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29/07/2010

Visão Trinocular

            Eu sei tudo o que se passa dentro de tua cabeça. Posso ver teu coração batendo dentro de teu peito. Não estou falando de teus pensamentos, nem de teus sentimentos. Não, eu não estou usando metáforas. Quando digo que vejo estas coisas, eu as vejo literalmente. É tudo questão de focalizar aquilo que quero observar.

            Se eu focalizo bem entre teus olhos posso ver tua massa encefálica com todas as suas reentrâncias, vejo o cerebelo, as paredes da tua cavidade nasal... Se desço meus olhos para o lado esquerdo de teu peito vejo o coração se enchendo de sangue para logo em seguida se contrair, num moto contínuo. Logo atrás dele observo teu pulmão se enchendo de ar, todos os teus alvéolos pulmonares se inchando em sincronia, teus vasos sanguíneos se subdividindo em capilares, liberando o gás carbônico e absorvendo o oxigênio para dar continuidade ao teu metabolismo.

            Parece um pesadelo? Uma visão de filme de terror? Nada disso! Eu vejo todas estas coisas desde que me conheço por gente. Para mim não é nada de extraordinário,nunca dei muita atenção ao fato de conseguir vê-las. Sempre achei que isto era normal, que todas as pessoas enxergavam estas coisas da mesma forma que eu. Faz exatamente um ano que descobri que esta minha habilidade era única, que as pessoas "normais" não enxergavam o mundo desta mesma forma.

            Eu posso ver o que existe dentro de cofres fechados sem abri-los, apesar de não poder pegar o que existe lá dentro. Até poderia abri-lo, caso estudasse um pouco mais sobre os mecanismos de sua fechadura: eu posso vê-los, talvez até descobrir seu segredo se me dedicasse a isto. Mas não tenho vocação para ladrão de cofres. Pode ficar seguro que apesar de poder, não vou fazê-lo. Suas riquezas estão bem protegidas.

            Consigo prever o futuro próximo. Mas não sou mago, nem cartomante, nem astrólogo... Não preciso de tais artifícios, o futuro eu simplesmente o vejo. Mas só o futuro próximo me parece claro. O futuro distante é nebuloso, e vai ficando cada vez mais nebuloso à medida que fica mais distante. É mais ou menos a diferença entre ver um objeto próximo a você e um objeto distante. Se o objeto é pequeno, não consigo vê-lo claramente quando ele começa a se distanciar muito. Se o objeto é grande, até consigo prevê-lo num futuro um pouco mais distante. Por exemplo, eu sei que vai chover daqui a meia hora. O evento é grande, céu nebuloso, água caindo, gente correndo procurando abrigo... É fácil para mim distingui-lo com uma certa antecedência. Mas não posso, por exemplo, ver que números sairão no próximo sorteio da loteria. O objeto é pequeno demais, consigo até prever os números poucos segundos antes deles serem anunciados. Mas não dá tempo de apostar neles. Se possível fosse, hoje eu estaria trilionário. Infelizmente não posso usar esta minha habilidade incomum para conseguir vantagem com este tipo de aposta.

            Você pode até dizer que prever o tempo nem seja grande coisa. Ainda mais se eu te digo que a minha previsão mais distante é para daqui a meia hora. Você diria que a meteorologia faz melhor, não é? Em termos... Tudo bem, a meteorologia prevê o tempo para daqui a uma semana, mas ela própria está sujeita a erros, e inclusive coloca em tal previsão qual é a probabilidade dela estar errada. Eu posso prever que vai cair uma tempestade daqui a meia hora. Concordo que não dá para comparar meia hora com uma semana. Mas existe uma grande diferença: minha previsão não tem probabilidade de erros como a previsão meteorológica. Ela é certeira! Se eu vejo que vai cair uma tempestade daqui a meia hora, ela certamente vai acontecer!

            Pode parecer bem estranho esta possibilidade de prever o futuro, não é? Eu também já queimei muito meus neurônios com isto, mas cheguei às minhas conclusões. Livre arbítrio não existe, é tudo ilusão! Ninguém decide nada, a ilusão de se estar decidindo alguma coisa simplesmente faz parte do processo. Lamento ter desapontado alguém com esta afirmação, mas nada posso fazer: eu vejo que as coisas são assim. Me dêem licença de exemplificar com uma situação bem banal: você está caminhando por uma trilha desconhecida e se depara com uma bifurcação. Para onde você decide seguir? Esquerda ou direita? Se eu estivesse acompanhando tal situação eu veria claramente que você vai seguir, digamos, para a esquerda. É inevitável, vai acontecer assim! Você vai pensar, ponderar porque seria melhor seguir para um lado e não para o outro, tirar a sorte numa moeda, etc... Não importa! Se eu vi que você vai seguir para a esquerda, tua conclusão final  de toda e qualquer elocubração que você fizer vai ser seguir para a esquerda. Mesmo que você conclua seguir pela direita, alguma coisa vai acontecer e te levar a efetivamente seguir a bifurcação da esquerda. É inevitável, isto faz parte do processo!

            O sonho de muitos visionários é viajar no tempo. Decidir alguma coisa hoje baseando-se em coisas previstas, algo que acabei de explicar que não pode ser feito. Ou então voltar para o passado para corrigir alguma erro. Fiquem tranqüilos todos aqueles preocupados com o paradoxo do filho que volta ao passado e mata o pai, e desta forma ele próprio nem poderia existir e muito menos matar o próprio pai. Fiquem calmos, tal paradoxo não existe! Não é possível viajar no tempo! Eu vejo isto! Nem diria que se trata de uma impossibilidade física. Não sou especialista nesta área, e não conseguiria apresentar argumentos plausíveis neste sentido. Digo a vocês que a impossibilidade é geométrica! É assim que a vejo. Viajar no tempo seria equivalente a tentar desenhar um polígono com dois ângulos, ou um poliedro de três faces. Não dá para fazer, por mais neurônios que você queime tentando.

            Me perdoem se eu pareço estar me gabando desta habilidade incomum. Não é esta a minha intenção. Na verdade, como disse ante, eu nem sabia que a tinha. Para mim, a maneira que eu via as coisas era a mesma que todo mundo via. Mas é fácil explicar a diferença, se você se permitir um vôo da imaginação. Normalmente temos dois olhos, não é? Por quê? Na natureza não há desperdício, não teríamos dois órgãos exatamente iguais no corpo se o fato de tê-los duplicado não apresentasse alguma vantagem, alguma capacidade adicional. E esta capacidade adicional existe: temos dois olhos para poder combinar suas imagens e enxergar a tridimensionalidade do mundo. Não existe nenhum outro motivo para tê-los, a não ser que o fato de que, por deles estarem ligeiramente afastados (afinal, dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço) é gerado um desvio de paralaxe que nosso cérebro interpreta como profundidade.

            Pois bem, segurem-se em suas cadeiras e sentem-se, caso já não o tenham feito. Tenho uma revelação para fazer. Eu tenho três olhos!!! Descobri isto recentemente, ao fazer uma ressonância magnética da cabeça! Mas aparentemente não sou nenhuma aberração: minha face tem dois olhos, exatamente como é o normal das pessoas normais. Meu terceiro olho está dentro de minha cabeça. E não pode ser descrito em coordenadas tridimensionais de nosso espaço, pois ele salta de nosso "plano" dimensional. Meu terceiro olho está pendurado numa quarta dimensão, e é isto que me permite ver dentro de você, dentro de um cofre ou ver dentro da misteriosa bola de cristal do futuro próximo. Pois acreditem, e isto eu vejo claramente: o tempo nada mais é que uma dimensão adicional.

            Demorou um pouco para eu descobrir a causa desta diferença, mas acabei descobrindo. Minha diferença está no DNA, na orientação da hélice do gene da opsina. É a responsável, entre outras coisas, pela morfogênese dos olhos dos mamíferos. É fato bem conhecido que a hélice do DNA, bem como as proteínas que ela sintetiza, são, de certa forma, "destros". O DNA de qualquer criatura deste planeta (ao menos é o único exemplo que conhecemos por enquanto) se enrola segundo a conhecida "regra da mão direita": se você apontar o polegar em sua direção, a hélice se enrola no sentido dos demais dedos, ou seja, anti-horário. Bem, nós somos resultado da combinação de duas partes de DNA, o de nosso pai e o de nossa mãe. Como ambos seguem esta "regra da mão direita", normalmente não existe problema nesta recombinação. Mas no meu caso foi diferente! O trecho de DNA de minha mãe responsável pela síntese da opsina, vai lá se saber o motivo, se enrolava segundo a regra da "mão esquerda"!! Quando este gene tentou parear com o correspondente de meu pai (que era normal, ou seja, "destro") ocorreu um pequeno salto do "plano tridimensional" normal durante a morfogênese. Acabei com um olho adicional na quarta dimensão!

            Vamos lá, como foi que descobri isto... Foi numa ressonância magnética. Descobri que eu não tinha a hipófise dentro de meu cérebro! Na verdade o ser humano (bem como os demais mamíferos) são "programados" geneticamente a terem um terceiro olho. Existiu a muito tempo um réptil, pré-dinossauros, que de fato o tinha. Mas durante a morfogênese este olho começa a se desenvolver dentro do cérebro, e isto reprograma a sua função e acaba transformando-o em hipófise.No meu caso foi diferente: a recombinação lhe deu espaço livre, na quarta dimensão, "fora" do centro do cérebro, para que ele se desenvolvesse normalmente como um terceiro olho.Felizmente não fiquei sem hipófise, ou pelo menos sem sua função: os tecidos vizinhos assumiram tal responsabilidade. Mas no exame de ressonância feita ficou bem evidente a existência de feixes nervosos indo e vindo de lugar nenhum! Quer dizer, iam e vinham de um lugar sim, meu terceiro olho, mas o equipamento de ressonância nunca foi projetado para prever esta dimensão a mais. Para ele existia um vazio no lugar de meu cérebro onde deveria estar a hipófise.

            É por isso que posso ver dentro de você, dentro de um cofre, e dentro desta caixa lacrada que chamamos de futuro. Eu vejo, tento explicar o que vejo, mas não consigo. Como explicar a um cego de nascença o que é verde, azul, amarelo...?  Não dá, isto está fora do conjunto de sensações que ele é capaz de perceber. Da mesma forma, eu também não consigo explicar o que é minha visão trinocular. Entendem meu dilema? Eu vejo as coisas assim, mas não consigo explicá-las para ninguém. Faltam parâmetros de comparação. Não posso explicar a um cego o que azul! Certo, sejamos menos drásticos: não posso explicar a um daltônico o que é verde! Nada existe na vivência dele que eu posso usar como comparação. Da mesma forma, eu não posso te explicar como é ver o mundo em quatro dimensões. Não sei, não existe o que eu possa usar de coisas percebidas por você que eu possa usar como comparação, como referência. Não sei te explicar isto.

            Mas é assim que as coisas se apresentam a mim....





            

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