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11/10/2011

Transmutação


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Obs.: este é um texto antigo, que escrevi por volta
do ano 2000. É a continuação do conto "Transmigração",
que já postei aqui também.
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“Prili Hin-Ashcroni -Qvain!- eqsh BlijEngh...”

“Eqsh (Qvain) hainiok! Tuivd-Lantche? Nii?”

Com suas roupas isolantes, os Preparadores davam as boas-vindas ao Qvain recém chegado do caos. No momento sua maior preocupação era expulsar aquele líquido salino que lhe afogava a respiração. Atentos, os dois Preparadores o ajudaram a se livrar da sensação desagradável.

Recuperado, pede um espelho para ver sua aparência mais jovem. A primeira diferença notada é que seu rosto não mais tem a saudável palidez antiga, mas se apresenta levemente rosado. Os Preparadores explicam que no novo organismo ainda corre o sangue vermelho ineficiente. De fato, a segunda diferença notada por Qvain foi seu ritmo repiratório acelerado: ele tinha necessidade de inspirar e expirar até dez vezes por minuto! A sala em que estava era pressurizada, e havia uma concentração elevada de oxigênio. Era por este motivo que os Preparadores estavam com roupas isolantes, pois esta maior pressão e concentração de 20% de oxigênio no ar poderia lhes causar efeitos indesejáveis. Mas em questão de dias tudo voltaria à normalidade, e o sangue natural de Qvain seria trocado por um líquido artificial muito mais eficiente.

Por dezenas de séculos os ashcroni precisaram conviver com um sistema circulatório e respiratório extremamente ineficientes, com um baixo aproveitamento de oxigênio. O sangue artificial era um líquido descolorido, com uma composição química que permitia um maior aproveitamento do oxigênio respirado. E também não precisava ser reciclado pelo organismo: a medula óssea perdia totalmente sua função. Sendo capaz de acumular eficientemente moléculas deste gás, permitia que se respirasse a pressões mais baixas e com um freqüência muito menor. Isto era muito importante num planeta em que a atmosfera perdia cada vez mais gases para o espaço. Nunca ficou claro o motivo do fenômeno.

Qvain não se lembra do processo de transferência. Simplesmente havia acordado no tanque de maturação, sem saber por quanto tempo esteve fora e muito menos dos fatos que aconteceram neste período. Provavelmente o organismo doador estava agora dissociado. Que sensações maravilhosas ele havia perdido do processo de transferência?

O importante agora era que ele havia retornado. Só o incomodava a imensa fome que agora sentia. Depois de eliminar o sal do corpo e se secar, Qvain aceitou agradecido a pasta de proteína e amido que os Preparadores ofereceram...

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Por três dias Qvain tratou de fortalecer seu novo organismo para suportar a transfusão. Proteínas e açúcares foram a base de sua alimentação, na tentativa de se recuperar do crescimento acelerado. Afinal, o clone havia envelhecido o equivalente a vinte anos em apenas um décimo deste tempo! As células precisavam se recuperar destas divisões celulares provocadas. Mas o fato de Qvain se sentir muito bem mostrava que o envelhecimento artificial havia sido bem sucedido, como já acontecia há dezenas de séculos. Que pensamentos se passavam na mente do clone antes da transferência? Nenhum, diziam os Preparadores: enquanto crescia, o sistema nervoso do organismo era mantido num estado inativo. No fundo isto nem importava muito, pois agora era de Qvain aquele corpo. Ele pensava naquele cérebro, suas memórias e habilidades é que estavam registradas nele... e o corpo agora respondia apenas aos comando dele. O que de fato havia sido transferido? Memórias? Informações? Ou de fato alguma essência que poderia ser chamada de alma? Bom, também nada disto importava agora. Qvain só pensava em retomar o quanto antes suas funções, se sentir novamente inserido entre os ashcroni.

Era dia de Qvain receber a Linfa, que era como denominavam o sangue novo. Costumava demorar um dia inteiro, pois simultaneamente o ar da sala precisava ser trocado. Passava-se lentamente daquela prejudicial atmosfera densa e com excesso de oxigênio para outra mais tênue, com a concentração ideal do gás. Isto precisava ocorrer no mesmo ritmo em que os dois tipos de sangue eram misturados, até que restasse apenas a Linfa no organismo. Uma substância que bloqueava a ação da medula óssea descartaria definitivamente o sangue colorido do corpo.

... ... ...

Era um pouco repugnante sentir aquelas agulhas sendo inseridas em várias partes importantes de seu corpo (braços, pernas, pescoço...), ainda mais quando se via um pouco do estranho líquido avermelhado brotando da pele... Aquele mesmo líquido colorido e espesso que em breve seria substituído por outro fracamente cinza-azulado, com praticamente todas as mesmas característica do primeiro exceto pela hemoglobina, esta enorme e ineficiente molécula ferrosa capaz de armazenar poucas moléculas do gás vital. A nova nanomáquina  armazenadora de oxigênio seria capaz de desempenhar a mesma função de uma maneira até vinte vezes mais eficiente!  

À medida em que se misturavam os sangues natural e artificial, Qvain sentia que o ar da câmara se tornava cada vez mais rarefeito. A doentia cor rosada de sua pele aos poucos cedia lugar à palidez característica dos ashcroni. Haviam nos sistemas solares das proximidades espécies hominídias douradas, escuras, cinzentas, levemente azuladas... mas nenhuma possuía esta saudável e bonita palidez dos ashcroni. Só a Linfa, este sangue artificial, lhes permitia tal característica.

A tranfusão prosseguia... Qvain sentia o líquido vermelho sendo expulso de seu organismo, substituído por outro que melhor respondia às necessidades do corpo. De certa forma, a transfusão era muito semelhante a uma transmutação: aos poucos, o líquido baseado em óxido de ferro era trocado por outro mais nobre, menos colorido. Ouro? Não, era muito superior ao ouro! Tratava-se de uma macromolécula projetada, uma nanomáquina capaz de armazenar, por até cinco minutos, centenas de moléculas de oxigênio. O gás CO2 residual do metabolismo prendia-se facilmente à superfície globular da macromolécula, sendo expelido pelo sistema respiratório à taxa máxima de três vezes por minuto.
Gradualmente o organismo de Qvain se refinava, passava a funcionar de uma forma mais precisa. A energia antiga que ele havia acumulado nos últimos dias o abandonava, sendo trocada por aquela energia nova, mais pura. Naquele planeta era fundamental que nada fosse desperdiçado, nem o oxigênio que se respira. O novo fluido permitia que isto fosse concretizado.

<< Há muito a se fazer, Qvain... >> dizia um dos Preparadores, o mesmo presente dias antes no processo de transferência. << Os Administradores pretendem discutir o problema daquelas novas espécies hominídias primitivas encontradas no planetóide das estrelas Bjar-Nok. >>

<< Eles já sabem que não concordo com a idéia de fornecer armas à espécie primitiva. >>

<< Bom, vamos primeiro concluir a transfusão. Ao que parece, eles descobriram que o caso da espécie dominante é mais grave do que previam! Mas por hora relaxe, não se preocupe muito com este problema... >>

Como não se preocupar, quando os Administradores pareciam concordar com a idéia de genocídio entre espécies tão semelhantes aos ashcroni? Fornecer tecnologia à espécie vermelha certamente acarretaria no massacre da espécie cinzenta, que embora pouco mais evoluída e já dominando o fogo, não seriam capazes de suportar os ataques da segunda espécie caso ela fosse ensinada a manipular explosivos! Sem dúvida atualmente a segunda espécie estava sendo exterminada pela primeira, ‘mas isto justificaria nossa intervenção?’ – pensou Qvain... Os ashcroni não precisaram passar pelo mesmo problema, a alguns milênios atrás. Nos sistemas solares conhecidos era muito raro que duas espécies hominídias diferentes iniciassem seu desenvolvimento tecnológico com menos de um milhão de anos de intervalo. O sistema Bjar-Nok era uma exceção, e talvez fosse melhor não interferir em seu desenvolvimento natural. ‘Mas não é assim que pensam os Administradores...’.

Tais preocupações não deviam no momento incomodar sua mente. Qvain fechou os seus (novos) olhos, atrás de suas (novas) pálpebras, e tentou apenas se concentrar na mágica transmutação do fluido que corria dentro de seu (novo) organismo.

Em questão de minutos, se esqueceu das inúmeras agulhas e... adormeceu...

...

Nas veias e artérias de Qvain não mais corria a hemoglobina, esta enorme macro-molécula capaz de carregar, cada uma, poucas outras moléculas de gás vital. Qvain havia negado o desperdício, e sentia que seu organismo era agora um pouco mais eficiente que antes...

* * *

LEGENDA:

“Blá-blá-blá” : trechos falados, na língua original
<< Blá-blá-blá >> : trechos falados e traduzidos
‘Blá-blá-blá’ : trechos pensados e traduzidos

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