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12/07/2011

...E ele construiu uma casa torta

**** (de Robert A. Heinlein) ****

Bom, acho que já estava na hora de eu ser menos egoista e começar a postar contos de outros autores também, não é?
É difícil selecionar que conto lido eu gostei mais, mas digamos que este é o meu preferido num tipo de ficção científica bem específica, que eu gostaria de batizar (se vocês me permitirem) de "ficção matemática". Trata-se da história de um arquiteto que resolveu projetar uma casa com uma geometria, digamos assim, pouco convencional... As consequências são bem interessantes, e acabamos até lendo uma pequena aula de geometria espacial nos divertindo, quase sem perceber.
Bom, devo confessar que este conto inspirou um pouco o conto "Visão Trinocular" com o qual abri este blog. Quem o leu deve ter percebido a influência que este aqui teve naquele. Divirtam-se ! ;-)

OBS.: a seguir, link para duas ilustrações que fiz para exemplificar o conto:

http://www.linux.ime.usp.br/~qvain/img/casa_palitos.gif
http://www.linux.ime.usp.br/~qvain/img/casa_tesseract.gif

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Os americanos são considerados loucos em qualquer parte do mundo.
Em geral, admitem que há uma boa base para esta acusação, mas apontam a Califórnia como o foco de infecção. Os californianos afirmam com seriedade que essa reputação vem, unicamente, dos atos praticados pelos habitantes do condado de Los Angeles. Os habitantes de Los Angeles, se pressionados, admitirão a acusação, mas explicarão imediatamente: "É Hollywood. Não é nossa culpa -- não procuramos isso; Hollywood simplesmente aconteceu."
Os habitantes de Hollywood não se importam; vangloriam-se disso. Se o leitor estiver interessado, eles o levarão de carro até Laurel Canyon, "... onde mantemos os casos violentos". Os habitantes do Canyon -- as mulheres de pernas bronzeadas, os homens de calção, constantemente ocupados em construir e reconstruir suas alegres casas, nunca terminadas -- olham com leve desprezo para as criaturas insípidas que moram em apartamentos, guardando zelosamente no coração o conhecimento secreto de que eles, e somente eles, sabem como viver.
Avenida Lookout Mountain, é o nome de uma garganta secundária que se eleva de Laurel Canyon. Os outros habitantes não gostam que isto seja mencionado -- afinal, tudo tem um limite.
Lá no alto de Lookout Mountain, no número 8775, do lado oposto do Hermit -- o Hermit original de Hollywood -- morava Quintus Teal, arquiteto graduado.
Até a arquitetura do sul da Califónia é diferente. Os cachorros-quentes são vendidos numa estrutura construída como um cãozinho, chamado "The Pup". As casquinhas de sorvete são vendidas em uma casquinha gigante feita de estuque, e anúncios luminosos proclamam "Adquira o Hábito da Tigela de Chili!", colocados nos telhados de prédios que, evidentemente, são tigelas de chili. A gasolina, o óleo e os mapas rodoviários grátis são distribuídos embaixo das asas de aviões de carga trimotores, enquanto que toaletes, rigorosamente fiscalizados e inspecionados de hora em hora para o seu conforto, estão localizados na cabina do avião. Estas coisas poderão surpreender ou divertir o turista, mas os habitantes do lugar, que caminham de cabeça descoberta sob o famoso sol californiano, ao meio-dia, acham isso a coisa mais natural do mundo.
Quintus Teal considerava tímidos, desajeitados e fracos os esforços dos seus colegas na arquitetura.
-- O que é uma casa? -- perguntou ao seu amigo Homer Bailey.
-- Bem... -- Bailey respondeu cautelosamente --, falando em termos gerais, sempre considerei uma casa como uma invenção para a gente se abrigar da chuva.
-- Nada disso! Você é tão ruim como os outros.
-- Eu não disse que a definição era completa...
-- Completa! Não chega nem perto. Desse ponto de vista seria a mesma coisa estar de cócoras nas cavernas. Mas não culpo você -- continuou Teal com magnanimidade. -- Você não é pior do que esses caras que a gente vê por aí, fazendo arquitetura. Mesmo os Modernos -- tudo o que eles fizeram foi abandonar a Escola Bolo-de-Noiva em favor da Escola Posto-de-Serviço; descartaram-se dos pericotes e jogaram um pouco de cromado, mas no fundo são tão conservadores como uma prefeitura do interior. Neutra! Schindler! O que é que esses caras têm? O que é que Frank Lloyd Wright tem que eu não tenho?
-- Contratos -- respondeu seu amigo, laconicamente.
-- Hem? O que você disse? -- Teal tropeçou nas palavras, hesitou, mas recuperou-se. -- Contratos. Correto. E por quê? Porque eu não penso numa casa como uma caverna atapetada; penso nela como uma máquina para se viver, um processo vital, uma coisa viva e dinâmica, que muda com o humor do seu ocupante -- não é um enorme esquife, morto, estático. Por que devemos nos sujeitar aos conceitos petrificados dos nossos antepassados? Qualquer tolo com os mais parcos conhecimentos de geometria descritiva pode desenhar uma casa com a maior facilidade. A geometria estática de Euclides é a única matemática? Devemos nós ignorar completamente a teoria Picard-Vessiot? E que me diz dos sistemas modulares? Isto sem falar nas ricas sugestões da estereoquímica. Não haverá lugar na arquitetura para a transformação, o homomorfologia, as estruturas acionais?
-- Macacos me mordam se eu sei -- respondeu Bailey. -- Por mim pode até estar falando sobre a quarta dimensão que não me diz nada.
-- E por que não? Por que deveríamos limitar-nos ao... Espere! -- Interrompeu-se e ficou olhando para longe. -- Homer, acho que você disse uma coisa certa aí E por que não? Pense na infinita riqueza de relacionamento e articulação nas quartas dimensões. Que casa, que casa... -- Ficou imóvel, seus pálidos olhos saltados piscavam pensativamente.
Bailey estendeu a mão e sacudiu-lhe o braço. -- Acorde. De que diabo você está falando, quartas dimensões? O tempo é a quarta dimensão; você não pode meter pregos nisso.
Teal sacudiu o braço, libertando-o. -- Certo. Certo. O tempo é a quarta dimensão, mas estou pensando na quarta dimensão espacial, como comprimento, altura e largura. Em economia de materiais e conveniência de disposições não há nada que se lhe compare. Isso sem falar da economia de terreno -- poderia colocar uma casa de oito cômodos no terreno agora ocupado por uma casa de um só Como um tesseract...
-- O que é um tesseract?
-- Você não foi a escola? O tesseract é um hipercubo, uma figura quadrada, com uma quarta dimensão, assim como um cubo tem três e um quadrado duas. -- Teal correu até a cozinha do seu apartamento e voltou com uma caixa de palitos que esvaziou sobre a mesa, entre os dois, varrendo com a mão, displicentemente, copos e uma garrafa de gin Holland, quase vazia. -- Vou precisar de um pouco de plasticina. Tinha um pouco aqui na semana passada. -- Remexeu numa das gavetas da mesa de trabalho, atopetada de coisas, que obstruía um canto da sala de jantar e voltou com um pouco de argila oleoso. -- Aqui está.
-- O que é que vai fazer?
-- Vou lhe mostrar. -- Teal, imediatamente, tirou pedacinhos de argila e fez bolinhas do tamanho de ervilhas. Espetou palitos em quatro delas e uniu-as, formando um quadrado. -- Olhe! Isto é um quadrado.
-- Isso é óbvio.
-- Outro igual a esse, mais quatro palitos, e temos um cubo. -- Os palitos estavam agora arrumados como a armação de uma caixa quadrada, um cubo, com as bolinhas de argila segurando os cantos. -- Agora fazemos outro cubo igual ao primeiro e ambos serão dois lados do tesseract.
Bailey começou a ajudar a fazer as bolinhas de massa para o segundo cubo, mas ficou fascinado pela textura sensual da argila dócil e começou a trabalhá-la, dando-le forma com os dedos.
-- Olhe -- disse, mostrando o seu trabalho, uma pequena figura --, Gypsy Rose Lee!
-- Parece mais com Gargântua; ela devia processá-lo. Agora preste atenção. Você abre um canto do primeiro cubo, prende o segundo cubo a um canto e depois fecha esse canto. Então, tome mais oito palitos e ligue o fundo do primeiro cubo ao fundo do segundo, inclinado, e a parte superior do primeiro à parte superior do segundo, da mesma maneira. -- Teal fez isto rapidamente, enquanto falava.
-- E o que é que isso deve ser? -- perguntou Bailey, desconfiado.
-- Isto é um tesseract, oito cubos formando os lados de um hipercubo em quatro dimensões.
-- Para mim, isso parece mais uma cama-de-gato. De qualquer forma, você tem aí somente dois cubos. Onde estão os outros seis?
-- Use sua imaginação, homem. Considere a parte de cima do primeiro cubo em relação à parte superior do segundo cubo; esse é o cubo número três. Então os dois cubos de baixo, depois a parte da frente de cada cubo, as partes de trás o lado direito, o lado esquerdo -- oito cubos -- disse, apontando para eles.
-- Ééé... eu os vejo. Mas, ainda assim, não são cubos, são -- como se diz -- prismas. Não são quadrados, eles se inclinam.
-- Isso é o modo como você olha para eles, em perspectiva. Se você desenhasse um cubo num pedaço de papel, os lados dos quadrados seriam inclinados, não seriam? Isso é perspectiva. Quando você olha para uma figura quadridimensional em três dimensões, naturalmente que parece torta. Mas são cubos assim mesmo.
-- Talvez sejam para você, irmão, mas, para mim, eles ainda parecem tortos.
Teal não fez caso das objeções e continuou: -- Agora considere isto como sendo a estrutura de uma casa de oito cômodos; há uma peça no andar térreo -- isso são as áreas de serviço e a garagem. Há seis peças saindo dela no andar seguinte: lining, sala de jantar, banheiro, quartos de dormir, etc. E lá no topo, completamente integrado, com janelas em todos os quatro lados, estará seu gabinete de trabalho. Olhe aí! Que tal, gosta?
-- Parece-me que você tem a banheira pendurada do forro do lining. Essas salas estão entrelaçadas como se fossem um polvo.
-- Só em perspectiva, só em perspectiva. Olhe, vou fazer de outro modo, para que você possa vê-la. -- Desta vez Teal fez um cubo de palitos, depois fez um segundo cubo com metades de palitos e colocou-o bem no centro do primeiro, prendendo os cantos do cubo pequeno aos cantos do cubo grande com pedaços pequenos de palitos. -- Agora -- o cubo grande é o seu andar térreo, o cubo pequeno aí dentro é o gabinete de trabalho no andar superior. Os seis cubos que os ligam são os outros quartos. Está vendo?
Bailey estudou a figura e abanou a cabeça. -- Ainda vejo apenas dois cubos: um grande e um pequeno! Essas outras seis coisas, desta vez, parecem pirâmides em vez de prismas, mas, ainda não são cubos.
Certo, certo, você os está vendo numa perspectiva diferente. Não pode ver isso?
-- Bem, talvez. Mas, esse quarto aí dentro. Está completamente rodeado dessas geringonças. Pensei que você tinha dito que tem janelas nos quatro lados.
-- E tem -- apenas, parece que está rodeado. Isso é o detalhe principal de uma casa tesseract: vista externa em todos os aposentos e, no entanto, cada parede serve para dois quartos e uma casa de oito cômodos requer apenas os alicerces para um só quarto. é revolucionário.
-- Revolucionário é pouco. Você esté louco, rapaz; você não pode construir uma casa assim. Esse quarto interno está do lado de dentro e ali é que fica.
Teal olhou para o amigo com exasperação controlada. -- São caras como você que mantêm a arquitetura na sua infância. Quantos lados quadrados tem um cubo?
-- Seis.
-- E quantos deles estão do lado de dentro?
-- Ora, nenhum. Todos estão do lado de fora.
-- Muito bem. Agora escute -- um tesseract tem oito lados cúbicos, todos no lado de fora. Agora observe. Vou abrir este tesseract como se abre uma caixa de papelão cúbica até deixá-la completamente plana. Desse modo você poderá ver todos os oito cubos. Trabalhando com muita rapidez ele construiu quatro cubos, empilhando-os um em cima do outro, fazendo uma torre cambaleante. Então construiu mais quatro cubos saindo das faces expostas do segundo cubo da torre. A estrutura oscilou um pouco nas juntas, não muito firmes, feitas das bolinhas de argila, mas ficou de pé, oito cubos numa cruz invertida, uma cruz dupla, pois os quatro cubos adicionais se projetavam em quatro direções.
-- Você pode ver agora? Descansa no aposento do andar térreo, os outros seis cubos são os outros quartos e ali está seu gabinete de trabalho, bem no topo.
Baileu estudou aquilo com mais aprovação do que tivera para as outras figuras. -- Pelo menos posso entendê-la. Você chama a isto também de tesseract?
-- Isto é um tesseract desdobrado em três dimensões. Para rearmá-lo você enfia o cubo de cima no cubo de baixo, dobra aqueles cubos do lado até que encontrem o cubo de cima, e é isso aí. Você faz essa dobração através de uma quarta dimensão, naturalmente; você não deforma nenhum dos cubos ou os dobra para dentro de outro.
Bailey estudou mais um pouco a estrutura cambaleante. -- Escute aqui -- disse finalmente --, por que não esquece de dobrar esta coisa através de uma quarta dimensão -- de qualquer forma você não pode fazê-lo -- e constrói uma casa como isto?
-- O que é que você quer dizer que não posso? é apenas um problema matemático, simples...
-- Devagar, filho. Pode ser simples matemática, mas você nunca conseguiria que seus planos fossem aprovados para construção. Não existe uma quarta dimensão; esqueça. Mas este tipo de casa -- poderia ter algumas vantagens.
Teal estudou o modelo. -- Hm-m-m... talvez você tenha razão. Poderíamos ter o mesmo número de quartos e teríamos o mesmo tamanho de terreno. Sim, e poderíamos pôr esse piso central em feitio de cruz, apontando para o nordeste e o sudoeste e, assim por diante de modo que cada quarto recebesse a luz do sol o dia todo. O eixo interno presta-se lindamente ao aquecimento central. Colocaremos a sala de jantar no sudeste, com janelas panorâmicas em cada peça Muito bem, Homer. Vou fazê-la! Onde é que você que que a construa?
-- Espere um pouco! Espere um pouco! Não disse que você iria construí-la para mim...
-- É lógico que vou. Para quem mais? Sua mulher quer uma casa nova; e esta é a casa.
-- Mas, a Sra. Bailey quer uma casa em estilo georgiano...
-- Isso foi só uma idéia dela. As mulheres não sabem o que querem...
-- A Sra. Bailey sabe.
-- Só uma idéia que algum arquiteto antiquado lhe meteu na cabeça. Ela dirige um carro de 1941, não dirige? Ela se veste na última moda -- por que deveria ela morar numa casa do século dezoito? Esta casa será mais avançada do que um modelo de 1941: está anos dentro do futuro. Ela será comentada por toda a cidade.
-- Bem -- terei de falar com ela.
-- Nada disso. Vamos fazer-lhe uma surpresa. Tome outro drinque.
-- De qualquer forma vamos de carro até Bakersfield. A companhia vai pôr dois poços em funcionamento amanhã.
-- Tolice. Essa é exatamente a oportunidade que queremos. Será uma surpresa para ela quando voltarem. Pode me encher o cheque agora e suas preocupações estarão terminadas.
-- Não deveria fazer nada disso sem consultá-la. Ela não vai gostar.
-- Diga, quem é que veste as calças na sua família?
O cheque foi assinado quando já estavam na metade da segunda garrafa.
No sul da Califónia as coisas são feitas com rapidez. As casas comuns ali são construídas em um mês. Sob as ordens excitadas e minuciosas de Teal, a casa tesseract elevava-se vertiginosamente em direção ao céu em dias, não em semanas, e seu segundo andar, em feitio de cruz, prejetava-se em direção aos quatro cantos do mundo. Teve alguma dificuldade, a princípio, com os inspetores por causa desses quatro quartos salientes, mas, utilizando vigas resistentes e dinheiro fácil, conseguiu convencê-los da solidez da sua engenharia.
Conforme o combinado, Teal dirigiu o seu carro até a porta da frente da residência dos Bailey na manhã seguinte à volta do casal à cidade. Improvisou um toque especial na sua buzina de dois tons. Bailey espetou a cabeça para fora da porta da frente.
-- Por que não usa a campainha? -- disse
-- É muito vagarosa -- respondeu Teal, alegremente. -- Sou um homem de sção. A Sra. Bailey está pronta? Ah, aí está a senhora! Bem-vinda ao lar. Pule aqui dentro que temos uma surpresa para a senhora!
-- Você conhece Teal, minha querida -- disse Bailey, pouco à vontade.
A Sra. Bailey fungou: -- Conheço-o. Iremos no nosso carro, Homer.
-- Certamente, minha querida.
-- Boa idéia -- concordou Teal --, tem muito mais força do que o meu; chegaremos lá mais depressa. Eu dirijo, conheço o caminho. -- Tirou as chaves da mão de Bailey, acomodou-se no assento do motorista e já tinha o motor ligado antes que a Sra. Bailey pudesse fazer qualquer coisa.
-- Nunca precisam se preocupar quando dirijo -- disse Teal à Sra. Bailey, virando a cabeça ao falar, ao mesmo tempo que fazia zunir o possante automóvel pela avenida, virando depois no Sunset Boulevard --É uma questão de força e controle, um processo dinâmico, é minha especialidade; numca tive um acidente sério.
-- Você não precisará de mais do que um -- respondeu era, mordaz. -- Quer, por favor, manter os olhos no trânsito?
Teal tentou explicar a ela que a situação do tráfego era uma questão, não de vista, mas de uma intuitiva integração de direções, velocidades e probabilidades, porém Bailey interrompeu-o bruscamente. -- Onde está a casa, Quintus?
-- Casa? -- perguntou desconfiada a Sra. Bailey. -- Que história é essa de casa, Homer? Você andou aprontando alguma coisa sem me dizer nada?
Teal respondeu com seu melhor modo diplomático: -- Certamente que é uma casa, Sra. Bailey. E que casa! É uma surpresa de um marido devotado para a senhora. Espere até vê-la.
-- Vou esperar -- disse ela secamente. -- Em que estilo é?
-- Esta casa inaugura um novo estilo. É mais avançada que a televisão, é mais nova do que a semana que vem. Deve ser vista para ser apreciada. E por falar nisso -- continuou rapidamente, evitando uma resposta --, vocês dois sentiram o terremoto ontem à noite?
-- Terremoto? Que terremoto? Homer, houve um terremoto?
-- Só um pequenininho -- continuou Teal --, às duas da madrugada, mais ou menos. Se não estivesse acordado, não teria notado.
-- A Sra. Bailey estremeceu. -- Oh, esta terra horrível! Escutou isso, Homer? Poderíamos ter sido mortos na cama sem nunca saber o que aconteceu. Por que foi que me deixer convencer a deixar o Iowa?
-- Mas, minha querida -- protestou ele atrapalhado --, você queria vir para a Califónia, não gostava de Des Moines.
-- Não precisamos entrar em detalhes -- disse ela com firmeza. -- Você é um homem; deveria prever coisas como essa. Terremotos!
-- Isso é uma coisa que não precisa temer no seu novo lar, Sra. Bailey -- disse Tea. -- é completamente à prova de terremotos; cada parte está em perfeito equilíbrio dinâmico com a outra parte.
-- Bem, espero que esteja. Onde está essa casa?
-- Logo depois dessa curva. Aí está o cartaz. -- Um enorme cartaz, em feitio de seta, da espécie usada pelos corretores de imóveis, proclamava em letras grandes e brilhantes -- mesmo para o sul da Califónia:

A CASA DO FUTURO
Colossal -- Assombrosa -- Revolucionária
Veja como viverão seus netos
Q. Teal, Arquiteto

-- Naturalmente que isso será tirado dali -- disse ele, apressadamente, notando a expressão da Sra. Bailey --, logo que vocês se instalaram. -- Fez a curva e parou o carro, com um rangido de freio, em frente a Casa do Futuro. -- Voilà! -- exclamou Teal, observando seus rostos para ver a reação.
Bailey olhava com incredulidade a Sra. Bailey, sem disfarçar a aversão. Ambos viam uma massa cúbica simples que possuía portas e janelas, mas, sem nenhum outro detalhe de construção, salvo que era decorada com intricados desenhos matemáticos. -- Teal -- disse Bailey, lentamente --, que diabo você tem andado fazendo?
Teal olhou de seus rostos para a casa. A torre louca, com seus quartos salientes do segundo andar, desaparecera. Não restava nem um traço dos sete aposentos acima do andar térreo. Nada restava a não ser o único cômodo que descansava sobre os alicerces. -- Macacos me mordam! -- gritou. -- Fui roubado!
Começou a correr.
Mas não ajudou em nada. Tando do lado da frente como nos fundos, a história era a mesma: os outros sete quartos haviam desaparecido, sumido completamente. Bailey alcançou-o e agarrou-lhe o braço.
-- Explique-se. Que história é esta de ter sido roubado? Como é que foi construir uma coisa destas -- não foi o que combinamos.
-- Mas, eu não fiz isto. Construí exatamente o que planejamos construir, uma casa de oito cômodos na forma de um tesseract desdobrado. Fui sabotado; foi isso! Os outros arquitetos da cidade não tiveram coragem de me deixar acabar o projeto; sabiam que estariam liquidados se o fizessem.
-- Quando é que você esteve aqui pela última vez?
-- Ontem à tarde.
-- Tudo estava em ordem, então?
-- Sim. Os jardineiros já estavam terminando.
Bailey olhou em volta para a paisagem impecavelmente acabada. -- Não vejo como sete quartos poderiam ter sido desmontados e carregados daqui numa só noite sem estragar o jardim.
Teal também olhou ao seu redor. -- Não parece. Não posso compreender.
A Sra. Bailey juntou-se a eles. -- E daí? E daí? Será que devo distrair-me sozinha? Vamos dar uma olhada já que estamos aqui, apesar de que, estou avisando, Homer, não vou gostar.
-- É, já que estamos aqui -- concordou Teal, tirando uma chave do bolso, com a qual abriu a porta, deixando-os entrar pela porta da frente. -- Talvez encontremos algumas pistas.
O hall de entrada estava em perfeito estado, abertas as portas corrediças que o separavem do espaço para a garagem, de modo a permitir que tivessem uma boa visão do compartimento inteiro. -- Isto parece que está bem -- observou Bailey. Vamos até o telhado, tentar descobrir o que aconteceu. Onde está a escada? Ou será que roubaram isso também?
-- Oh não -- respondeu Teal --, olhe... -- Apertou um botão abaixo da chave da luz; um painel no forro deslizou e um lanço de escadas, leve e gracioso, desceu silenciosamente. Seus reforços era o gélido prateado do duralumínio, os degraus e a parte vertical dos mesmos de plástico transparente. Teal retorceu-se como um menino que conseguiu realizar um truque com as cartas, enquanto a Sra. Bailey degelava perceptivelmente.
Era uma beleza.
-- Muito bacana -- admitiu Bailey. -- Contudo, não parece levar a parte alguma.
-- Oh, isso... -- Teal seguiu o seu olhar. -- O alçapão levanta quando você se aproxima do topo. Poços de escadas abertos são um anacronismo. Venha. -- Como predissera, o tampo da escada saía do caminho à medida que subiam e permitiu que desembocassem no alto, porém, não como esperavam, no teto do único quarto. Encontraram-se parados no meio de um dos cinco quartos que compunham o segundo andar da estrutura original.
Pela primeira vez, que se saiba, Teal não teve nada a dizer. Bailey fez-lhe eco, mastigando o seu charuto. Tudo estava em perfeita ordem. Diante deles, através da porta aberta e de uma divisão translúcida, esta a cozinha, o sonho de um chef, com uma engenharia doméstica das mais modernas. Metal Monel, balcão de uma peça só, com luz escondida, arranjo funcional; à esquerda, a sala de jantar, formal, mas graciosas e hospitaleira, esperava hóspedes, sua mobília disposta com perfeição.
Teal sabia, antes de virar a cabeça, que o living e a saleta seriam encontrados numa existência tanto substancial quanto impossível.
-- Bem, devo admitir que isto é encantador -- aprovou a Sra. Bailey --, e a cozinha é fantástica demais para se acreditar -- embora nunca teria adivinhado, ao vê-la pelo lado de fora, que esta casa tivesse tando espaço em cima. Naturalmente, algumas mudanças terão de ser feitas. Aquela secretária, por exemplo -- se a colocássemos aqui e puséssemos o sofá lá...
-- Te fecha, Matilde -- interrompeu Bailey, bruscamente. -- O que você acha disto, Teal?
-- Ora, Homer Bailey! O desafo...
-- Te fecha, eu disse. Bem, Teal?
O arquiteto mexeu seu corpo desajeitado. -- Estou com medo de dizer. Vamos subir.
-- Como?
-- Assim. -- Tocou outro botão. Outra escada em cores mais profundas, companheira da ponte de fadas que os trouxera até ali, dava acesso ao andar seguinte. Subiram, a Sra. Bailey reclamando atrás deles, e encontraram-se no dormitório principal. As cortinas estavam fechadas, assim como as do andar de baixo, mas uma luz suave iluminou o aposento, automaticamente. Teal imediatamente acionou o botão que controlava outro lanço de escada e subiram às pressas até o gabinete de trabalho do andar superior.
-- Olhe, Teal -- perguntou Bailey, quando tinha recuperado o fôlego --, podemos chegar até o telhado acima desta sala? Então poderíamos dar uma olhada em volta.
-- Certamente; é uma plataforma-observatório. -- Subiram um quarto lanço de escadas, mas quando a tampa no alto se abriu para deixá-los passar ao outro nível, encontraram-se, não no telhado, mas, de pé na sala do andar térreo por onde tinham entrado na casa.
O rosto do Sr. Bailey adquiriu uma cor cinza-doentio. -- Anjos do céu -- gritou --, este lugar está assombrado. Nós vamos sair daqui! -- Agarrando sua mulher escancarou a porta e atirou-se para fora.
Teal estava preocupado demais para incomodar-se com a saída deles. Havia uma resposta para tudo isto, uma resposta na qual não acreditava. Mas foi forçado a interromper suas conjecturas porque gritos roucos chegavam-lhe de algum lugar lá em cima. Abaixou a escada e correu para o alto. Bailey estava no aposento central, curvado sobre a Sra. Bailey, que desmaiara. Teal percebeu a situação, foi diretamente para o bar da saleta e serviu três dedos de conhaque num copo que alcançou a Bailey. -- Pronto, isto a reanimará.
Bailey bebeu-o.
-- Isso era para a Sra. Bailey -- disse Teal.
-- Não discuta -- disse Bailey, secamente. -- Sirva outro. -- Teal teve a precaução de tomar um gole antes de voltar com a dose destinada à mulher do seu cliente. Encontrou-a quando abria os olhos.
-- Aqui, Sra. Bailey -- disse, tentando acalmá-la --, isto vai fazê-la sentir-se melhor.
-- Eu nunca toco em álcool -- protestou, tomando o conteúdo de um gole.
-- Agora, digam-me o que aconteceu -- sugeriu Teal. -- Pensei que ambos tivessem ido embora.
-- Mas nós fomos -- saímos pela porta da frente e nos encontramos aqui em cima, na saleta.
-- Diabos, é verdade! Hm-m-m... esperem um minuto. -- Teal entrou na saleta. Lá descobriu que a janela panorâmica, situada numa extremidade do aposento, estava aberta. Espiou para fora, cautelosamente. Fitou com espanto, não para uma paisagem da Califónia, mas, para dentro do aposento do andar térreo -- ou um fac-símile dele. Não falou nada, mas voltou ao poço da escada que deixara aberto e olhou para baixo. O andar térreo ainda estava no lugar. De algum modo, conseguia estar em dois lugares diferentes ao mesmo tempo -- em níveis diferentes.
Voltou para a sala central e afundou-se numa poltrona baixa em frente de Bailey, olhando-o por cima dos seus joelhos ossudos.
-- Homer -- disse solenemente --, você sabe o que aconteceu?
-- Não, eu não sei... mas, se não descobrir logo, alguma coisa vai acontecer, e muito drástica também!
-- Homer, isto é uma realização das minhas teorias. Esta casa é um verdadeiro tesseract!
-- Do que é que ele está falando, Homer?
-- Espere, Matilde... ora, Teal, isso é ridículo. Você aprontou alguma trapaça aqui e eu não vou tolerar isso -- quase matando a Sra. Bailey de susto e deixando-me nervoso. Só o que quero é sair daqui, sem mais amostras de seus alçapões e brincadeiras idiotas de mau gosto.
-- Fale por você, Homer -- interrompeu a Sra. Bailey, --, eu não fiquei com medo; só me senti esquisita por uns momentos. É o meu coração; todas as pessoas da minha família são delicadas e sensíveis. Agora, com respeito a esta tessi-coisa -- explique-se, Sr. Teal. Fale.
Contou-lhe do melhor modo possível, apesar das numerosas interrupções sobre a teoria que estava por trás da casa. -- Do modo como vejo as coisas, Sra. Bailey -- terminou --, esta casa, embora perfeitamente estável em três dimensões, não era estável em quatro dimensões. Construí uma casa no formato de um tesseract desdobrado; alguma coisa aconteceu com ela, uma sacudidela ou um tremor, e caiu no seu formato normal , dobrou-se. -- Estalou os dedos, subitamente. -- Já sei! O terremoto!
-- Terremoto?
-- Sim, sim, o pequeno abalo que tivemos ontem à noite. De um ponto de vista quadridimensional esta casa era como um plano equilibrado numa das arestas. Um empurrãozinho e dobrou-se nas juntas naturais, formando uma figura quadridimensional estável.
-- Pensei que você alardeava que esta casa era segura.
-- É segura -- tridimensionalmente.
-- Não chamo segura -- comentou Bailey, irritado -- uma casa que desmonta ao menor abalo.
-- Mas olhe à sua volta, homem! -- protestou Teal. -- Nada foi perturbado, nem uma peça de cristal rachada. Uma alternação através de uma quarta dimensão não pode afetar uma figura tridimensional do mesmo modo como não se pode sacudir as letras de uma página impressa. Se vocês estivessem dormindo aqui, ontem à noite, nunca teriam acordado.
-- É exatamente disso que tenho medo. E por falar nisso, o seu grande gênio já descobriu algum jeito de nos tirar desta arapuca?
-- Hem? Oh, sim, você e a Sra. Bailey saíram e aterrisaram de volta aqui em cima, não foi? Mas estou certo de que não haverá nenhuma dificuldade real -- entramos: podemos sair. Vou tentar. -- Levantou-se e desceu apressadamente antes de terminar o que estava dizendo. Abriu a porta da frente, saiu e encontrou-se fitando seus companheiros, da outra ponta da saleta do segundo andar. -- Bem, parece haver alguns pequenos problemas -- admitiu, alegremente. -- Uma mera tecnicalidade, embora sempre possamos sair pela janela. -- Afastou com um puxão os longos cortinados que cobriam as portas-janelas, situadas numa das paredes da saleta. Subitamente, estacou.
-- Hm-m-m... -- disse --, isto é interessante... muito.
-- O que é? -- perguntou Bailey, juntando-se a ele.
-- Isto. -- A janela dava diretamente para a sala de jantar em vez de dar para fora. Bailey voltou para o canto onde a saleta e a sala de jantar se encontravam com a sala central num ângulo de noventa graus.
-- Mas, isso não pode ser -- protestou --, essa janela está, talvez, de quatro e meio a seis metros da sala de jantar.
-- Não num tesseract -- corrigiu Teal. -- Veja. -- Abriu a janela e saiu, falando por cima do ombro.
Do ponto de vista dos Baileys ele simplemente desapareceu.
Mas não do seu. Levou alguns segundos para recuperar o fôlego. Então, cautelosamente, soltou-se da roseira com a qual ficara quase que irrevogavelmente entrelaçado, tomando mentalmente nota de nunca mais encomendar ajardinamento que incluísse plantas com espinhos, e olhou em volta.
Estava do lado de fora da casa. O volume compacto da sala do andar térreo elevava-se ao seu lado. Aparentemente, caíra do telhado.
Dobrou a esquina da casa correndo, abriu a porta da frente, com violência, e subiu correndo as escadas. -- Homer! -- chamou. -- Sra. Bailey! Encontrei uma saída!
Bailey pareceu mais aborrecido do que contente em vê-lo. -- O que foi que aconteceu com você?
-- Caí para fora. Estive do lado de fora da casa. Vocês podem fazer isso com a mesma facilidade -- apenas atravessem essas portas-janelas. Cuidado com a roseira, talvez tenhamos que construir outra escada.
-- Como foi que voltou a entrar?
-- Pela porta da frente.
-- Então sairemos da mesma maneira. Venha, querida. -- Bailey enfiou, resolutamente, o chapéu na cabeça e desceu as escadas com passo firme, a esposa agarrada ao seu braço.
Teal encontrou-os na saleta. -- Eu podia ter-lhes dito que isso não funcionaria -- observou. -- Agora, eis o que devemos fazer: do modo como vejo as coisas, numa figura quadridimensional, um homem tem duas escolhas cada vez que cruza uma linha de junção, como uma parede ou um limiar. Comumente, ele fará uma volta de noventa graus na quarta dimensão, só que não sentirá isso nas suas três dimensões. Olhem. -- Teal atravessou a mesma janela pela qual caíra há poucos comentos. Atravessou-a e chegou à sala de jantar, bem onde estava, ainda falando.
-- Observei onde ia e cheguei onde tencionava. -- Voltou para a saleta. -- Da outra vez não prestei atenção, desloquei-me através do espaço normal e caí para fora da casa. Deve ser um caso de orientação subconsciente.
-- Detestaria ter de depender de orientação subconsciente quando saio de manhã para apanhar o jornal.
-- Você não terá de fazê-lo; tornar-se-á automático. Bem, para sair da casa, desta vez -- Sra. Bailey, se a senhora ficar de pé aqui, com as costas para a janela e pular para trás, tenho absoluta certeza de que a senhora aterrisará no jardim.
O rosto da Sra. Bailey expressava sua opinião sobre Teal e suas idéias. -- Homer Bailey -- disse ela com voz esganiçada, -- Você vai ficar parado aí e deixar que ele sugira uma coisas des...
-- Mas, Sra. Bailey -- tentou explicar Teal --, podemos amarrar uma corda na senhora e baixá-la fácil.
-- Esqueça, Teal -- interrompeu Bailey, bruscamente. -- Vamos ter de encontrar coisa melhor do que essa. Nem a Sra. Bailey nem eu estamos em condições de pular.
Teal ficou momentaneamente mudo; seguiu-se um curto silêncio. Bailey quebrou-o com: -- Você escutou isso, Teal?
-- Escutei o quê?
-- Alguém falando a distância. Você não acha que talvez haja mais alguém na casa, pregando peças na gente?
-- Oh, não há uma chance. Eu tenho a única chave que existe.
-- Mas, eu tenho certeza -- confirmou a Sra. Bailey. -- Estou ouvindo-os desde que entramos. Vozes. Homer, não posso agüentar muito mais disto. Faça alguma coisa.
-- Ora, ora, Sra. Bailey -- disse Teal, tentando acalmá-la --, não fique perturbada. Não pode haver mais ninguém na casa, mas irei investigar para ter certeza. Homer, permaneça aqui com a Sra. Bailey e fique de olho nos quartos deste andar. -- Passou da saleta para a sala do andar térreo e dali para a cozinha e depois para o quarto de dormir. Isto levou-o de volta à saleta, por um caminho em linha reta, isto é, indo diretamente para a frente todo o trajeto, ele retornou ao lugar de onde partira.
-- Não há ninguém por aqui -- disse. -- Abri todas as portas e janelas no caminho... menos esta. -- Chegou à janela do lado oposto àquela por onde caíra minutos atrás e descerrou as cortinas.
Viu um homem de costas para ele a quatro aposentos de distância. Teal abriu a porta-janela e mergulhou na outra sala gritanto: -- Lá vai ele! Pare, ladrão!
A pessoa, evidentemente, ouviu-o: fugiu precipitadamente. Teal perseguiu-o, seus membros desajeitados mexendo-se ao mesmo tempo como um polichinelo, pelo living, cozinha, sala de jantar, saleta -- sala após sala -- entretanto, apesar dos mais árduos esforços de Teal, a distância de quatro quartos que o intruso levava de vantagem quando começou, não parecia diminuir.
Viu o perseguido pular desajeitado, porém rapidamente, por cima do caixilho baixo da porta-janela e, ao fazê-lo, o chapéu caiu de sua cabeça. Quando chegou ao lugar onde o intruso perdera o chapéu, abaixou-se para apanha-lo, satisfeito de ter uma desculpa para parar e tomar fôlego. Voltou para a saleta.
-- Acho que ele escapou -- disse. -- De qualquer forma, aqui está o chapéu dele. Talvez possamos identifica-lo.
Bailey tomou o chapéu e olhou para ele depois fungou e enfiou-o na cabeça de Teal. Ajustava-se com perfeição. Teal parecia perplexo; tirou o chapéu e examinou-o. Na carneira viam-se as iniciais "Q.T.". Era o seu próprio chapéu.
Lentamente, a compreensão filtrou-se através das feições de Teal. Voltou a porta-janela e olhou para a série de aposentos pelos quais correta atrás do misterioso estranho. Viram-no agitar os braços como um semáforo.
-- O que é que está fazendo? -- perguntou Bailey.
-- Venha ver. -- Os dois juntaram-se a ele e seguiram seu olhar, fixando com olhos esbugalhados o mesmo que ele fitava. A quatro aposentos de distância, viram as costas de três pessoas, dois homens e uma mulher. O mais alto e magro dos dois homens agitava os braços de maneira idiota.
A Sra. Bailey deu um grito e desmaiou novamente.

Minutos depois, quando a Sra. Bailey estava reanimada e já um tanto mais composta, Bailey e Teal fizeram um balanço da situação.
-- Teal -- disse Bailey --, não vou perder o meu tempo em botar a culpa em você; as recriminações são inúteis e estou certo de que você não planejou que isto acontecesse, mas suponho que você percebe que estamos em sérios apuros. Como é que vamos sair deste lugar? Agora parece que vamos ficar aqui até morrer de fome, cada quarto dá para outro quarto.
-- Oh, não é tão mau assim. Saí uma vez, você sabe.
-- Sim, mas você não pode repetir isso -- você tentou.
-- De qualquer forma, não tentamos todos os quartos. Ainda temos o gabinete de trabalho.
-- Ah, sim, o gabinete de trabalho. Fomos por lá logo que chegamos e não paramos. Tem idéia se podemos sair pelas janelas de lá?
-- Não fique muito esperançoso. Matematicamente, ele deve dar para as quatro peças laterais deste andar. Entretanto, nunca abrimos as cortinas; talvez devêssemos fazê-lo.
-- Bom, não vai fazer mal nenhum. Querida, acho que é melhor você ficar aqui e descansar...
-- Ficar sozinha neste lugar horrível? Isso é que não! -- A Sra. Bailey levantou-se de um pulo do sofá onde estivera se recuperando, antes mesmo de acabar de falar.
Subiram a escada. -- Esta é a sala interna, não é, Teal? -- perguntou Bailey, quando passavam pelo quarto de dormir principal e subiam ao estúdio. -- Quero dizer se é o cubo pequeno do seu diagrama, que estava no meio do cubo grande e completamente rodeado.
-- Isso mesmo -- concordou Teal. -- Bem, vamos dar uma olhada. Acho que esta janela deve dar para a cozinha. -- Agarrou as cordas das venezianas e puxou-as.
Não dava para a cozinha. Ondas de vertigem sacudiram-nos. Involuntariamente, caíram no chão, tentando em vão agarrar-se aos desenhos do tapete para não cair. -- Feche-a! Feche-a! -- gemeu Bailey.
Dominando, em parte, um medo atávido e primitivo, Teal arrastou-se de volta à janela e conseguiu soltar a veneziana. A janela dava para baixo, em vez de para fora, de uma altura terrificante.
A Sra. Bailey desmaiara novamente.
Teal voltou para apanhar mais conhaque, enquanto Bailey esfregava os pulsos da esposa. Quando ela recuperou os sentidos, Teal foi cautelosamente até a janela e levantou uma ponta da persiana. Escorando os joelhos, estudou o panorama. Virou-se para Bailey: -- Venha olhar isto, Homer. Veja se você o reconhece.
-- Você fique longe daí, Homer Bailey!
-- Ora, Matilde, terei cuidado. -- Bailey juntou-se a Teal e olhou para fora.
-- Vê lá em cima? Aquele é o Edifício Chrysler, isto é certo. E lá está o rio East e o Brooklyn. -- Olhavam diretamente para baixo, pelo lado de um prédio tremendamente alto. Mais de uns trezentos metros além, uma cidade de brinquedo, muito real e ativa, espalhava-se bem à frente de ambos.
-- O que mais ou menos consigo entender é que estamos olhando para baixo, por um dos lados do edifício Empire State. de um ponto acima de sua torre.
-- E o que é? Uma miragem?
-- Não creio -- é perfeito demais. Acho que o espaço dobrou-se através da quarta dimensão, aqui, e que estamos olhando além da dobra.
-- Você quer dizer que, realmente, não estamos vendo isso?
-- Não, estamos vendo isso de verdade. Não sei o que aconteceria se pulássemos por esta janela, mas, eu, de jeito nenhum, quero experimentar. Mas, que vista! Rapaz, que vista! Vamos experimentar as outras janelas.
Aproximaram-se da outra janela com mais cautela, e foi bom que assim fizessem, pois era ainda mais desconcertante, fazia vacilar a razão mais do que a outra que dava para a altura vertiginosa do arranha-céu. Era uma simples paisagem marinha, vasto oceano e céu azul -- porém o mar ficava onde deveria ser o céu e vice-versa. Desta vez estavam mais preparados para isso, mas ambos sentiram enjôo à vista das ondas rolando no alto; rapidamente, abaixaram a cortina sem dar chance à Sra. Bailey de ser perturbada por aquilo.
Teal olhou para a terceira janela. -- Tem coragem de experimentar, Homer?
-- Hrrumpf - bem, não ficaremos satisfeitos se não o fizermos. Devagar. -- Teal levantou a cortina alguns centímetros. Não viu nada e levantou-a mais um pouco -- ainda nada. Lentamente, levantou-a até que a janela estivesse completamente visível. Olharam para fora, para nada.
Nada, absolutamente nada. Que cor tem o nada? Não seja tolo! Que forma tem? Forma é atributo de alguma coisa. Não tinha nem profundidade nem forma. Nem mesmo cor preta tinha. Era nada.
Bailey mastigava o seu charuto. -- Teal, o que é que você pensa disto?
A atitude despreocupada de Teal foi sacudida pela primeira vez. -- Não sei, Homer; realmente, não sei -- mas acho que essa janela deveria ser murada. -- Olhou, por uns instantes, para a cortina abaixada. -- Acho que olhamos para um lugar onde o espaço não é. Olhamos do outro lado de uma esquina quadridimensional e não havia nada lá. -- Esfregou os olhos. -- Estou com dor de cabeça.
Esperaram um pouco antes de enfrentar a quarta janela. Como uma carta, ainda não aberta, poderia não conter más notícias. A dúvida deixava alguma esperança. Finalmente, o suspense ficou intolerável e Bailey acabou puxando a corda da persiana sem dar atenção aos protestos da esposa.
Não era tão ruim. Uma vista estendia-se à sua frente, em posição normal, a um nível em que o gabinete de trabalho parecia estar no andar térreo. Mas era nitidamente hostil.
Um sol quente, muito quente, abatia-se de um céu cor de limão. O terreno plano parecia queimado e estéril, de um marrom desbotado, incapaz de sustentar qualquer tipo de vida. Porém, vida havia: estranhas árvores atrofiadas que elevavam braços retorcidos e nodosos para o céu. Pequenas moitas de folhas espinhentas cresciam nas extremidades dessa vegetação disforme.
-- Santo Deus -- suspirou Bailey --, onde é isso?
Teal sacudiu a cabeça, o olhar preocupado. -- Isso é demais para mim.
-- Não se parece com nada na Terra. Parece mais com outro planeta -- Marte, talvez.
-- Não saberia dizer. Mas, você sabe, Homer, poderia ser pior do que isso, pior do que outro planeta, quero dizer.
-- Hem? O que é que está dizendo?
-- Poderia ser completamente fora do nosso espaço. Não tenho certeza de que esse seja o nosso sol. Parece brilhante demais.
A Sra. Bailey aproximara-se timidamente, juntando-se a eles, e agora olhava para a bizarra paisagem. -- Homer -- disse com voz apagada --, essas árvores horrorosas... elas me assustam.
Ele deu-lhe uma palmadinha na mão.
Teal tentou abrir o trinco da janela.
-- O que é que você está fazendo? -- perguntou Bailey.
-- Pensei que se enfiasse a cabeça do lado de fora da janela poderia dar uma olhada e dizer mais alguma coisa.
-- Bem... certo -- disse Bailey com má vontade --, mas tome cuidado.
-- Tomarei. -- Abriu a janela um pouquinho e cheirou. -- O ar é bom, pelo menos. -- Abriu toda a janela.
Sua atenção foi desviada antes que pudesse pôr seu plano em prática. Um tremos desagradável, como o primeiro sinal de náusea, sacudiu todo o prédio, por um longo segundo e logo parou.
-- Terremoto! -- Todos falaram ao mesmo tempo. A Sra. Bailey jogou os braços em volta do pescoço do marido.
Teal engoliu em seco e se recompôs, dizendo: -- Tudo bem, Sra. Bailey. Esta casa é perfeitamente segura. A senhora sabe que pode esperar tremores de acomodação do terreno depois de um abalo como o de ontem à noite. -- Mal acabara de recompor suas feições numa expressão de confiança, quando veio o segundo tremos. Este não foi nenhuma trepidação suave, mas a verdadeira ondulação nauseante.
Em todo californiano, nativo ou enxertado, existe um reflexo primitivo, profundamente enraizado. Um terremoto enche-o de uma claustrofobia que lhe sacode a alma, que o impele cegamente a sair de casa!. Escoteiros modelos empurrarão para fora do seu caminho velhas vovós para obedecerem a esse impulso. Conta-se que Teal e Bailey aterrissaram em cima da Sra. Bailey. Evidentemente, ela deve ter sido a primeira a saltar pela janela. A ordem de precedência não podia ser atribuida ao cavalheirismo; deve-se presumir que ela estivesse numa posição mais adequada para saltar.
Acalmaram-se, puseram os pensamentos em ordem e tentaram tirar a areia dos olhos. Suas primeiras sensações foram de alívio e de sentir a areia firme do deserto embaixo deles. Então, Bailey percebeu alguma coisa que os fez ficar de pé e cortar o discurso que a Sra. Bailey estava a ponto de fazer.
-- Onde está a casa?
Sumira. Não havia nenhum sinal dela. Estavam parados no centro de uma desolação plana: o panorama que tinham visto da janela. Mas, além das árvores retorcidas, torturadas, não se via nada além do céu amarelo e a luminária lá no alto, cujo resplendor de fornalha era já quase insuportável.
Bailey olhou em volta, lentamente, depois voltou-se para o arquiteto.
-- E então, Teal? -- Sua voz era ameaçadora.
Teal deu de ombros, com desânimo. -- Gostaria de saber. Gostaria mesmo de ter certeza de que estamos na Terra.
-- Bem, não podemos ficar parados aqui. É morte certa. Que direção tomaremos?
-- Qualquer uma, acho. Vamos manter o rumo pelo sol.
Já tinham caminhado penosamente, por uma distância indeterminada, quando a Sra. Bailey pediu para descansar. Pararam. Teal disse, num aparte, para Bailey: -- Tem alguma idéia?
-- Não... não, nenhuma. Escute, ouve alguma coisa?
Teal escutou. -- Talvez... a não ser que seja a minha imaginação.
-- Parece um automóvel. Puxa, é um automóvel!
Chegaram à rodovia que passava a menos de noventa metros. O automóvel, quando chegou, era apenas um velho caminhão pequeno, dirigido por um rancheiro. Parou, fazendo barulho no pedregulho, ao vê-los abanar. -- Estamos perdidos. Pode nos ajudar?
-- Certamente. Entrem.
-- Para onde vai?
-- Para Los Angeles.
-- Los Angeles? Diga, que lugar é este?
-- Ora, vocês estão bem no meio da Floresta Nacional Joshua-Tree.
A volta voi tão deprimente quanto a Retirada de Moscou. O Sr. e Sra. Bailey estavam sentados na cabina com o motorista, enquanto Teal sacolejava na parte traseira do caminhão, tentando projeger a cabeça do sol. Bailey subornou o bom rancheiro para que fizesse um desvio até onde estava a casa tesseract, não porque quisesse vê-la novamente, mas, para apanhar o seu carro.
Finalmente, o rancheiro virou a curba que os trouxe de volta ao lugar de onde começaram. Mas a casa não estava mais lá.
Não ficara nem mesmo o quarto do andar térreo. Desaparecera. Os Bailey, interessados, mesmo sem querer, examinaram os alicerces junto com Teal.
- -Você tem alguma resposta para isto, Teal? -- perguntou Bailey.
-- Deve ser que no último abalo ela simplesmente caiu noutra seção do espaço. Posso ver agora que deveria tê-la ancorado nos alicerces.
-- Não é só isso o que você deveria ter feito.
-- Bem, não vejo motivo para ficar abatido com isto. A casa estava no seguro e eu aprendi uma enormidade. Há possibilidades, homem, possibilidades! Puxa, neste momento tenho uma grande, nova e revolucionária idéia para uma casa...
Teal desviou rapidamente a cabeça para não ser atingido por Bailey. Sempre foi um homem de ação.

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