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02/01/2013
O Agricultor
Mais uma vez ele havia se aborrecido com os geneticistas. Por que eles achavam que podiam opinar sobre como ele cuidava da própria fazenda? Afinal quem plantava, cuidava e colhia os híbridos, ele ou os geneticistas? A princípio nem precisava mesmo acatar qualquer sugestão dos técnicos, com suas cabeças fechadas, incapazes de experimentar coisas novas. Já tinha certeza que não aprovariam sua experiência nova com híbridos, só os questionava por costume. E de qualquer forma (isto eles não sabiam) o agricultor já havia feito a experiência, ela já crescia a algum tempo e aguardava para ser colhida.
Caminhou em meio à sua plantação de carnes, tentando se acalmar um pouco. As árvores de carne bovina cresciam imponentes, sustentadas por um grosso osso central se erguendo na vertical como caule e se subdividindo na copa em vários galhos, lembrando versões bem alongadas dos chifres da espécie original. A carne envolvendo este osso central de sustentação na verdade era pouco importante comercialmente. O que interessava estava na ponta de cada galho, onde se penduravam pedaços de bifes deliciosos crescendo como frutos. Aqueles em especial eram de uma experiência antiga: o agricultor havia cruzado espécies de tal maneira que o músculo das carnes tivessem fibras mais curtas, granulados e preenchidos com tecido adiposo, desenvolvendo-se em forma de discos. É claro que os geneticistas também não aprovaram tal mutação na época, mas as redes de fastfood adoraram a novidade. O hamburguer cultivado estava quase pronto para ser colhido, e representava atualmente sua principal fonte de renda.
Há muito tempo não existiam mais abatedouros, lembrança remota de uma idade de trevas. Não era mais necessário criar animais para conseguir suas carnes, quando era possível obtê-las de híbridos animal-vegetal. Era muito mais barato cultivar a carne do que criar rebanhos. Era mais rápido, pois a carne cultivada amadurecia e podia ser colhida em poucas semanas. Exigia menos espaço: os híbridos cresciam presos ao solo, não precisavam de grandes áreas de pasto para crescerem. Sem contar que era bem mais higiênico e, o que mais contou na época em que começaram a ser produzidos, não causavam sofrimentos desnecessários! Sim, porque como os híbridos não possuíam sistema nervoso, não sentiam dor.
Muitos puristas questionaram na época (e ainda continuam questionando) se aquilo seria mesmo carne. Bem, como hoje em dia não existia mais "carne natural" disponível era difícil comparar uma com a outra para se decidir. Na verdade ainda podia se conseguir "carne viva" por meios ilegais, mas não valia a pena correr o risco. Estava bem claro no Código Penal Mundial, artigos 2754 e 2755: "Causar morte com sofrimento desnecessário a um ser consciente ou com consciência parcial com o vil objetivo de utilizar seus tecidos vitais como alimento: crime inafiançável, com reclusão de 80 anos a prisão perpétua. Consumir tecido animal obtido por morte cruel, mesmo não sendo o autor desta morte: pena de 15 anos de reclusão para cada quilograma de carne natural consumida." Além disso também tinha o preço proibitivo: cada grama de carne ilegal correspondia quase ao preço do grama de irídio puro! E, para completar, as condições de higiene dos locais de onde vinha esta carne não era das melhores... Bom, pode-se dizer que atualmente ninguém mais comia "carne viva".
Ao final daquela alameda rosada de carne bovina ficavam as árvores leiteiras. À semelhança das antigas seringueiras, os veios quentes de leite fresco que escorria espontâneo das inúmeras vesículas mamárias ao redor do tronco eram agrupados em pequenos reservatórios e corriam por uma rede de canaletas até os reservatórios centrais, a algumas dezenas de metros mais à frente. Na verdade tais árvores leiteiras eram plantadas em círculos, com o reservatório central localizado numa depressão em seu centro, para onde corriam radialmente as várias canaletas levando o líquido precioso. O agricultor provou um pouco daquele leite quente e fresco que acabava de sair de sua árvore: que delicioso! Como alguém podia ter coragem de chamar aquele seu leite e suas carnes de "sintéticas"? Isto só comprovava sua teoria de que a humanidade ficava cada vez mais burra...
Logo estava em meio à plantação de aves. Arbustos baixos, cada qual com inúmeras asas alongadas de onde saíam penas de várias cores que balançavam ao vento como folhas. Era uma das plantações que o agricultor considerava mais bonita! Obviamente aqueles galhos com estrutura de leves asas eram frágeis demais para aguentarem pedaços de carne de frango pendurados neles. Por isso eles surgiam no chão, em torno do caule, na forma de pequenos tubérculos carnosos conectados ao tronco central. Olhando bem, com aquelas duas bolotas ao lado lembrando coxas, o formato lembrava bem aquele dos antigos frangos. Decepados na conexão com o organismo principal, parecia mesmo que havia uma cabeça separada do resto do corpo, completando a ilusão. O corte parecia parte de um pescoço! Haviam vantagens claras, obviamente: quase nenhum osso, interior sem órgãos internos, apenas carne! O formato de frango na verdade era apenas para satisfazer o gosto dos consumidores, acostumados a verem aqueles frangos híbridos girando dentro das estufas de assar, com as batatas ao fundo.
As velhas lembranças custavam a sair da cabeça do povo. Se recusavam a comer carne que não parecesse carne, mesmo que ela fosse indiscutivelmente mais barata (atualmente uns 15 centavos cada quilo de carne bovina híbrida). Ninguém daquela geração havia presenciado o absurdo do quilo de carne custando mais de um Real Novo... As pessoas comuns não sabiam nem o que era síntese celular nem morfogênese dos tecidos, muito menos saberiam dizer a diferença entre uma e outra. Desconheciam o fato de que o trecho de DNA responsável por sintetizar as células de músculos, peles, ossos e gorduras era independente do trecho que combinava tais células em tecidos, e independente também dos trechos responsáveis por dar forma a estes tecidos no processo de morfogênese. Que o DNA responsável por sintetizar ossos e músculos de boi poderiam muito bem serem combinados com o trecho que coordenava a morfogênese de uma planta, e desta forma agrupar músculos e ossos no formato de uma árvore com caule, galhos e frutos ao invés de criar cabeça e membros com estes tecidos e fazer um boi vivo com um sistema nervoso capaz de lhe dar consciência. E que, nem por isso, estes tecidos deixavam de ser carne. Somente a reorganização macroscópica havia sido alterada, a microscópica continuava idêntica. A forma não importava, o que importava no fim da história eram as proteínas. Nada mais que proteínas...
Deixou a plantação de faisões e dirigiu-se até sua plantação rasteira de carnes. O natal estava próximo, e a procura por bolotas de pernil seria intensa! Acariciou uma delas que crescia no chão como melancias. Aquela espécie não seria mesmo um híbrido de melancia com material genético suíno? Acariciou uma daquelas massas quentes de carne, que pareciam até estar vivas. Mas que pensamento idiota, né? Lógico que estavam vivam, tão vivas quando estaria uma melancia ou um porco, que emprestaram à especie respectivamente os genes responsáveis pela sua morfogênese vegetal e pela síntese de tecidos animais. Dado o formato incomum, uma massa extensa de músculos e gorduras precisando de muito oxigênio, esta tinha até um pequeno pulmão no centro da estrutura. Ela respirava...
Mas haviam bolotas de carne especiais escondidas neste meio. Dificilmente alguém perceberia a diferença entre elas e as bolotas de pernil. Só agricultores experientes como ele saberiam diferenciar. Era de uma carne bem mais suave que as atuais, fácil de digerir, pouca gordura, mais nutritiva. Muito saudável! E saborosa, como ele próprio já havia provado! Haveria uma rejeição à princípio, como houvera antes com os frutos da árvore de hamburguer. Sim, as pessoas costumam rejeitar o novo. Os geneticistas, por exemplo, acharam um absurdo agora a pouco! E ele já esperava esta visão limitada por parte de tais técnicos. Mas ele já havia desenvolvido, plantado e, daqui há poucos dias, já poderia colher e vender a carne do híbrido novo.
Estava decidido: apresentaria a novidade aos poucos! Deixaria primeiro que experimentassem a novidade, para evitar que a opinião fosse influenciada por preconceitos bobos. Talvez acompanhada de um livro de receitas como brinde, ensinando-os a preparar melhor a carne nova. Depois que todos se acostumassem e apreciassem o novo sabor, talvez ele até pudesse revelar que estavam comendo carne humana. Ou não...
*** FIM ***
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NOTA (1):
Em inglês ou francês, a palavra "agriculture" indica genericamente atividades agrícolas tanto de cultivo dos campos quanto de criação de animais. Uma tradução mais próxima de "agriculture" seria, portanto, "agropecuária".
Em português "agricultura" refere-se exclusivamente ao cultivo de plantas no campo, significado próximo mas limitado do original em latim ager(campo, território) e cultura(cultivo). Como até o presente momento a única coisa que se sabe possível se cultivar no campo são vegetais, esta limitação da língua portuguesa faz sentido. Mas, muito embora não cultive vegetais, acredito ser completamente adequado denominar o protagonista desta história de AGRICULTOR. :-) Ele cultiva o campo, apesar de cultivar carne animal ao invés de plantas, hehehe.
(fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Agricultura)
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NOTA (2):
Já se pesquisa "carnes sintéticas". Só não sei ainda se elas vão ser plantadas.
Aqui está o wiki disto em inglês:
http://en.wikipedia.org/wiki/In_vitro_meat
Tem também em português, mas infelizmente com uma tradução bem incompleta...
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carne_artificial
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