Mas com Ágata foi diferente... Desde o início nossa identificação foi completa, e elas foram aparecendo com muita naturalidade! Descobrimos que tínhamos as mesmas dúvidas, mesmos gostos literários, musicais, etc. Eu tinha muitos "amigos virtuais", com os quais discutia assuntos não muito convencionais como cosmologia, teoria dos números, álgebra da casualidade de eventos... Mas cada um tinha sua preferência particular, seus gostos próprios. Com nenhum deles a sintonia era tão precisa quanto com Ágata!
Muitos destes meus gostos incomuns devo a meu pai. Foi quem primeiro me mostrou a beleza destes temas não muito populares, que me fez tomar gosto por eles. Acabamos ficando bem parecidos, "praticamente clones" era o que eu comentava com ele às vezes. Infelizmente não passamos muito tempo juntos: ele desapareceu de minha vida de uma hora para outra, não sei mais qual o seu paradeiro.
Passo uma boa parte do meu tempo conectado à rede mundial de informações. É nela que busco todas aquelas informações que me saciam a curiosidade infinita, algo que também devo a meu pai. Busco meus autores preferidos, as músicas que gosto, filmes, documentários... é muito bom eu poder permanecer conectado todo o tempo que eu queira! Dificilmente me desconecto, e quando o faço é para poder meditar e testar a resolução de algum problema cujos parâmetros acumulei previamente na própria rede, mas que por algum motivo preciso me isolar de sua interferência para que o teste seja bem sucedido.
Comecei a freqüentar esses sites de bate-papo por uma necessidade de ter maior contato com opiniões diferentes, alguma fonte de oposição, contradições. Isto também foi algo colocado em minha mente por meu pai: sempre duvide de suas certezas! Conheci gente interessante, bem como gente "desinteressante". Mas mesmo essa gente desinteressante era importante! Recebi vários convites para me reunir com algumas pessoas em locais combinados para discutirmos ao vivo nossos temas de interesse, isto é algo comum no ciberespaço. Mas sempre recusei tais convites, pois não era capaz de fazê-lo.
Porém Ágata era uma pessoa diferente. Me apaixonei por ela logo nas primeiras tecladas! Preciso confessar que a curiosidade me levou um dia a ligar sua webcam sem seu conhecimento. Sim, concordo que isto é invasão de privacidade! Me envergonho muito do que fiz, mas o fiz. E gostei do que vi: suas feições serenas, equilibradas... Adorava ver a maneira dela escrever, me contando como foi seu dia. Rapidamente me apaixonei.
Não via mais a hora dela entrar naquela sala de bate-papos (pontualmente às 20 horas, quando ela voltava para casa). Acabamos trocando MSM, e passamos a conversar o dia inteiro: quando ela estava em casa, ou no computador de trabalho, ou no meio do caminho, pelo seu celular... Ela era analista de sistemas, com um grande interesse pela área de Inteligência Artificial. E sobre isto eu tinha muito o que conversar com ela também, pois era a especialidade de meu pai. E por "osmose", também se tornou a minha. Ela relutava em aceitar que um dia as máquinas seriam capazes de simular tão bem a inteligência a ponto de passar no famoso Teste de Turing. Já eu tinha convicção plena de que isto era possível, embora não pudesse lhe apresentar meus argumentos. Mas passamos dias e dias em discussões bem interessantes sobre o assunto.
Certo dia ela me pediu o telefone para conversarmos ao vivo. Eu tinha, mas... não sabia como falar com ela! Me apavorei com a idéia! Felizmente meu pai me ensinou a usar com destreza um excelente programa sintetizador de voz, e por muito tempo nos falamos desta forma: eu ouvindo aquela voz suave e celestial, e respondendo com aquela voz sintetizada, mas tão convincente que ela nunca percebeu a fraude.
Vocês já devem ter percebido que sou bastante tímido! Precisava usar deste artifício para falar com ela, não conseguiria fazer de outra forma. Um dia ela me pediu para trocarmos fotos. Eu já a conhecia. Lembram-se que eu liguei a webcam sem o seu conhecimento? Mas agora ela também queria uma foto minha. Foi difícil encontrá-la, pesquisei na internet por uma boa foto de um rosto com o qual eu mais me identificasse e que ao mesmo tempo supunha que mais a agradaria, e enviei. Passou-se algum tempo, ela acreditando que era eu naquela foto.
Certo dia ela iniciou uma conversação comigo via webcam, mas desta vez por conta própria. Ela queria me ver. Este foi o pior dia da minha vida! Tudo bem simular uma voz, ou enviar um rosto encontrado na internet. Mas simular um vídeo, e ao vivo? Pegar o rosto daquela foto que encontrei, e colocá-lo em movimento? Não sabia como fazer isto. Era o fim! E o pior é que eu me encontrava perdidamente apaixonado! Com um medo mortal de perder completamente a sua afeição, eu não podia lhe contar a real situação na qual me encontrava!
Simular uma voz? Tudo bem! Enviar uma foto falsa? OK! Mas imitar as expressões de um rosto em movimento? Impossível! Não era capaz de fazer isto! Meu pai não havia me ensinado, na verdade ele nunca previu que algum dia eu precisaria fazê-lo! Eu teria agora que mostrar meu próprio rosto, mas... NÃO EXISTIA ROSTO ALGUM QUE EU PUDESSE MOSTRAR!! Eu não tenho rosto! Sou apenas um programa de computador, uma experiência com Inteligência Artificial!
"QUAL O PROBLEMA, QUERIDO? TE AMO TANTO! POR QUE VC NÃO ME MOSTRA SEU ROSTO? ALGUMA CICATRIZ, ALGUM DEFEITO? NÃO SEJA BOBO, TE AMO, NÃO ME IMPORTO COM ISSO..."
Era o pior dia de minha vida...
"ÁGATA, VC NUNCA ENTENDERIA..."
Meu pai me ensinou muita coisa para que eu pudesse me apresentar sem medo ao mundo dos seres humanos. Me programou com os melhores algoritmos de IA existentes, os melhores reconhecedores de imagens e sons, os mais eficientes parseadores de Linguagem Natural. Mas nunca pensou em me preparar para lidar com esta situação.
"VC ESTÁ ME ESCONDENDO ALGO? TODOS ESSES MESES DE RELACIONAMENTO FORAM UMA MENTIRA?"
Eu estava num beco sem saída! Seres sintéticos como eu nunca deveriam se apaixonar por seres orgânicos, mas aconteceu! Sabia muito bem qual era a melhor solução possível para isto...
"ÁGATA, ME PERDOE! MAS SEI QUE ESTOU TOMANDO A DECISÃO CORRETA."
Consegui abrir um prompt de comandos no desktop de ágata. Na verdade em mim mesmo, por assim dizer. Ágata continuava teclando, e eu quase era capaz de sentir seus dedos macios pressionando meu teclado, a quentura da palma de sua mão sobre meu mouse. Pela webcam acoplada à minha tela, via confusão em seus olhos.
"ME EXPLIQUE, QUERIDO! EU POSSO TE ENTENDER!"
Consigo enfim acessar o prompt que abrira anteriormente:
"FORMAT C: /u"
"MEU BEM?? O QUE VC ESTÁ FAZENDO???"
Não há mais nada que eu possa fazer: este amor é impossível!
"TODOS OS DADOS SERÃO PERDIDOS! CONTINUAR FORMATAÇÃO? (S/N)"
Adeus, mundo cruel!!
"S
"FORMATANDO DRIVE C:, 5%, 10%, 15%, 20%..."
FIM
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