Hoje acordei no teto de meu quarto. Quisera eu explicar o que fazia lá, mas não podia. Os móveis se empilhavam no teto em completo caos. Não havia explicação para aquela situação tão inusitada, exceto a de que eu não havia ainda despertado de um estranho pesadelo. E foi com isto em mente que fechei os olhos e tentei adormecer de novo, esperando por uma segunda chance de despertar no meu mundo normal.
Foi inútil! Abri novamente os olhos e o caos era o mesmo. Havia feito uma noite fria, e foi o volume das cobertas que me protegeram do desconforto do chão frio que poderia ter me despertado durante a madrugada. Ou melhor, do teto frio.
Sobre mim estava um colchão, felizmente leve, e sobre o colchão estava a cama, de cabeça para baixo. Felizmente a cabeceira era alta, o que me impediu de ser esmagado por ela. Saí debaixo dela para olhar ao redor. O guarda-roupas tombado à minha frente, a escrivaninha sobre ele, com todos os livros espalhados sobre o que, até a noite anterior, era o meu teto. O criado-mudo obstruindo a parte superior da porta. Ou seria melhor dizer agora, a parte inferior? Nada mais fazia sentido.
Pela fresta da janela via que lá fora já havia amanhecido. Precisava me levantar, encontrar alguém, descobrir o que estava acontecendo. Teria enlouquecido? Não podia ser, me sentia plenamente lúcido. Mas talvez todos os loucos também se sintam plenamente lúcidos dentro de sua loucura.
Tentei acender a luz para observar com mais cuidado a situação, afastando a penumbra em que agora se encontrava o cômodo. O interruptor se encontrava um pouco mais alto que de costume, mas consegui alcançá-lo. Porém em vão, pois a lâmpada, atarrachada no chão à minha frente, não acendeu. Percebi também que não estava ligado o rádio-relógio que ainda pendia na parede lateral, pendurado na tomada. Fui até a janela na intenção de abri-la, acreditando que talvez um pouco mais de ar, junto com a claridade, pudesse esclarecer de vez aquela situação absurda. Foi impossível, ela estava emperrada. Podia ver apenas parte do chão do quintal já bem iluminado olhando para cima, pelas frestas da janela. Olhei para o relógio, que havia encontrado em meio à bagunça que se acumulava pelo teto. Eram sete horas da manhã.
O quarto se encontrava na parte superior da casa (agora inferior) e era o único cômodo com janelas naquele pavimento. Com a janela emperrada, que não cedia apesar de todos os meus esforços, teria se descer (ou seria agora subir?) ao térreo da casa para ter acesso ao exterior. Saí pela porta do quarto em direção ao teto do corredor. Virei para as escadas e só então descobri que, naquela situação tão inusitada, não seria fácil o acesso ao antigo pavimento térreo! Do ponto de vista no qual eu agora observava o mundo, o acesso ao teto do pavimento térreo era muito alto, não conseguiria escalar até ele sem ajuda. Felizmente havia a escrivaninha no quarto, que poderia usar como apoio. Estranho, ela parecia bem mais leve do que eu sempre supus que ela fosse! A levei até o teto da escadaria, encostei na parede e, com este apoio, consegui subir até o teto do pavimento térreo da casa.
Fui à sala de estar, e a situação de caos era ainda pior. Sofá e poltronas, mesa e cadeiras jogados pelo teto, bem como a TV, DVD, aparelho de som, discos... Era estranho eu não ter despertado com o barulho que deveria ter sido produzido com esta confusão toda, até perceber que apesar da bagunça absolutamente nada havia sido quebrado. Parecia ter sido tudo colocado em suas novas posições aleatórias com cuidado, sem causar danos. A propósito, se eu próprio tivesse "despencado" de repente do chão do meu quarto para o teto certamente teria despertado. Só consegui chegar então à conclusão de que, o que quer que tenha acontecido, foi bem suave e silencioso a ponto de não me interromper o sono.
Aquilo só podia ser uma brincadeira. Muito bem elaborada, e ao mesmo tempo de muito mal gosto, mas tinha de ser esta a explicação! Eu estava muito curioso em descobrir com que arte de engenharia alguém teria conseguido, da noite para o dia, colocar uma casa inteira de pernas para o ar e, mais que isto, com o seu ocupante dentro, dormindo tranquilamente e sem ter a mínima noção do que acontecias ao seu redor! Precisava sair da casa, certamente para encontrar lá fora um monte de rostos gargalhando da minha cara de espanto diante daquele trote de gosto tão discutível. E também para ir atrás do responsável pela brincadeira, saber como ele colocaria minha casa de volta no lugar ou ressarciria meus prejuízos. Mas primeiro precisava encontrar as chaves da porta. Na noite anterior eu as havia deixado sobre a TV, ao lado do aparelho de som. Mas agora a TV estava no teto, com o som sobre ela, então onde estariam as chave?
Demorou, mas encontrei. Perdi cerca de meia hora com isto. Sim, era hora de sair e encarar os responsáveis pela brincadeira. Abri a porta principal da casa e pulei para fora, disposto a por as mãos no pescoço do primeiro engraçadinho que aparecesse na minha frente mas... Deus do céu, não havia chão!!!! E se não ajo rápido, não consigo me agarrar ao que restou no madeiramento do antigo telhado da casa! Abaixo de mim a visão era vertiginosa, apenas uma imensidão azul se estendendo em todas as direções! Nem precisaria a rigor me preocupar com a queda, pois simplesmente não havia lugar algum sobre o qual eu poderia cair! Era simplesmente um abismo azul-anil sem fundo!
Olhei para cima. Apesar do caos, ainda reconhecia o lugar: era o meu bairro, as redondezas de minha casa... só que de ponta cabeça! Telhados não haviam sobrado mais em casa alguma! Na verdade, algumas das casas nem mais estavam lá, apenas seus alicerces. A explicação era óbvia: as suas fundações não eram sólidas o suficiente para mantê-las presas ao solo acima de mim e elas já haviam caído em direção ao abismo azul.
Disse antes haver notado uma leveza incomum na escrivaninha que usei de apoio para acessar o teto térreo da casa, lembram? Pois bem, eu também estava mais leve, por isto não era tão difícil me manter suspenso no que restou do antigo telhado. E não que eu já tenha saltado do alto de uma casa muitas vezes em minha vida, mas a recente queda não me pareceu ter acontecido com a velocidade que sempre imaginei que uma queda teria. Sim, estava tudo mais leve, eu estava sendo puxado para baixo (ops! me perdoem a expressão errada: puxado para cima!). Com menos força que o normal, mas ainda assim estava sendo puxado! E mesmo que não fosse tão difícil me agarrar ao madeiramento por bastante tempo devido à aparente diminuição do peso, o que me afligia era que o próprio madeiramento começava a ceder. E cedeu!!!
Continuei caindo por minutos intermináveis naquele abismo cor de anil. O chão ficava cada vez mais distante, cada vez mais alto. Em poucos segundos vi todo o bairro. Alguns minutos depois, a cidade toda aparecia acima de mim. E o céu escurecia... Cada vez ficava mais difícil de se respirar. Quando já caía por uns cinco minutos o céu já estava praticamente preto, e o horizonte já apresentava uma certa curvatura de tão distante que já me encontrava do solo. Mas neste ponto o ar tornou-se tão rarefeito que fiquei inconsciente...
Acordei engolindo água salgada. Felizmente consegui me agarrar em destroços de madeira boiando naquele mar desconhecido e inesperado para mim, depois de ter caído não sei por quantos minutos ou horas, não conseguia mais ter uma noção exata do tempo que levou. Foi bem fácil agarrar algum objeto boiando, pois haviam muitos! O ar continuava rarefeito, mas já era mais respirável. Consegui reunir bons pedaços de madeira e improvisar uma jangada. Tentei descansar um pouco antes de tentar compreender em que nova situação me encontrava, quais seriam as próximas surpresas.
Olhei em direção ao horizonte mas descobri que não havia mais um horizonte, e sim dois! O primeiro era formado por este oceano que eu desconhecia, e no qual agora boiava. acima deste horizonte aparecia uma aura muito fina de um azul bastante pálido, mas que escurecia rapidamente à medida que se levantava o olhar. O céu se tornva então um completo breu, e bem no meio deste breu pude ver o sol, brilhante mas bastante estranho para mim, de um jeito que nunca havia visto antes. Olhando mais para cima o céu começava de novo a se tornar azul anil, contornando um segundo horizonte que agora percebia estar bastante curvado, e bem acima de minha cabeça reconheci parte do planeta terra, observada como Gagaring a teria visto algumas décadas atrás, de uma altura de algumas dezenas de quilômetros! A grande pergunta era: e eu!!! Que eu fazia lá??! Além disso, gagarin nunca havia mencionado um oceano de água salgada de onde ele tinha observado nosso planeta. E se bem estou lembrado, ele estava bem seguro dentro de uma câmara pressurizada orbitando o planeta, não ao ar livre e deitado de costas sobre uma jangada improvisada. E que ar era este??
- Venha, rapaz!!! Suba a bordo!!
Um iate?? Não havia mais dúvida alguma, eu havia enlouquecido completamente e este era o estágio mais avançado dos delírios.
- Não vai embarcar? Asseguro que aqui dentro está muito mais confortável!
- Mas que diabos de lugar é este aqui??? - perguntei àquele que, supunha, seria o capitão da embarcação.
- Náo espere respostas, amigo. Todos aqui sabem tanto quanto você. Já é o décimo quinto que tento salvar do afogamento desde que acordei hoje de manhã.
- Vão vir nos buscar aqui? Pediu alguma ajuda?
O capitão aponta para cima, para nosso planeta azul.
- Pedir ajuda para quem, filho? Para a NASA? - solta uma gargalhada, acompanhado pelo resto da tripulação. - Apenas suba aqui e se aqueça, pode ser? Depois podemos jogar conversa fora para tentar entender o que aconteceu...
Todos a bordo tinham uma história muito parecida com a minha para contar: acordaram, viram tudo de ponta cabeça, tentaram sair de suas casas e, como eu, cairam no céu. Apenas o capitão parecia ter presenciado acordado o exato momento em que aconteceu o estranho evento:
"Começava a amanhecer. Costumo acordar e ficar no convés do iate esperando pelo nascer do sol. Mas percebi que a maré começou a subir. Era estranho a maré subir naquele horário, pois sabia que estávamos no período de lua nova. Mas o fato é que, à media em que o sol começava a aparecer e subir no horizonte, também subia a maré. Estava no cais, mas já havia levantado ancora pois pretendia sair cedo para alto-mar. Porém o mar começou a ocupar tudo ao meu redor. Percebi que começava a cobrir as casas litorâneas. Havia alguma coisa muito errada, nunca tinha visto uma maré tão alta daquela forma! Foi quando aconteceu aquela coisa estranha: o iate começou a subir a linha do mar! Era como se ele estivesse ficando cada vez mais leve! Eu mesmo comecei a me sentir mais leve neste momento! E o sol sumiu! O céu já estava mais claro, só que a maré já havia subido tando que o sol ficou oculto debaixo da linha do horizonte. E o iate já estava tão alto em relação às águas abaixo dele que comecei a temer que ele fosse tombar. Mas não tombou. Na verdade a água toda em volta começou a ocupar todos os espaços, como se flutuasse. E de fato flutuava, como o iate também flutuava, como flutuavam todos os objetos dentro do iate e até eu mesmo futuava! Igual aqueles astronautas em suas naves, sabem? Só que não era uma nave espacial, era só minha humilde nave marítima...
Por vários minutos foi uma confusão dos diabos!! Tentava me agarrar a qualquer coisa para não sair flutuando por aí, olhava à volta, tudo estava uma bagunça! Muita água, mas não um mar. Eram várias bolotas de água flutuando por toda a parte, carros, telhados... em todas as direções para onde eu olhava. Até que comecei a me sentir caindo. Bem devagar, é verdade, mas estava caindo sem dúvida alguma. Não sei como, mas consegui entrar no iate neste momento. As águas começaram a se juntar de novo debaixo do iate, embora nesta hora eu já nem tivesse mais muita certeza do que estava encima e do que estaca embaixo. Mas foi gradual. QUando deu uma sete horas da manhã tomei coragem de sair de dentro do iate novamente e me deparei com isto que vocês estão vendo agora..."
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