Ainda bem adolescente a idéia surgiu pela primeira vez em sua cabeça, idéia esta que o acompanharia e cresceria cada vez mais em detalhes durante o resto de sua vida. Junto com sua turma de colégio, ele acompanhava uma visita monitorada ao Museu de Anatomia Humana.
As peças humanas à mostra lhe despertaram muito pouco interesse na ocasião. O monitor ia explicando aos alunos o que era cada uma delas: um cérebro humano, o sistema coração-pulmão, um feto de poucas semanas de gestação... Os colegas faziam arruaça, alguns tentavam demonstrar coragem e chegavam mais perto para impressionar as garotas, outros faziam piadinhas mas claramente para tentar disfarçar o nervosismo de estarem vendo seres humanos tão expostos daquela forma. Um ou dois demostravam interesse especial, provavelmente, quem sabe, futuros médicos descobrindo naquele exato momento a grande vocação de suas vidas. Mas para ele era diferente, aquelas peças humanas boiando em vidros cheios de formol despertavam pouco interesse, pareciam meio que... Como ele poderia dizer? Meio mortas... Mas algo num dos cantos do laboratório lhe chamou a atenção de uma forma incontrolável, e ele acabou se afastando da turma para ver aquilo mais de perto.
Lá estava ela! Escostada na parede, observando aquele grupo de adolescentes que visitavam o laboratório de anatomia. Estática, com um olhar profundo, formas perfeitas, sorrindo para todos com sua dentadura de brancura impecável, lá estava a caveira de laboratório! Pensou em tocá-la. Deveria? Era permitido? Proibido? Tocou meio que sem pensar na omoplata esquerda da caveira à sua frente.
- É verdadeira, menino! - explicou o monitor se aproximando dele. - Não é daquelas réplicas de plástico ou porcelana que costumam vender por aí...
- Sabe quem era este aqui?
- Difícil saber. É muito comum que os doadores queiram permanecer anônimos. Normalmente para poupar a família, entende? Dificilmente alguém ficaria confortável com a idéia de ver em pé na sua frente os ossos do pai, do filho, do irmão, esposa...
O garoto estava fascinado pela caveira. Que ossos lisos, perfeitos! Simetria bilateral quase impecável!
- Mas dá para concluir algumas coisas. Era um adulto pela estatura. - continuou o monitor, enquanto o resto da turma também começava a se juntar em torno da caveira. - Diria que foi de um homem entre 35 e 40 anos.
Metade da turma, ouvindo tal afirmação, baixou o olhar para um ponto vazio logo abaixo da cintura da caveira. Depois de uns risinhos constrangidos e olhares desviados para vários "nadas" em várias direções, o monitor completa tentando aliviar aquele breve momento de tensão dos adolescentes:
- Bom, não foi exatamente isto que procurei para chegar à minha conclusão - abre um sorriso cordial -, mas sem querer vocês olharam para a direção certa mesmo.
- Ah, vamos ver logo a sala dos crimes! -berrou um adolescente um pouco mais velho que o resto da turma, provavelmente um repetente, tentando mostrar valentia - Não vejo graça nesta caveira velha encostada aí na parede...
Aparentemente a maioria da turma compartilhava de sua opinião, pois começaram a se afastar quase que num bloco compacto de gente. Algumas garotas e um rapaz bem mirradinho aproveitaram a ocasião para perguntar ao professor, que também aconpanhava a visita, se podiam ser dispensados desta parte do programa. Bom, ele não podia obrigar ninguém, muito menos estes que mal deixaram de ser criaças, a ver cenas tão fortes. Consentiu sem criar obstáculos. Mas aquele garoto continuou lá, admirando a caveira. O monitor pensou em chamá-lo, para ver outras partes igualmente interessantes do museu. Mas vendo o interesse genuíno do garoto obsevando a caveira em pé naquele canto do laboratório, pensou: "Que mal há? Vou deixar ele aí! Quem sabe esteja nascendo neste instante um brilhante ortopedista..."
Ele ficou vários minutos observando a caveira, mas que já lhe pareciam horas. Estaria ele imaginando coisas, ou o sorriso da caveira parecia agora bem mais aberto, de uma simpatia sem tamanho? E por que lhe parecia que aquelas órbitas oculares vazias estavam olhando bem dentro de seus olhos? Um convite, sem dúvida. Era ainda bem jovem, mas aquela caveira havia apontado um sentido para sua vida!
É difícil com tão pouca idade descobrir um objetivo para seu futuro, aquilo que deseja fazer durante toda a vida adulta. Alguns querem ser médicos, outros advogados, outros engenheiros... Muitos acabam nem conseguindo se decidir, e passam o tempo tentando várias áreas diferentes, esperando aquela que lhes faz se sentir melhor. Nesta idade de sonhos, também é comum os que querem ser jogadores de futebol, ou mesmo astronautas. Mas ele já estava decidido. O objetivo de sua vida havia sido revelado naquele exato momento, era um desperdício de tempo tentar procurar outras coisas. Era fato, ele já sabia qual era o objetivo maior de sua vida daqui para frente: ele também queria se tornar caveira de laboratório!
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Ele queria se tornar uma caveira bonita, tão ou mais perfeira que aquela sua musa inspiradora. Para isto ele se cuidava, nunca se interessou por aquelas brincadeiras típicas dos garotos de sua idade, jogar bola, andar de skate... Não, ele cuidava muito bem de sua própria caveira, não poderia correr o risco de sofrer qualquer fratura e com isto aparecer como uma caveira defeituosa, cheia de cicatrizes dos pedaços de ossos recalcificados. Mas mesmo com todo este cuidado, parecia nunca sair do setor de ortopedia do hospital mais próximo.
À primeira vista parece difícil imaginar como é que um rapaz tão zeloso para com seus ossos aparecesse tanto na ortopedia do hospital, se queixando de dores, aflito com possíveis fraturas. Mas é facil de entender o comportamento quando se descobre que ele fingias estas dores. É claro que ele nunca iria colocar seu precioso esqueleto em risco, mas ele inventava essas dores insuportáveis porque adorava observar seus ossos nas chapas de radiografia! Uma "torção no pulso" lhe permitiu obter uma bela foto de sua mão esquerda, o carpo, o metacarpo, parte do rádio... Uma queda simulada da cadeira lhe proporciou uma bela chapa da bacia. Uma chapa da coluna inteira era uma de suas preciosidades, mas não havia dúvida de qual era a sua favorita: era a de seu cranio sorridente, bela dentição ainda incompleta à mostra (os cisos ainda não haviam se apresentado totalmente), chapa que havia sido resultado de uma violenta "dor de cabeça" que deixara seus pais muito preocupados. Ele lamentava muito tê-los deixado tão aflitos, mas... ele realmente precisava saber com que rosto se mostraria depois que estivesse em pé, num dos cantos de algum laboratório de anatomia! Gostou do que viu. Ele daria uma caveira manífica!
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Houve um período em que ele parou de comer. Recusava qualquer alimento, não queria acumular gorduras de forma alguma. Já não lhe satisfazia mais olhar suas radiografias, e a magreza conseguia esticar sua pele o suficiente para pelo menos poder observar certos detalhes de seus ossos ao vivo. Na escola tinha até ganhado o apelido de "caveirinha", que ao contrário de desagradá-lo (certamente a intençao dos que lhe colocaram tal apelido), ele até gostava. Mas ele ficou muito doente com isto. Muito doente mesmo!
- Rapaz, você está anêmico, e subnutrido!
Os pais acompanhavam aflitos o diagnóstico.
- Ele não come, doutor! Já tentamos de tudo!
O doutor olhava o garoto, mas com muita dificuldade conseguia esconder sua raiva. Que estava pensando um rapaz bonito como aquele, deixando aflito seus pais? Não passava necessidades, parecia ser muito bem amado... afinal, que raios de problema ele tinha?
- Anemia é doença onde, doutor? - o garoto queria saber.
- Deficiência de ferro no sangue.
- Ah, no sangue... - pensou naquele líquido vermelho que percorria seu corpo, e que sempre fazia uma sujeira danada quando derramado.
- Vou te passar um fortificante, mas... Você tem que comer, moleque!!! Que idéia é essa? Quer virar faquir?
- Não quero ficar gordo. - explicou. "A gordura esconde os ossos", pensou em completar. Mas não, o médico não entenderia este seu argumento.
Seria o caso de encaminhar o moleque a um psicólogo? Os exames não mostravam nenhum motivo objetivo para o garoto se recusar a comer, de modo que o problema provavelmente devia estar na cabeça dele. Fugia da sua especialidade.
- Você está bem fraco, músculos atrofiados demais para sua idade...
"Os musculos também escondem os ossos", foi o que ele pensou.
- ...fraqueza, apatia... Com esta sua aparência você não deve ser tão popular assim na escola, não é? Me refiro às garotas! Tem namorada?
Não, definitamente ele não queria outra caveira ao seu lado no laboratório, disputando atenções com ele.
- Na escola me chamam de "caveirinha". - comentou orgulhoso.
- Caveirinha, caveirinha... tá bom! - o médico examina uma chapa radiográfica. - Estou vendo começo de descalcificações aqui na tíbia. Se você insistir com esta besteira, acho que não vai sobrar nem "caveirinha" nenhuma para contar a história.
Aquilo bastou para que ele entrasse em pânico. Que grande idiota!! Como é que ele nunca imaginou que aquela obsessão por magreza poderia também estar afetando seus ossos? O médico ficou satisfeito em ver que aquele seu comentário tinha surtido efeito, muito embora o motivo que ele imaginava estivesse totalmente errado.
Ao sair do consultório, abraçou os pais aos prantos:
- Pai, mãe! Desculpa! Não vou mais fazer isto. Vou mudar.
Deste dia em diante passou a se cuidar de verdade. Passou até a se exercitar mais, obviamente tomando todos os cuidados possíveis para evitar acidentes: capacete, cotoveleira, joelheira, tornozeleira... todo este acessório passou a fazer parte de seu dia a dia. Com o passar do tempo ele acabou perdendo o apelido de "caveirinha", passou a não fazer mais sentido. Mas ganhou outro: "robocop"! Ele não se importava com isto. Tudo o que ele não qeria de jeito nenhum era se apresentar como uma caveirinha raquítica pendurada num canto de seu futuro lar-laboratório.
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Com vinte e cinco anos de idade, a idéia só foi crescendo em sua cabeça, ganhando conteúdo, se enriquecendo de detalhes. Fazia check-ups regulares, não necessariamente preocupado com sua saúde, mas sim com o bom estado de seu esqueleto. Conhecia de cor os vários métodos existentes para se descarnar um cadaver, deixar os ossos à mostra com o mínimo de danos, maneiras de secá-los e conservá-los, e enfim a montagem final do esqueleto completo. Mas, ao contrário do que se podia esperar, não ingressou no ramo da medicina. Seu interesse estava focado neste aspecto dos ossos em particular. Todo o restante da área médica lhe parecia maçante.
Estava ansioso para ver o resultado final do que encomendara para um amigo, técnico em tomografia. Chegara no laboratório dele uma daquelas caríssimas impressoras tridimensionais! Já havia visto suas tomografias em 3d várias vezes na tela do computador, mas poder segurar uma réplica perfeita de seu próprio crânio era demais! Não conseguia se segurar de tanta exitação, e apertou os passos.
Em princípio o funcionamento de uma impressora 3d é bem parecido com o de uma impressora laser: o feixe luminoso cria cargas elétricas no papel com as configurações dos desenhos e caracteres que se quer imprimir, depois um toner com carga oposta é atraído para estas áreas e fixado por calor na superfície do papel. A impressora 3d faz mais ou menos isso, mas ao invés de fazê-lo numa camada de papel, a faz sobre a camada de "toner" anterior, repetindo o processo várias vezes, para as várias fatias do objeto tridimensional que se deseja "imprimir". Seu amigo havia tirado uma tomografia completa do seu crânio, isolado os ossos via software e, agora, podia imprimir este objeto na impressora tridimensional.
O "toner" da impressora era meio azulado, de forma que o crânio impresso não parecia muito realista. Mas os detalhes eram impressionantes, isto ele não podia negar! Uma cachoeira de lágrimas escorria pela sua face, contemplando aquele seu sósia artificial. Agora que tinha uma boa idéia de como ficaria sua caveira, não conseguia mais se segurar de tanta impaciência...
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Qual o órgão mais importante do corpo humano? Muitos dirão que é o cérebro, centro de todos os sentidos, de todo o controle, de nossa capacidade racional. Morte cerebral inclusive é considerado diagnóstico final para o ser humano: todo o resto do corpo pode continuar funcionando perfeitamente, via meios artificiais capazes de substituir funções que o cérebro não pode mair exercer. Mas se o cérebro morre, a pessoa morre.
Alguns românticos diriam que o coração é o órgão mais importante, centro de nossas emoções, amores, prazeres... Grande tolice dizem estas pessoas! Se elas consideram que o mais importante na vida é a capacidade de amar, sentir prazer, enfim, se sentir bem, deveriam mencionar o Sistema Límbico, que também fica dentro da cabeça como o cérebro! Na verdade, fica bem no meio do cérebro. O coração é só uma bomba muscular, não é com ele que amamos ou sentimos os prazeres da vida. Só o que ele sabe fazer é bombear sangue sem parar pelo nosso corpo.
Chefs de cozinha, gourmets e, obviamente, todos aqueles que apreciam um bom prato, talvez digam que o estômago é nosso órgão mais importante. Comedores compulsivos (não de comida, fique bem claro!) talvez apontem para a braguilha de suas calças e digam orgulhosos: "Tá aqui o meu órgão mais importante!!" Profissionais da area médica dirão: "Que besteira, todos são importantes!! É um Sistema, não dá para separar."
Mas nosso rapaz, agora um homem de seus 35 anos, não pensava desta forma. Parecia para ele razoável medir a importancia de um órgão através de sua durabilidade. Cérebro, estômago, coração, genitálias... quanto tempo dura tudo isto depois que o indivíduo morre? Meses? Anos, na melhor das hipóteses? Tudo vira comida de verme. Que sentido existe em criar frágeis estes órgão tão "importantes"? Mas com os ossos era diferente! Eles foram feitos para durar muito, mesmo desprotegidos, enterrados so várias camadas de terra. Por exemplo, por que sabemos que a milhões de anos atrás répteis gigantescos andavam pelo planeta? Porque encontramos seus cérebros, seus corações? Nada disso, só sabemos que eles existiram porque seus ESQUELETOS sobreviveram até hoje. Este sim é o órgão mais importante do corpo!
A um bom tempo ele já tinha se convencido que todos os demais tecidos do corpo existiam com a única e exclusiva finalidade de servir ao esqueleto. Por favor, não me venham com aquela velha piadinha: "Qual a função do esqueleto? Destruir o HE-MAN!!" Os tendões mantinham os ossos coesos, os músculos só existiam para lhes dar movimento, o sistema digestivo e circulatório digeriam e distribuiam matéria prima para os reparos constantes, a pele servia apenas para proteger o esqueleto das intempéries externas... Até mesmo o cérebro servia ao bem estar do esqueleto: era o que observava o ambiente por possíveis ameaças e comandava os músculos a moverem o esqueleto, procurando por um abrigo seguro no qual os ossos não poderiam ser danificados. Sem sobra de dúvida tudo girava em torno deste grande órgão, o mais importante do corpo. Todo o resto era acessório...
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A idade avançava. Meio século! Era muito tempo mesmo! Ele possuía um sistema esquelético invejável comparado à população média de mesma faixa etária, havia se cuidado muito bem. Na verdade cuidado de seus ossos: o fato disto lhe proporcionar também uma boa saúde não passava de um "efeito colateral". Mas a velhice é cruel, e ele sabia muito bem que com o tempo ele não seria capaz de manter tudo sob controle como gostaria.
A osteosporose era seu grande pesadelo! Inevitável com a idade, controlável talvez. Mas, em maior ou menor grau, todo mundo acaba tendo. Uns mais cedo, outros mais tarde. Normalmente dá para conviver com ela sem muito sofrimento, mas para ele o problema era mais sério! Imaginar seus ossos enfraquecendo, se enchendo de buracos, parecendo uma esponja? Ele, cujo maior desejo na vida era de tornar uma bela caveira de laboratório? Lembrou-se de sua visita ao Museu de Anatomia: quantos anos mesmo o monitor disse que tinha aquela caveira? Entre 35 e 40? Ele acabara de completar 50, estava perdendo tempo!!! Precisava tomar uma providência drástica!
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Aquele homem nunca havia conseguido se formar em medicina, apesar de todo seu conhecimento. Nem poderia, ele simplesmente não possuía ética nenhuma! Exercia ilegalmente. Do ponto de vista puramente técnico, era um exelente profissional! Neurologia, cardiologia, oncologia... poderia se dizer que ele dominava tudo! E o fato de sua clínica, bem escondida por sinal, ser clandestina, não o impedia de colocar nela os melhores equipamentos, de mantê-la impecavelmente esterelizada, e nem desvalorizava sua competência como profissional. Ele era um bom médico, mas só sobrava para ele, como tinha de ser, aqueles casos que não podiam ser tratados em lugar algum sem violar a lei.
Por favor, não confundam a ilegalidade de sua atividade com desumanidade. Ele seria incapaz de inflingir qualquer tipo de sofrimento a qualquer pessoa que fosse. Os pacientes do falso médico sabiam que ele era falso médico, e só o procuravam em situação extrema mesmo! Via de regra, todos se espantavam com a complexidade de sua clínica ilegal, a higiene, qualidade dos equipamentos, todos de ponta. Incapaz de imaginar que existia tudo isto detrás daquela portinha insignificante. Por ser em grande parte subterrâneo, até que não era muito difícil mesmo esconder.
Durante certo período muito de seus pacientes procuravam mesmo pela eutanásia. Pessoas desiludidas, sem perspectiva de cura. A maioria sentenciada a uma morte cruel e dolorosa à sua frente, sem possibilidade de melhora, nehuma esperança. Procuravam o tal "doutor" para acabar logo com seu sofrimento, na certeza de que ele saberia fazê-lo da forma mais indolor possível. Pagavam por isso, ele aceitava. Sim, ele realmente não tinha um pingo de ética! Mas por mais antiético que fosse, não conseguia acreditar no que pedia o senhor de meia idade sentado na cadeira à sua frente, de porte atlético:
- Eu entendi bem? O senhor quer, em condições impecáveis de saúde, ser descarnado para que os ossos sejam aproveitados num esqueleto de laboratório?
- Tenho aqui várias técnicas, e particularmente prefiro esta aqui. - aponta uma página de seu bloco de anotações.
Não podia acreditar no que ouvia. Em três décadas de exercício ilegal da medicina havia passeado pelas áreas da cardiologia, neurologia, ortopedia,... enfim, o que aparecesse pela frente, sendo bem pago, ele sabia, ou estava muito disposto a aprender. Mas nunca lhe ocorreu imaginar que algum dia ele também passaria pela psiquiatria. Sim, porque aquele senhor sentado na sua frente era, sem sombra de dúvidas, um paciente psiquiátrico!
- Alguma doença terminal? Pode se abrir comigo! Nem preciso lembrar que esta conversa deve permanecer entre nós, mas já supervisionei sim vários casos de eutanásia. Por favor, sinta-se à vontade em se abrir comigo! Não vejo como suicídio o fato de se tentar abreviar, de modo indolor, uma morte inevitável e sofrida.
- Estou plenamente saudável, doutor! Posso te chamar assim, não é?
- Sim sim, vê-se pela aparência! Bem saudável para um homem de seus... Quantos anos? 40?
- Cinquenta!
- Não aparenta! Realmente não aparenta!
- Eu me cuido.
- Então que loucura é esta? Saudável, com vários anos de vida pela frente...
- É a hora certa. Daqui para frente, começa a deteriorar.
- Deteriorar o quê?
- O esqueleto, doutor! Minha caveira! É o momento exato de separá-la dos tecidos moles de meu corpo, da parte corrompível! Não quero virar uma caveira gasta escostada num canto...
"Deus do céu!!! O caso é mais grave do que eu pensava!! Este homem precisa de ajuda. Nem eu seria capaz de arcar com este desatino..."
- Economizei a vida inteira para isto. Sabia que nunca conseguiria fazer isto de maneira legal, por isso te procurei. Soube da sua competência, profissionalismo.
- Não senhor, não posso fazer isso. Não sou assassino, nenhum dinheiro no mundo me convenceria...
Um cheque volumoso é preenchido. O falso doutor fica impressionado com a quantidade de zeros que vê escrito nele.
- Por favor, meu senhor! Já disse que não faço isto! - além disso, pensou, ele podia ter escrito o que quisesse naquele cheque. Quem garante que tem fundo? Aquele lunático sentado à sua frente?
A relutância estava prevista já, bem como a desconfiança daquele valor volumoso que ele estava disposto a pagar. "Na verdade", pensou, "uma mixaria diante da possibilidade de concretizar o objetivo de minha vida." Foi por isto que teve a feliz idéia de trazer dentro do sobretudo as tais barras de ouro. Delas, não daria para duvidar!
- Voltando àquela técnica que citei, doutor, acredito que este ácido seja o mais indicado para remoção completa das cartilagens sem maiores danos ao osso. Para o cálcio dos ossos tal substância é praticamente inerte, como provou o famoso Dr. ...
Já não ouvia. O brilho das barras de ouro à sua frente ofuscavam sua audição, numa insólita experiência de sinestesia... "Raios, ele vai fazer isto de qualquer jeito mesmo! Se eu recusar, ele vai procurar outro. Tanto faz, se esse doido quer se matar, eu ajudo."
- Para quando você quer marcar esta sua... hããã... cirurgia?
- O quanto antes, doutor! Meu fêmur direito já começa a apresentar pequenos sinais de osteosporose! Quanto antes eu interromper meu metabolismo, melhor!
Passaram a discutir os detalhes. Ele já sabia até em qual laboratório ficaria exposto seu esqueleto! Estava profundamente emocionado, seu sonho se realizava! O médico se comprometeu a seguir à risca todas aquelas intruções. "Tem parentes vivos? Amigos? Alguém vai te procurar" Ele tranquilizou o falso doutor, já havia tomado todas as proviências necessárias! Nenhum aborrecimento ele teria. Tudo com o que ele precisava se preocupar era em fazer bem seu trabalho, como confiava que o faria. "Com esse ouro todo eu sou capaz até de... não isso não." Pensa melhor. "Talvez até cojitasse esta possibilidade...", admite finalmente.
Estava tudo acertado para o final de semana. O "doutor" desmarcaria todos os compromissos, deveria se concentrar no trabalho de separar os ossos e montar o belo esqueleto, uma caveira límpida, polida, alva. O laboratório já aguardava a encomenda. O anonimato nestas doações era praxe, ninguém nunca fazia perguntas. Eles só não podiam imaginar era que o doador ainda estava vivo, e ele próprio é quem estava intermediando o envio do próprio esquleto ao laboratório. Mas é obvio que ninguém, nem com toda a imaginação do mundo, seria capaz de imaginar um absuro de tais proporções. Para eles, bastava saber que um doador, declarando em vida o desejo de dispor de seus restos mortais em benefício da ciência, estava apto a ter seus ossos montados num esqueleto de laboratório. Se ele ainda estava vivo? Bom, ninguém em sã consciência teria imaginado esta possibilidade, não é?
-Só mais uma coisa, doutor.
- Sim?
- Existe alguma possibilidade de que eu, bom, pelo menos no início do processo... Bom, não pude deixar de ver sua farmácia, não é? Morfina, quetamina... admirável.
O "doutor" tinha até medo do que estava prestes a ouvir.
- Prossiga, por favor.
- Bom, tem esta farmacopéia toda para tirar a dor, não é? Alterar o estado de consciência... Não é essa tal de quetamina que era conhecida como "droga dos zumbis", ou estou enganado?
"Ele é louco mesmo! Por favor, não diga o que estou pensando! Não diga o que estou pensando! Por Deus, NÃO DIGA!!!!"
- Será que, pelo menos no começo da minha metamorfose...
"Pelo amor de Deus!! Não me peça isto!!!"
- Teria como me manter consciente? Pelo menos até que eu possa ver meu verdadeiro rosto no espelho?
- SAI DAQUI, SEU MALUCO!! FORA!! FORA!!!
Ele havia previsto também esta explosão. Por isto pegou sua maleta, quase na porta de saída, e abriu diante dos olhos incrédulos do doutor.
- Pago bem por este adicional, ou qualquer constrangimento que isto possa te causar!
O falso doutor nunca havia visto tanto diamante junto em sua vida. Sejamos honestos, na verdade ele nunca havia visto diamante nenhum em sua vida, muito menos naquela quantidade toda!
- Esteja aqui no sábado. O procedimento começa às 4 da manhã!!
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O sonho de uma vida se concretizando! Medo? De forma alguma, ele estava radiante!!! O bom doutor achou melhor que não houvesse nenhuma outra testemunha, faria tudo sozinho. Sentiria dor? Difícil, com todo aquele arsenal químico que ele havia visto. Bom, mas ele seria capaz de suportar alguma dor para ter seu sonho realizado, não é? Como costuma se dizer: "No pain, no gain!"
Deitou-se na mesa de operações, e afastou energicamente a máscara com a qual o doutor tentou cobrir seu rosto.
- Você está mesmo disposto a prosseguir com esta loucura, não é?
Ele acenou que sim com a cabeça.
"E se eu só apagar este cara e fugir com a grana?" Não, isto também já estava acertado. De uma forma bastante discreta, até inteligente, o pagamento estava condicionado totalmente com a chegada do esqueleto ao laboratório. Além disso, ele havia sido bem pago para fazer o que ia fazer.
- Vou te administrar uma droga que nunca foi testada. Vai apagar totalmente seus receptores de dor, mas vai te manter consciente. Quer isto mesmo?
- Vai em frente, doutor!!
O efeito foi rápido. O bisturí começou a operação com um preciso corte de uma orelha para a outra, passando por cima da testa. "Não acredito que estou fazendo isto..." A baixa pressão sanguinea induzida evitava sangue em excesso. Ele não queria muita sujeira para limpar depois da operação! O doutor recortou um círculo da pele em torno dos olhos, para poder puxar a pele com mais facilidade. Parecia estar removendo uma máscara. Cortou a pele ligada à boca, expondo as gengivas e toda a dentadura. Sentiu náuseas, queria parar imediatamente com aquilo! "Nada disso! Vou até o fim!" Tirou enfim a pele do rosto totalmente, deixando uma caveira ensaguentada sorridente no lugar, com os músculos expostos.
- Es'elho, 'or 'a'or!! - conseguiu pronunciar, agora sem os lábios para ajudá-lo a emitir consoantes bilabiais oclusivas e as labiodentais fricativas.
Os movimentos dos músculos bucais expostos que restavam indicavam que ele sorria. Pelo menos parecia tentar fazê-lo.
- Doutor, lim'a 'eus dentes, 'or 'a'or!!
- Como?
- Dentes! Sangue! Quero 'er co'o eles 'ican lim'os...
O doutor atendeu sua vontade. Última vontade. Náo podia mais suportar aquilo.
- Daqui para frente será doloroso! Vou tirar os olhos, cérebro. Entende? Terei de te apagar para continuar.
Ele não estava feliz. Queria ver mais...
- Só 'ais um olho. O direito.
"Não acredito! Que situação surreal!" Mas fez a vontade de seu paciente. Após remover o olho direito, mostrou a ele o resultado no espelho, que ele viu com o olho esquerdo que restava.
- Lindo, doutor! 'uito satis'eito! 'ode 'e a'agar agora, se quiser!
"Graças a Deus!" Aplicou a solução letal no paciente. Estava muito aliviado em poder continuar o procedimento agora num cadáver!
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Os assistentes do laboatório estavam radiantes com a chegada da novidade. "Que bela caveira!" Os ossos brilhavam, perfeitamente polidos. "Ali, naquele canto!".
Curiosos se aglomeravam.
- Quem era?
- Doador anônimo, como sempre!
Chega um rapaz, ansioso em demonstrar seus conhecimentos recém adquiridos de anatomia esquelética.
- Homem. Cerca de 40 anos... - olha melhor. - Não, acho que 50! Mas muito bem conservado!
- Novo, não é? Do que será que morreu?
- Sem sinais de violência, ossos perfeitos. Curioso, aparentemente nenhuma fratura, nenhum tipo de acidente. Seria capaz até de dizer que ele gozava de saúde perfeita quando morreu. Não, mas isto é loucura...
- Deixa pra lá. É um benfeitor. Não importa quem foi, o mais importante é saber que foi alguém disposto a contribuir com a ciência doando seus próprios restos mortais para estudo. Alguém que quis que sua vida continuasse a ter alguma razão se ser mesmo depois de morto.
O sonho de uma vida! Lá estava ele expondo o tesouro tão bem tratado durante cinquenta anos! Agora este tesouro havia sido desenterrado, livre das camadas de pele, músculos e gordura acumuladas sobre ele durante meio século. Suas órbitas vazias observavam o novo lar com satisfação. Sim, dava para ver que havia satisfação em seu rosto, bastava olhar a perfeita e brilhante dentadura sorridente daquela caveira de laboratório!
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