraíso?
- Para alguns o corretivo não funciona. Ficam ainda mais fanáticas pela obsessa pela ordem! Precisam ter prefeitos, presidentes, Reis! E precisam ter algo acima desses reis! Deus? Para alguns, ao invés desta temporada na terra servir de corretivo, ela reforça ainda mais sua convicção de que a ordem é necessária! Sim, eles acabam mesmo seduzidos pelo Paraíso, eternamente louvando a figura de seu Deus. Se são felizes? Não temos como saber, mas esperamos que sim. Não somos ruins, compreende? Isto faz parte de uma publicidade muito bem elaborada por eles, para atrair almas a seu círculo e tentar nos tornar horríveis, feios...
Coloco as mãos sobre meus chifres. Ao mesmo tempo, respiro aquele impregnante ár de enxofre.
- Isto não me parece bonito...
- Seus chifres? Está de brincadeira? Qualquer um venderia sua alma aos arcanjos (hehe, uma expressãozinha aqui do inferno!) para ter um par de chifres igual ao seu!
- Mas parece um tanto...
- Demoníaco? E o que você pensa que é?
- E todo esse cheiro de enxofre..
- Te incomoda?
- Realmente... não!
- E nem é enxofre físico, mas enxofre etéreo. Melhor oxidante que o oxigênio! Com certeza agora você fugiria do cheiro metálico nauseante do oxigênio etéreo...
- Mas é tudo tão estranho...
- Você vai acabar se desligando da Terra. Tudo então vai voltar a te parecer como sempre foi por éons...
- Cântico 6 -
"Partido Anti-Libertário - pela liberdade de se poder escolher não ter liberdade". O slogam aparecia agora claro em suas lembranças. O que o teria levado a inventar isso? Tédio? Talvez... Num mundo em que você poderia fazer tudo o que quisesse? Durante toda a eternidade? Isto era tempo demais! Por mais absurdo que fosse, todo mundo acabava inventando um motivo, uma afronta ao sistema anárquico "acéfalo", para merecer passar umas temporadas na terra. Estava agora muito claro isto tudo! Comuniquei a Baal minha conclusão! Via que lágrimas de satisfação escorriam pelos seus olhos...
- Então você finalmente entendeu, querido amigo!! Depois de SÉCULOS!
Era esta a real finalidade da terra! A eternidade era tempo demais! Os cidadão do Inferno acabavam se entediando de fazer exatamente qualquer coisa que passasse pelas suas cabeças, e precisavam de férias. Um período de privações num mundo físico, onde precisassem lutar por recursos, presenciar briga por poder e território, com uns mandando e outros obedecendo... Era disso que precisavam para renovar suas mentes! Verificar como as coisas poderiam ser bem piores do que eram no Inferno, e assim refeitos, desejarem voltar ao seu Lar com energia renovada. Alguns casos eram irrecuperáveis. Seduzidos pela idéia de ordem e respeito à hierarquia, acabavam levados aos vários Paraísos, de diversos sabores e cores, com o desejo de obedecer e seguir regras eternamente. Talvez estivessem felizes assim. Como sabê-lo?
Eu estava decidido: sempre inventaria coisas novas para não me entediar! Esta minha última estadia na terra, estava certo, seria mesmo a última! Dei mais uma olhada em Lilith, à minha frente. Velhos amigos? Não, apenas conhecidos. Mas agora, ou eu estou enganado, ou ela havia me chamado? Já devem ter se passado uns duzentos anos desde que nos conhecemos... talvez a camaleoa esteja novamente passando por suas mutações eternas. Eu, ainda um pouco preso a essas tentações que aprendi na terra, não vou desperdiçar a chance: vou arriscar!
* FIM *
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