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02/01/2013
4D
Não era nada fácil encarar os seres tetradimensionais. De início, o próprio termo "encarar" já era completamente inadequado. Como fixar o olhar numa face que mudava o tempo todo? Fora o fato claro deles possuirem três olhos, algo que sempre ficava evidente quando tentavam focalizar os três em nossa brana tridimensional. Acostumados com um mundo em quatro dimensões, parecia evidente que eles tinham muita dificuldade em focalizar criaturas tridimensionais como nós.
Se pensarmos bem, nós também apresentamos, à nossa maneira, vários rostos diferentes. Um rosto visto de frente é bem diferente do mesmo rosto visto de perfil, e totalmente diferente do rosto visto por trás ou por cima. Mas limitados a um único eixo de rotação devido à nossa natureza tridimensional não temos dificuldade alguma em reconhecer que estas várias facetas são apenas pontos de vista diferentes de um mesmo rosto. Porém, com seres tetradimensionais capazes de rotacionar suas cabeças em dois planos de rotação independentes, a situação fica mais complicada. Para nós obviamente, não para eles...
Antes daqueles contatos, várias foram as formas diferentes que imaginávamos que teriam nossos prováveis companheiros cósmicos: homenzinhos verdes, talvez lulas inteligentes, lagartos, amebas gigantes... até mesmo a idéia de vegetais, plantas inteligentes, chegou a ser cogitada seriamente certa época. Mas uma coisa todas estas especulações tinham em comum: sempre imaginamos que extraterrestres, por mais estranhos que pudessem parecer, seriam tridimensionais como nós. Uma criatura de quatro dimensões estava fora do alcance do mais doido dos escritores de ficção científica. Porém, lá estavam eles, se comunicando conosco!
- Vocês mal sentirão nossa presença no planeta. - a voz multiplamente modulada vinha de todas as direções possíveis. - Faremos de tudo para não interferirmos na brana tridimensional que vocês ocupam no planeta Terra. O hipervolume de seu planeta é gigantesco!
Espantados com o fato dos extraterrestre saberem falar português? Bem, ainda nem imaginamos as implicações de uma inteligência desenvolvida dentro de um cérebro de quatro dimensões. Imaginem neurônios, ou seus equivalentes tetradimensionais, com quatro graus de liberdade disponíveis para criarem ligações sinápticas com seus vizinhos. A experiência mostrou que tais seres eram capazes de dominar a estrutura de qualquer língua humana apenas ouvindo-a por poucos minutos.
Minutos, segundos... tempo! Outra grande surpresa para nós, esta praticamente impossível de se imaginar! Algebrista especializados no estudo da Causalidade de Eventos viram neles um prato cheio para seus estudos, diante da afirmação de que tais criaturas viviam num "Plano Temporal", numa estrutura de tempo bidimensional capaz de fluir em duas direções independentes. Nossa idéia de ontem, hoje e amanhã, referências dentro de uma reta de direção única, não passavam de limitações grosseiras para tais criaturas. Nossos estudiosos estavam muito interessados em entender todas as consequências possíveis disto. Mas para nós, simples mortais, o fluxo de tempo linear e unidirecional continuaria sendo a idéia mais complexa que poderíamos formular envolvendo o escorrer das areias do tempo pela ampulheta do nosso universo.
Era inevitável, apesar de todo treinamento, que eu adotasse certo tom de reverência ao entrar em contato com estas entidades fantásticas. Elas próprias não desejavam nem exigiam nada deste gênero, ou talvez (o que acho mais provável) a admiração por parte de reles seres tridimensionais lhes fosse completamente irrelevante. Mas sempre foram respeitosos. Como um mestre tratando bem seus discípulos? Nada disso, na verdade era muito mais como o respeito que um cientista tinha por uma rara cultura de bactérias, sobre a lâmina de vidro do microscópio.
Não eram belos nem feios. Aquelas massas variáveis à minha frente não possuiam nem formas, nem cores, nem mesmo tamanhos definidos. Eu próprio ainda ficava perplexo, apesar de tê-los visitados já uma dúzia de vezes. Selecionado entre vários outros astro-matemáticos, eu me mostrei o mais capaz de tentar vislumbrar aquele mundo de quatro dimensões. Qualquer outra pessoa despreparada acabaria enlouquecendo na presença deles. Sabia muito bem que aquilo que via não eram eles próprios. Eram apenas sombras, "fatias" tridimensional de seus corpos tetradimensionais que cruzavam nosso espaço naquele momento. Numa analogia grosseira, era como se eu estivesse conversando com a imagem tomográfica de uma pessoa.
- Nossa intenção é isolar cerca de 100 quilômetros em torno de toda a borda da calota hiperesférica que representa a superfície esférica de seu planeta.
- Devagar, por favor. Não estou conseguindo acompanhar a idéia.
Teriam aqueles três olhos lançado um olhar de impaciência sobre mim? Difícil saber. De fato não deve ser mesmo nada fácil tentar explicar a teoria da relatividade para amebas.
- É fato conhecido de vocês que o espaço é multidimensional, não é? E que, muito embora vocês só observem parte deles que são atravessadas pela brana tridimensional de seu universo corrente, seus planetas e estrelas são na verdade hiperesféricos. Confirmam?
- Entendo parcialmente a idéia. Sempre por analogias.
- Que as leis físicas que vocês formularam na verdade são bem mais elaboradas do que pensam. Que a interação gravitacional, por exemplo, não passa de uma projeção limitada do que realmente ocorre no universo tetradimensional vista por uma transformação tridimensional...
- Sim! Fazemos alguma idéia! Tentamos até entender a estrutura de hipercubos, entender sua projeção como um objeto no espaço tridimenmsional. Mas vocês precisam me explicar devagar, não é tão natural assim compreendermos tais conceitos...
A criatura à minha frente se tornou uma enorma massa verde que logo a seguir deu lugar a um pequeno tetraedo vermelho claramente orgânico. Assumiu depois a conformação de uma esfera cinzenta mais ou menos do tamanho e altura de uma cabeça humana. Quase como que uma cabeça sustentada por um tronco de cone que chegava até o chão da estação espacial. Mas os três olhos permaneciam lá a maior parte do tempo. Às vezes um deles sumia, ou mesmo dois, mas as criaturas claramente estavam se esforçando para me manter no foco! Muitos extrabiólogos e computólogos já haviam estudado isto, e havia uma conclusão mais ou menos estabelecida: assim como nós possuíamos dois olhos para combinar duas imagens com alguma diferença de paralaxe numa representação tridimensional do ambiente à nossa volta, parecia natural que estes seres precisassem de três olhos distintos para formar três imagens que, combinadas, dariam a eles a capacidade de perceber os objetos tetradimensionais de seus mundos.
- Poderíamos transitar no "interior tridimensional" de seu planeta, mas... isto não faria diferença para vocês, não é?
- Não. Vivemos na superfície. Começamos a avançar no espaço exterior, mas no interior não podemos ainda nos aventurar. É quente demais!
A criatura se surpreendeu! Mas era impossível tentar entender o que se passava em sua cabeça. Pediu educadamente:
- Poderia me retirar para conversar com meu companheiro sobre tal afirmação recente?
Como negar algo a tais "deuses tetradimensionais"?
- Lógico! Estarei aqui esperando...
As duas figuras mutantes sumiram. Eram mesmo duas? Sim, agora parecia claro. Lembro de ter visto, vez ou outra, uma terceira, quarta ou mesmo quinta massa orgânica dentro da sala, aparecendo e sumindo rápido. Pensando bem agora, provavelmente era o braço ou perna de uma das duas, cruzando temporariamente minha brana tridimensional. Apenas uma "parte" de algum deles cruzando rápido o "plano tomográfico" com o qual tentava estabelecer contato.
Agora me encontrava sózinho, aguardando um veredicto daquelas criaturas fabulosas!!
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- Na superfície da esfera tridimensional??? - Znontfgrizchvõ estava surpreso. - Mais do que limitados a três dimensões... eles só podiam até então se locomover no espaço fechado bidimensional definido pela superfície externa da esfera tridimensional de seu planeta? Além de serem apenas tridimensionais, por muito tempo precisaram se contentar em se mover apenas em duas dimensões, impedidos pela força gravitacional fácilmente superável?
Pesquisadores tridimensionais já haviam mencionado isto. Mas ouvi-lo da boca da própria criatura tridimensional era bem diferente! Mais intenso!
- Sinto certa pena deles... - diz Qzxxohjknblatks.
- Dos humanos rastejantes? - e o termo "rastejante" proferido aqui por Znontfgrizchvõ não tinha, de forma alguma, tom pejorativo; era simplesmente uma percepção bem natural para os seres tetradimensionais em relação aos tridimensionais. Ninguém está realmente ofendendo vermes ao afirmar que eles rastejam, concordam comigo?
- Não necessariamente do fato deles rastejarem limitados às suas três dimensões. Isto talvez nós mesmos acabaríamos nos acostumando se fôssemos obrigados a tal. Estou falando do tempo unidirecional que eles são obrigados a seguir. Como conseguem?
Znontfgrizchvõ conseguia entender a perplexidade do companheiro.
- Percebi neles certa inteligência, apesar de bem rudimentar. - continuio Qzxxohjknblatks.
- Também notei isto. - responde Qzxxohjknblatks, ou seria Znontfgrizchvõ? Bem, esta comutação de personalidades entre cérebros de companheiros tetradimensionais era uma das inúmeras outras coisas que os humanos tridimensionais nunca seriam capazes de compreender... - Sempre se espera um comportamento automático em seres de três ou duas dimensões. Mas neles...
- ... eles parecem capazes de tomar decisões, não é? Parecem possuir algum tipo de livre-arbítrio.
Ambos concordavam que isto era surpreendente numa rede neural limitada a três dimensões, com tri-neurônios tão limitados assim a três graus de liberdade para criar suas conexões.
- Concordando que eles são capazes de tomar decisões, minha pergunta é: o que eles fazem quando erram ?
Znontfgrizchvõ pensou naquilo com cuidado...
- Já conversei uma vez com um humano sobre isto. Pelo que entendi, ao errar eles tentam... como era mesmo o termo???... Ah sim! "Consertar"! Foi o que ele disse.
- Mas o tempo deles não é unidimensional? Ah, lógico: "consertar" deve ser então descobrir o ponto da linha temporal em que errou, voltar e tomar uma decisão diferente. Nunca havia pensado nisso...
- Temo que é mais complicado que isso, caro Znontfgrizchvõ. Além do tempo deles ser unidirecional, eles só podem segui-lo num sentido bem determinado.
Aquilo era surpresa para ele.
- Eles não podem voltar na sua linha temporal?
- De forma alguma! Eles são obrigados a seguir a direção temporal correspondente à expansão de sua brana tridimensional. Àquela direção definida em seu Big Bang particular. Na direção ortogonal ao plano tridimensional local de sua hiperbolha, e no sentido oposto ao centro da espansão.
- Na direção do aumento da entropia, é o que você quer dizer? Além de limitados a seguir um tempo unidirecional, eles também só podem fazê-lo num sentido? E o que fazem quando acabam sua possibilidades de variação entrópica?
- Eles morrem... - e Znontfgrizchvõ fez questão de enfatizar aquele termo obsceno, que todos sempre relutavam em pronunciar! - Deixam de existir...
Era uma visão de pesadelo!! Pois haviam claramente percebido a existência de consciência e inteligência naqueles seres rastejantes das três dimensões. Mas como, inteligentes, conseguiam viver presos numa injusta camisa de força tando espacial quanto temporal? Sem enlouquecer?
- Ele está nos esperando.
- Esperando?
- Sim, o tempo pra eles sempre avança! Unidirecional e de sentido único, lembra? Ele não pode, como nós, seguir uma linha temporal ortogonal.
- Seria conveniente voltarmos para um ponto temporal anterior à espera?
- De forma alguma! Isto só o deixaria mais confuso. Voltemos cerca de 30 minutos depois em sua linha de tempo, para lhe dar a impressão de que discutimos bastante sobre o assunto...
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Alguns dias atrás aquele era apenas um ponto azul no céu, apesar de mais brilhante que todos os outros da abóbada celeste negra. Não contando nosso próprio sol amarelo, obviamente! Mas, avançando em direção à estação espacial na velocidade de 30 quilômetros por segundo, começava a ficar claro que não era mero ponto, e sim uma esfera azul. Como sempre acontecia todo ano, o planeta Terra passaria rasante à estação espacial, sua superfície a pouco menos de 100 quilômetros de distância (altura órbital original da estação espacial) e depois começaria a se afastar novamente, continuando sua translação em torno do sol central. Momentaneamente a gravidade da terra ficaria bem maior que a pequena gravidade solar, devido à proximidade, e por breves instantes seríamos atraídos para o "teto" da estação, ou aquela superfície que convencionamos chamar de teto.
Flutuar no espaço? Bem, a gravidade solar ela bem baixa naquela distância de uma unidade astronômica, mas não era nula. Insuficiente para nos prender ao chão metãlico, e este era o motivo de todos usarem botas magnéticas. Numa região de curvatura gravitacional, a famosa sensação de imponderabilidade só vale para corpos soltos no espaço sujeitos apenas às acelerações da gravidade. A estação em questão não estava livre, mas fixa numa posição em relação ao centro do sistema solar. Poderíamos dizer que ela estava "ancorada" a um veículo tetradimensional mantido "imóvel" em relação ao Sol, acompanhando-o em seu movimento em relação às estrelas próximas e, o mais importante, acompanhando-o enquanto ele se afastava do centro original de nosso Big Bang.
Interrompi meus devaneios. Os dois seres (agora estava claro para mim que era uma dupla) se materializaram meia hora depois de me deixarem.
- Entendemos agora sua dificuldade. Tentaremos nos expressar por analogias.
Ah! Que alívio! Mesmo sendo um astro-matemático experiente, acostumado a imaginar abstrações dimensionais impossíveis de serem observadas de verdade, entender aquilo na prática era algo totalmente diferente...
- Agradeço sinceramente.
- Entenda que isto nos é complicado. Nós próprios precisamos imaginar mundos pentadimensionais no espaço para tentarmos entender suas dificuldades, e ainda precisamos criar analogias bidimensionais projetando seu mundo tridimensional para tentarmos explicá-las. Alguns conceitos básicos sempre se perdem em tais projeções. As rotações duplas em planos concorrentes, por exemplo: simplesmente não existe nenhuma analogia possível em seu mundo tridimensional que podemos usar para explicá-las...
- Entendo em parte esta idéia, meu amigo... - eles teriam nomes? Resolvi arriscar. - Como vocês se chamam mesmo?
Znontfgrizchvõ-Qzxxohjknblatks compartilharam conciências por um tempo, pensando numa resposta.
- Nossa representação de individualidade?
- Isto mesmo! Um conjunto fonético representando suas individualidades. - arrisquei... - Prazer, eu me chamo Poincaré. Henri Poincaré...
- Nós somos Znontfgrizchvõ-Qzxxohjknblatks quando conjugados mentalmente. Com individualidades separadas, eu sou Znontfgrizchvõ e este é meu companheiro Qzxxohjknblatks. - surge uma esfera azulada brilhante entre as duas massas à minha frente. Seria uma "fatia" de um dedo apontando o segundo ser e atravessando a brana tridimensional naquele exato momento?
- Estas palavras soam estranhas para mim. Nem sei se consigo repeti-las. Têm algum apelido? Um nome curto? - penso um pouco. - Alguns amigos me chamam apenas de Ponki...
As duas massas se expandiram simultâneas. A voz de tom indefinível respondeu.
- Pode me chamar de Zínon, e meu colega de Blatks... Ou Zintks, quando quiser se dirigir a nós dois.
Quanto mais contato, mais surpresas! Cada contato era algo único, impagável! Primeiro, nem imaginava que os seres tetradimensionais pudessem ter nomes! Nunca foi cojitada tal hipótese. Realmente arriscara, dei um chute certeiro ao perguntar. E enfim esta idéia de existir um nome específico para personalidades conjugadas... Que outras surpresar surgiriam?
- É uma honra conhecê-los, Zintks!
Mesmo bem diferentes de nós, ficou claro uma pequena confusão. Confirmada por um novo aparte:
- Se incomoda se mais uma vez o deixássemos sózinho? Será bem mais breve agora...
Pensei em dizer "seu desejo é uma ordem, mestres!". Mas me contive. Não sabia se eles eram capazes de entender comentários irônicos. Bem, certamente compreenderiam! Eles eram incrivelmente inteligentes, e não poderiam ser desprovidos de humor com um cérebro tão privilegiado. Só que talvez, por serem assim tão inteligentes, desprezassem o humor como futilidade, comentários jogados fora, perda de um tempo precioso. Tempo? Sim, eu me arriscaria de novo quando eles retornassem! Aquele encontro estava se mostrando bem revelador, era minha obrigação tentar aproveitar mais dele...
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- Uma honra conhecer nossos nomes? Entende esta importância que eles dão a uma representação banal de diferença de manifestações mentais?
- Parece que a troca de nomes é algo valioso para eles, Znontfgrizchvõ.
- O que uma combinação aleatória de fonemas diz sobre a personalidade que o adota?
- Para eles não é algo aleatório. Está normalmente associado à combinação genética recebida pelos novos seres humanos gerados. Já me citaram várias vezes a expressão "nome de família", embora eu ainda não tenha compreendido bem o conceito.
- Também já ouvi esta expressão algumas vezes. Se incomoda de tomar um tempo ortogonal brevemente, pra eu poder consultar os registros sinápticos de nossos dois cérebros?
- À vontade, amigo! Como diriam os humanos "mi cerebro es su cerebro"! - Henri Poincaré ficaria feliz se pudesse constatar agora que, ao contrário do que ele imaginava, os seres tetradimensionais tinham sim certo senso de humor.
Znontfgrizchvõ, combinando os dois registros sinápticos, chegara a uma conclusão quando Qzxxohjknblatks redespertou sua personalidade no cérebro tetradimensional.
- Parece ser um registro da linhagem genética deles, uma espécie de memória fonética das combinações de DNA pela qual passaram até começarem a "existir".
- O "existir" deles não é igual ao nosso "despertar", se entendi bem...
- Não. Para eles é indissociável. Eles despertam sempre depois de começarem a existir.
- Mas que vida miserável levam estes humanos, meu amigo!
Nenhum dos dois achava justo mesmo seres conscientes e, mesmo que pouco, mas também inteligentes, tivessem que passar por tais limitações.
- Suas personalidades então nunca podem migrar para outros receptáculos orgânicos quando o atual sofre, eventualmente, algum tipo de colapso?
- Seus corpos orgânicos SEMPRE sofrem colapso, meu amigo! Quando seu metabolismo não consegue mais reverter a entropia interna, consumindo a entropia do ambiente, eles sempre morrem.
- Você quer dizer que, além das mortes acidentais, todos acabam colapsando por morte natural?
- Eles são obrigados a seguir a direção do aumento de entropia de seu universo, lembra? - baixou os olhos, também começava a sentir pena dos seres tridimensionais...
- Nossas naturezas são muito diferentes. Incompatíveis! Nunca poderemos resolver seus problemas.
- Podemos pelo menos tentar amenizá-los, amigo!
- Como? Eles seguiriam nossas instruções? Por qual motivo?
- Eles sempre acreditaram no sobrenatural. Em benfeitores supremos capazes de guiá-los na direção correta. Podemos nos aproveitar disto...
- Não fico confortável com a idéia...
- De fato, nós devemos parecer a eles como semi-deuses, ou representantes deles. Nos materializamos em sua brana do "nada", descrevemos um universo multidimensional que eles nunca serão capazes de compreender, mostramos que podemos "desrespeitar" suas leis físicas, fixando um corpo em seu espaço, fazemos alguns não serem mais sujeito à sua inércia, entre tantos outros exemplos que podem ser enumerados... Banal para nós, mas para eles se parecem "milagres".
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Os seres tetradimensionais reapareceram depois de dez minutos exatos. Como eram pontuais! Bem, na verdade estava quase convencido de que tal "pontualidade" era explicável pelo fato deles serem capazes de retornar no ponto em que quisessem de minha linha temporal. Como seria o correr, para eles, de um tempo bidimensional? Era a pergunta entalada em minha garganta... Poderiam eles formular uma analogia compreensível para isto? Ou era uma das inúmeras outras coisas do espaço-tempo hexadimensional (quatro espaciais, duas temporais) que nós nunca seríamos capazes de compreender?
- Ponki! - começou a voz multimodulada, impossível de se distinguir se vinha do grande cubo azulado à minha frente ou do octaedro branco um pouco à direita dele. - Nós, Zínon, Blatks e Zintks também nos sentimos honrados em pronunciar os fonemas determinantes de sua manifestação mental.
Não entendi bem o porquê da expressão tão complexa. Mas estava claro que tentavam ser gentis.
- Zintkis... Ou Zínon e Blatks? Vocês continuam conjugados?
- Sempre que quisermos. E sempre individualizados, se isto te parecer mais confortável para estabelecer contato.
- Façam como quiserem. Nunca conseguirei mesmo entender isto... Sou tridimensional, limitado. "Rastejo" em três dimensões, como já ouvi vocês próprios cochichando... Entendem isto, não é?
Eles não toleravam estas expressões de auto-piedade. Mas toleraram. Bem poderia ser uma interpretação exagerada, distorcida, de ironia.
- Algo que quero saber a bastante tempo: quando nos descobriram? Nos observam a muito tempo? Ou existe algum motivo especial para só agora, em 2112, estabelecerem contato conosco?
Zínon pensou numa resposta, isolado de Blatks. Blatks também participara da decisão, mas as conexões sinápticas relevantes já estavam replicadas no tetracérebro de Zínon. A idéia de replicar informações era explorada ao extremo entre ele: não custa nada fazer cópias, sempre estão surgindo cérebros novos para armazená-las. E nunca se sabe quando uma informação será importante... A melhor decisão é sempre armazenar e replicar todas nas várias redes neurais dos corpos tetradimensionais... Matéria orgânica para isto era o que não faltava no Multiuniverso.
- Ponki, entende que sua pergunta não faz muito sentido para nós, ou não??
De fato, percebi logo o absurdo de minha pergunta. Que, para seres capazes de percorrer livres um plano temporal, com dois tempos ortogonais que eles poderiam combinar como quizessem, a noção de um momento específico numa reta de tempo unidirecional não fazia o mínimo sentido.
- Para descrevermos um ponto específico dentro de nosso plano temporal, um ano, mês, dia, hora, minuto, segundo, milissegundo... qualquer que seja a granulação e precisão que vocês queiram! Para nós, descrever um ponto específico da superfície de nossa esfera temporal, determinar o tempo de nosso espaço tetradimensional, envolve determinar a latitude e longitude temporais daquele ponto específico. E temo que isto esteja completamente fora de vossa capacidade de compreensão. Nenhuma analogia tridimensional é possível. Acredito que até a impossível explicação para vocês de nossa birrotação seria simples perto da tentativa de explicar como percebemos nosso tempo bidimensional...
- Mas... o tempo corre para vocês, não é? Ou não consegiríamos sequem estabelecer contato rudimentar...
Zintkis pensou.
- É diferente de vocês, que são obrigados a acompanhar o tempo determinado pela expansão de sua brana tridimensional.
- Mais detalhes, por favor! Aviso se começar a ficar confuso!
Zínon assumiu a conversa, embora para Ponki isso não fizesse a mínima diferença...
- O plano bidimensional de nosso tempo pode ser representado pela superfície de uma triesfera... ah, desculpe! Por uma esfera de seu espaço. Existe uma analogia sim para o seu "correr" do tempo, que para nós é o resultado da rotação desta esfera. Só que, ao contrário de vocês, esta direção de rotação é apenas uma sugestão. Mais como uma referência comum para nós, já que podemos nos mover por este plano temporal em qualquer direção que desejarmos.
Ele compreendia a idéia. Eu compreendia a idéia... Ele, eu?? Afinal... estou narrando de que ponto de vista? Em primeira ou terceira pessoa?
- Existem então vários tempos correndo em vários "ritmos" diferentes em seu universo? Seria só questão de se moverem para latitudes diferentes para viverem tempos mais lentos ou mais rápidos?
- Mais ou menos, Ponki. A analogia não é perfeita, mas você entendeu a idéia básica. Tentamos ajudar um pouco...
- Vocês estão contactando diretamente meu cérebro? Me surgem idéias que tenho certeza não serem minhas...
- Te incomoda? Estamos tentando sim, mas paramos imediatamente se isto estiver te deixando desconfortável...
- Não, continuem! Só é meio... estranho!
- Nossa brana de tempo é fechada. Tridimensional na verdade, mas vivemos na superfície bidimensional desta esfera de tempo. É por isso que somos capazes de entender em parte sua limitação de movimentos pela superfície bidimensional da esfera de seu planeta. A diferença é que nós vivenciamos isto em escala temporal, e vocês em escala espacial.
Aquilo começava a interessá-lo bastante. Digo, começa a interessar-me bastante... Céus, que confusão é esta? Parecia sair de meu cérebro breves momentos, e me observar de fora? O humano tridimensional começava a ficar mesmo bastante confuso...
- Quer observar seu universo de outra brana? Lamentamos que não vai fazer muito sentido para você, pois sempre vai observar uma projeção limitada da realidade. Mas pode ser interessante.
Ele tremia de medo. O que eu veria se aceitasse aquela proposta? Estaria ele... eu... ah, praga! Não estou preparado para esta comutação de personalidade...
- A palavra final é sua. Quer ver?
A curiosidade foi mais forte. Eu aceitei. E assim o ser tridimensional se aproximou de uma grande superfície esférica, capaz de abrigar seu corpo de cerca de 1,75 metros de altura. Vi a esfera branca começar a abrir num pequeno ponto à sua frente, que se abria lento. Foi quando percebeu que o interior era oco. Sim, ficou claro para mim que aquilo era uma projeção de uma mão fechada no espaço tridimensiona. A criatura tridimensional entrei, meu medo superado pela minha curiosidade. No interior daquela mão tetradimensional, o ser tridimensional fiquei bem preocupado.
- Ele vou ter ar pressurizado ao ser transportado para um espaço tridimensional paralelo?
Como eu sabia que a intenção era esta? Ele não saberia explicar...
- Espaços paralelos são chatos! - explica Zínon. - Branas concorrentes se interceptando num plano são bem mais interessantes.
Ele comecei a sentir um movimento indefinível. Inércia de movimento, sem dúvida, mas não nas direções de aceleração que estávamos acostumados, criando pseudo-gravidades. A aceleração parecia se dirigir ao meu interior da criatura tridimensional, apesar de... todas apontarem o centro de gravidade de meu corpo, e ao mesmo tempo todas tinham a mesma direção. Ele era incapaz de encontrar uma explicação para isso dentro de meu cérebro... E esse maldito trânsito de personalidade! Ele gritei: "Parem com isso, por favor! Ele não estou acostumado a estas comutações mentais! Me deixem ele permanecer em meu próprio cérebro, por favor."
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Henri ficou apavorado quando a esfera começou a se abrir de novo. Morte por despressurização? Que maneira mais ingrata de um astro-matemático morrer, sempre preocupados com tal problema. Mas nada aconteceu. Um orifício enorme se abriu à sua frente, mas a atmosfera interior continuava pressurizada.
- Não há perigo. - tranquilizou Blatks. - O tempo de fora corre muito mais lento que o teu, não existe risco dos átomos de sua atmosfera interior escaparem de dentro. Só tente não sair da secção de hiperesfera...
- Não viu estrelas, nem planetas. Nem galáxias, pois era inclusive possível que estivesse suficientemente distante de alguma a ponto de observá-la de longe. Apenas borrões que lembravam nebulosas em todas as direções, e estruturas geometricamete perfeitas em todos os cantos. Tetraedros translúcidos, cubos, octaedros, dodecaedros... Mas nenhuma estrela, planeta... nada!
- Onde estou?
- Cerca de 20 metros da brana de seu universo, nas numa direção totalmente diferente...
- Vinte metros? - não conseguia imaginar que podia existir um universo tão diferente logo ao lado do seu próprio.
- Na verdade você está vendo uma parte bem limitada no nosso, Henri Poincaré.
Uma luz amarelo pálido vinha de todas as direções para onde ele olhasse.
- Que é esta luz?
- Acreditamos que seja equivalente à radiação cósmica de fundo que surgiu pouco depois do Big Bang de sua brana dimensional.
- Big Bang? Radiação de fundo? Estou observando um universo no estágio inflacionário?
- Sim, resultado de um Big Bang recente.
- Mas... tão perto de nosso Universo, e nunca percebemos?
Os seres se divertiam um pouco com a perplexidade de Poincaré.
- Duas branas tridimensionais concorrentes se interceptam apenas num plano que vocês mal seriam capazes de observar. Não se espante assim pelo fato de uma não interagir com a outra, isto ocorre o tempo todo! Milhares de universos tridimensionais por segundo começam a se expandir próximos ao de vocês, e nunca foram capazes de notar que acontecia. Mas agora... olhe para cima. É onde passa o plano comum aos dois universos. Reconhece algo?
Um disco brilhante aparecia naquele céu estranho. Bordas bem amarelas, se tornando branco à medida em que se aproximavam do centro. Mas, no centro mesmo, uma mancha negra. Poincaré arriscou:
- Este é... nosso Sol?
- A fatia dele que agora atravessa o plano comum às branas tridimensionais. Você está vendo sua estrela "por dentro".
Era mesmo inacreditável.
- O centro está apagado!
- Na verdade, é a parte mais brilhante dela! Infelizmente emite luz num espectro que seus olhos não conseguem captar...
- Isto é incrível! Poderiamos usar isto para estudar o interior de buracos negros.
Zintks ficou sério.
- É o que nos levou até você, Ponki! Para avisá-los: não façam isto! Vocês não podem!
Era a primeira vez que se ouvia uma proibição dos seres tetradimensionais. E parecia ser algo bem grave!
- Existe um motivo bem forte para que existam horizontes de eventos ao redor dos buracos negros. É para proteger seu interior, impedir que sejam observados.
- Poderíamos vê-los com segurança se ele fosse atravessado por um plano comum a duas branas tridimensionais. Da mesma maneira que estou vendo agora o interior do sol...
Zínon agora assumiu a conversa. Sério, reforçou a proibição!
- Não conte conosco para isso. Não vamos ajudá-los neste caso.
- De qualquer forma, ainda existem as Singularidades Nuas, não é? Buracos Negros que não são cobertos por um horizonte de eventos...
- Esqueça as Singularidades Nuas! - e pela primeira vez Ponki sentiu um tom de ameaça naqueles seres.
A "mão" tetradimensional começou a se fechar novamente.
- Ponki, achamos que já é hora de o levarmos de volta à sua brana...
Novamente foram percorridos os 20 metros que separavam os dois universos. Sozinho na estação espacial, com a Terra brilhando lá fora, Poincaré ficou meditando, tentando entender qual fôra o comentário infeliz que deixara os seres tetradimensionais tão furiosos...
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- Como foi mesmo que você percebeu que eles existiam?
- Nas minhas viagens, subindo e descendo latitudes temporais. Quando se faz isso meia dúzia de vezes, é difícil mesmo perceber a diferença. Mas quando isto se torna constante, fica claro que aquela latitude temporal específica muda rápido! Independente das vizinhas!
- Mudanças numa brana tridimensional, que mal possuem hipervolume...
- Sempre interferem! Pode ser bem achatada, mas sempre existe uma tênue manifestação nas bordas tetradimensionais vizinhas. No começo você pensa que são clarões ópticos espontâneos das hiper retinas, ruídos eletromagnéticos... Mas quando se percebe que sempre acontece ao cruzar aquela latitute temporal específica você começa a desconfiar que existe algo diferente.
- Sim, muitos de nós têm medo de se aproximar demais dos pólos da esfera temporal por causa das lendas antigas, da singularidade do tempo zero, do medo de estar numa região onde o tempo simplesmente não avança... Continuaríamos capazes de decidir algo nestes dois pontos, polos norte e sul, ou nossa consciência congelaria?
Zínon se abriu, mesmo sabendo que Blatks ficaria perplexo.
- Já estive no pólo norte temporal. Nada aconteceu... Nada, meu amigo! Todos esses supersticiosos se esquecem que o polo é um simples ponto sem dimensões na superfície da esfera temporal. Nem mesmo um neurônio seria afetado pelo congelamento do momento de rotação. No máximo um ponto impossível de se isolar dentro de tal neurônio, que não faria diferença alguma.
- Mas... é estranho um tempo correndo em velocidade tão lenta, não é? Quer dizer, a diferença de velocidade de processamento entre neurônios centrais, próximos ao polo, e os periféricos, devem ter causado uma sensação estranhíssima.
- Sim, foi estranho! Acredito, pelas descrições, que foi algo similar, a nível tetradimensional, às experiências que alguns humanos me descreveram com o ácido lissérgico... A percepção simultânea de várias escalas de tempo, nosso cérebro tentando encontrar uma explicação coerente para isso...
O amigo ainda estava preocupado.
- Não acho recomendável repetir isto. Não pelo colapso do corpo, pois você sempre poderia tentar despertar em um novo. Falo de um colapso da personalidade.
- Perder definitivamente a capacidade de transmigração? Morrer? - e a palavra obscena ressurgia. - É nisto que você está pensando?
- Pior do que morrer! Continuar existindo, mas defeituoso! Já ouvi histórias de mentes remodeladas com falhas irreversíveis. Não adiantava mais transmigar para hospedeiros corporais saudáveis, pois a falha estava na mente, nas personalidades! Casos raros em que seria até melhor (me desculpe voltar a este termo) deixar de existir...
Ele entendia a preocupação. Lógicamente não parecia perigoso. Mas a lógica poderia falhar. Conhecia exemplos clássicos! Acataria a recomendação do amigo, e não mais tentaria chegar a nenhum dos dois polos temporais...
- 87.5 graus norte... nunca me esquecerei deste ângulo de latitude... Uma Civilização Tridimensional? Seguindo um tempo unidirecional e de sentido único? Ocupando uma fatia pequena e limitada de nosso hiperplaneta azul? Quem poderia imaginar algo assim tão fora de qualquer lógica?
- Você voltou várias vezes naquela região tentando focalizar aquela brana, não é?
- Não pude evitar: eu precisava ver aquilo!!! Mas como???
- Tentando fazer os três olhos ficarem "coplanares" ao subespaço tridimensional...
- Exato! Poderia ao menos ver extensões daquele mundo, objetos tridimensionais "alongados" na quarta dimensão, uma ilusão de ótica. Mas já podia tentar estabelecer algum contato...
Havia um detalhe naquilo que o amigo não entendia. Uma razão que o companheiro parecia relutar em revelar.
- Me permite uma conjugação mental, amigo? Você pode permanecer desperto. Quero entender um motivo que você tenta esconder de mim...
- Não estou escondendo, amigo. Só acho que não compreenderia... Faça-o agora, minha rede neural está aberta...
Ele vasculhou lembranças e razões. Sim, era o que ele imaginava.
- Você acredita ser uma ordem superior, não é? Recebeu uma revelação, uma iluminação mística...
- Os humanos estavam começando a estudar em detalhes um buraco negro próximo, enviar sondas...
- ...e terminar de desnudar Singularidades Nuas. É o que te deixou aflito, não é?
O amigo confirmou com seus três olhos...
- Você acredita mesmo que recebeu uma ordem dEle... Apesar de todos os Teoremas e Corolários de nossos estudiosos de que Ele não existe...
- A ordem era clara, amigo! Esquecemos algo importante nas provas, mas Ele existe sim! E me disse que os seres tridimensionais pretendiam desnudar de uma vez as Singularidades Nuas. Pediu que os instruísse, que tentasse convencê-los a não faze-lo.
- Ele.... Amigo, use seu cérebro tetradimensional! Quem você acha que é Ele???
Znontfgrizchvõ meditou. Não durante um grande "período" de tempo, como imaginariam humanos limitados. Mas durante uma grande "área de tempo". Cheio de coragem, concluiu:
- Ele, o ser dodecadimensional e atemporal que criou e continua criando todos os Multiuniversos, estruturas multidimensionais e criaturas de variadas dimensões que nele vivem...
*** FIM ***
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