FIM
(Relato do Dr. Karnot sobre uma entrevista com Saíjd Irazés)
"Me esqueço às vezes, sinto muito. Que vocês não podem entender está agora bem claro para mim. A entrevista com Irazés começou bastante estranha, como vocês bem podem entender por quê...
Ouvi uma batida na porta de meu consultório. Não uma batida normal, na qual se ouve uma pancada seca e logo após o som ecoando. Era diferente: o eco começava baixo e depois aumentava, morrendo numa batida seca. Foram três batidas.Saíjd Irazés entrou e se dirigiu a mim. Eram 18:20 em ponto, Irazés era bem pontual!
- Bela auro... pôr do sol, não acha, Dr. Karnot?
- Ah sim! - olho pela janela. - Belíssimo!
Sentou-se numa poltrona, eu o acompanhei sentando-me em outra à frente. Ele repete:
- Bela aurora, não acha Dr. Karnot?
Nada respondi, sabia que ele não esperava uma resposta naquele momento. Isto fazia parte de nosso código. Tratei de iniciar logo aquela entrevista:
- Bom, comecemos então aquela conversa que combinamos.
- Que vamos combinar! Quer dizer... Sim! Que combinamos.
-Como?
Irazés completa:
- Me desculpe, doutor. Sempre me esqueço... Para você já foi combinado. Para mim é algo que ainda preciso lembrar de fazer mais tarde para que tudo isto que está acontecendo agora faça algum sentido para nós dois. Passaram-se tantas semanas e eu ainda não consegui me acostumar completamente com esta minha situação...
Irazés parecia já impaciente, talvez confuso. Difícil explicar. Lembrei então de cumprir minha parte do diálogo, naquele código que havíamos combinado em seguir para que pudéssemos manter uma conversa com um mínimo de coerência:
- Como?
- Que vamos combinar!
Entendendo a deixa, completei:
- Bom, Saíjd... Vamos então começar aquela conversa que combinamos.
- Me chame de Irazés, por favor!
- Bom, Saíjd... Vamos então começar aquela conversa que combinamos.
Era estranho começar uma entrevista que para Irazés estava acabando naquele exato momento! Mas sabendo que especulações não levariam a lugar algum, resolvi prosseguir como roteiro planejado.
- Vamos respeitar então aquele formato de diálogo combinado, não é mesmo ?
- Sim, doutor. Acho mais justo desta forma, para que a conversa tenha coerência para nós dois, ainda que o preço disto seja ficar redundante.
- Por mim está excelente, isto não me incomoda.
- Sim, me parece justo que a conversa fique coerente para ambos, ainda que possa ficar redundante.
- Certo! Vamos seguir então aquele formato de diálogo bidirecional que combinamos, não é?
Antes de continuar este curioso relato, permitam-me que eu me apresente. Sou o Dr. James Karnot, psiquiatra. Não, minha profissão nada tem a ver com esta estranha conversa com Saíjd Irazés que estou agora reproduzindo para vocês. Ele não é louco. Muito pelo contrário, é uma pessoa completamente lúcida, e de uma inteligência incomum! Se o diálogo pareceu até o momento sem muito nexo, a culpa é da situação extremamente singular na qual ele se encontra agora. É que a visão que ele tem deste mundo é diferente, radicalmente diferente daquela que todos nós costumamos ter, e me interessou muito como psiquiatra entender os artifícios e mecanismos de raciocínio que ele desenvolveu para se adaptar tão bem à situação, a tentar viver tão normalmente quanto fosse possível para ele com o resto do mundo, com as pessoas 'normais'.
Confesso que ele me pareceu louco a princípio, e foi o que me levou até ele. Mas ficou claro com o tempo que tudo aquilo que ele descrevia não era produto de uma mente desequilibrada, e sim descrições fiéis das coisas como ele realmente as observava. A ciência se sustenta em provas, e... por incrível que pareça, Irazés podia demonstrar experimentalmente todo aquele mundo maluco 'criado' por sua mente. Não se podem questionar provas científicas, que podem ser repetidas e medidas a qualquer momento e sempre apresentam o mesmo resultado, concordam?
-Mil perdões, doutor!!! Sempre me esqueço deste detalhe nutricional!
-De quê você está se desculpando? Você não fez nada!
-Ah sim, que cabeça... Nada fiz, mas vou fazer. Estes petiscos estavam irresistíveis! É que para mim eu já fiz, e minha educação me obriga a este pedido de desculpas, pois imagino que a cena não vai ser das mais agradáveis. Esqueça isto por enquanto, doutor. O senhor vai entender logo...
É neste momento que presencio algo bastante repugnante a meus olhos, que eu ainda não estava preparado para ver. Sabia do fato, mas ainda não era a hora de entrar em contato direto com ele. Era por isto que Irazés nunca comia em público, ninguém entenderia! Mas o erro foi todo meu... Explico: deixara inocentemente um pote com petiscos e guloseimas numa mesa baixa entre as duas poltronas, para deixar aquela entrevista mais descontraída. A intenção foi boa, mas de boas intenções o inferno está cheio, e Irazés acabou caindo nesta arapuca involuntária.Inicialmente fez uma cara de surpresa. A seguir começou a mastigar algo, vindo nem me perguntem de onde! Bom, vamos deixar de lado estes rodeios todos e sejamos científicos: Irazés começou a ruminar algo que veio de seu estômago! Mastigou várias vezes, levou a mão à boca e tirou dela um punhado de amendoins inteiros, que despejou sobre um dos potes de petiscos que estava na mesa de centro.
-De quê se desculpa, se não fez nada? - repeti, só para cumprir o protocolo do diálogo.
- Desculpas? De quê??? Ah sim, é de algo que vou fazer daqui a pouco...
Não sei como aconteceu, e muito menos Irazés. Era algo difícil de acreditar, talvez até impossível se as evidências do fato não fossem tão abundantes e tão gritantes: Irazés vivia 'ao contrário'!!! O tempo para ele não corria como corre para todo mundo, vindo do passado, passando pelo presente e se encaminhando para o futuro. Nada disso!! Irazés era uma prova viva de uma criatura que desrespeitava completamente a segunda lei da termodinâmica. Mais que desrespeitar, ele vivia exatamente da maneira oposta àquela que tal lei ditava! A entropia, ou nível de ordem molecular, para ele não diminuia com o passar do tempo, mas aumentava! Enquanto para todos os seres humanos, todos os planetas, todas as estrelas, todas as galáxias, etc... a desordem aumentava com o passar do tempo, para Irazés o que aumentava era a ordem! Quer dizer, isto no nosso ponto de vista. Como tinha de ser, o raciocínio e a percepção de Irazés seguia o sentido da diminuição da entropia, como acontece com todo mundo. Mas para ele, diminuir a entropia significava que a ‘seta do tempo’ precisava apontar para o passado, e não para o futuro! O que era o meu futuro naquela entrevista, por exemplo, Irazés já havia presenciado. E o que estava no meu passado, ele ainda não tinha como conhecer, pois tais eventos pertenciam ao futuro dele!
- Este protocolo que você criou de diálogo bidirecional, quando surgiu?
- Doutor, pensei muito, queimei muitos neurônios tentando bolar uma forma eficiente de conseguir me comunicar com o resto do mundo do jeito mais natural possível. A única conclusão a que cheguei foi esta que estamos usando agora. Isto eu desenvolvi recentemente, faz umas duas semanas, pouco antes da nossa primeira entrevista, que aconteceu em... Ah, me desculpe, mas para o senhor ainda não aconteceu!
- De fato, e nem precisa me dizer quanto vai acontecer. Combinamos não revelar os futuros um do outro, não é?
- Sim, eu não lhe revelo seu futuro, que eu já sei qual vai ser, e o senhor também não me dá informação alguma de meu futuro, que está no seu passado.
- De fato, e nem precisa me dizer quanto vai acontecer. Combinamos não revelar o futuro de cada um, não é?
- Doutor, pensei muito, queimei muitos neurônios tentando bolar uma forma eficiente de conseguir me comunicar com o resto do mundo do jeito mais natural possível...Num diálogo normal, em que os dois interlocutores seguem a mesma linha de tempo, a fórmula pergunta-resposta, pergunta-resposta, pergunta-resposta é válida. Mas entenda o meu problema: minha linha do tempo corre numa direção contrária à sua, e de todas as outras pessoas do meu convívio. Quando me fazem uma pergunta qualquer, não adianta ficar esperando uma resposta porque para mim esta pergunta está no futuro, ela nunca aconteceu! Mas se eu responder e você repetir esta mesma pergunta após a minha resposta, sua pergunta estará agora no conjunto de meus eventos passados, e só assim eu serei capaz de respondê-la. Pode parecer uma chatice ter de repetir uma frase que já foi enunciada, mas como eu também me comprometo a seguir o mesmo protocolo, ou seja, repetir a minha pergunta assim que meu interlocutor completa sua resposta, me parece um acordo bastante justo. Ops! quase cometo um deslize! Isto ainda não aconteceu para o senhor... Isto aconteceu em... Eu o desenvolvi a cerca de duas semanas apenas, pouco antes de nossa primeira entrevista.
- Quando surgiu este seu protocolo de diálogo bidirecional? - repeti apenas para que ele me desse a resposta anterior...
Muito me intrigava este estranho nome do meu entrevistado: Saíjd Irazés!
- Qual é a origem deste nome? Irazés me lembra algo árabe, mas não parece que você seja descendente...
- Sou cem porcento brasileiro, doutor. Pelo menos até onde conheço minha ascendência.
- Este nome estão, de onde veio?
- Foi muito difícil me adaptar ao mundo nestas condições tão estranhas! Uma das minhas maiores dificuldades depois do período de choque, quando decidi sair da ostra em que fiquei fechado algum tempo e tentei encarar este mundo que para mim corria de trás para a frente (embora sabendo que eu é que era o diferente nesta história toda!), o mais difícil foi aprender a entender e pronunciar as frases ao contrário! Sim, pois se eu quisesse ter alguma chance de compreender e ser compreendido pelas outras pessoas, eu teria que aprender a fazer isto! Falar de trás para a frente até que nem foi tão difícil. Muito mais difícil foi aprender a falar inspirando ar, ao invés de expelir!
- E seu nome, onde entra nesta história toda?
- É que neste mundo maluco em que eu estava vivendo, pelo menos uma coisa eu queria que me soasse mais familiar. E era uma coisa muito importante: meu nome! Foi por isto que o troquei: tudo bem precisar falar e ouvir frases ao contrário, me esforçar para entendê-las. Mas se tivesse que passar por isto pelo resto de minha vida, pelo menos meu nome eu gostaria de ouvir como eu sempre tinha ouvido!
- E seu nome é? Acredita que nunca te perguntei isto?! Sempre achei que fosse Irazés mesmo...
- Saíjd Irazés é César Dias, com os fonemas pronunciados de trás para frente. É meu nome: César... Irazés!
- E seu nome é? - bom, vou poupá-los aqui da repetição, mas o restante desta parte do diálogo prosseguiu no protocolo bidirecional que vocês já devem ter compreendido.
Lembrei Irazés, digo, César (estou tão acostumado, vai ser difícil pensar em Irazés como César agora...) de comparecer amanhã (na verdade, ontem) à próxima entrevista. Ela seria muito importante, uma possibilidade de tentar reverter a situação pela qual ele passava agora. Na verdade, tudo já havia sido feito, só que ele não sabia ainda: eram coisas que ele ainda iria fazer!!! Ele fará tudo isto ontem! Mas eu precisava lembrá-lo disto:
- Não se esqueça de me telefonar ontem combinando esta entrevista, ok?
Irazés tira um bloco de notas e uma caneta de seu bolso. Abre numa página e, à medida em que ele faz uma anotação escrevendo da direita para a esquerda, os traços no papel que estavam embaixo da ponta da caneta vão sumindo: era a tinta saindo do papel e voltando à carga da esferográfica, à medida em que Irazés 'desanotava' meu aviso. Guarda então o bloco de notas no bolso, e eu completo:
- Não se esqueça de me telefonar ontem marcando esta entrevista, tudo bem?
Irazés se levanta da poltrona e me cumprimenta.
- Boa tarde, doutor! Espero ter chegado a tempo!
Após um instante de confusão, completa:
-Tchau!
Acompanho Irazés até a porta do consultório, onde ele se dirige andando para trás. Só então percebo um ferimento em sua cabeça. Estava cicatrizado antes, me lembro! Mas agora ele parecia bem recente! Ele sai, fecho a porta, e ouço batidas. Mas sei que não devo atenter. Na verdade, já atendi. Me dirijo à janela e, lá embaixo, vejo Irazés saindo da clínica. Agora anda normalmente para a frente, pois em público ele faz de tudo para parecer o mais normal possível. Mas percebo que seus passos são cautelosos, pois do seu ponto de vista ele na verdade está andando para trás! Pára de repente, olha indignado um poste à sua frente. Ouço um grito, 'Iiiááááá!!!', e vejo Irazés bater sua testa no poste! O corte que estava sangrando se fecha, e ele prossegue caminhando.
Fim da entrevista,olho para o relógio: agora são exatamente 18 horas em ponto!!"
Eis o estranho relato do Dr. Karnot! Mas apesar desta estranha forma de Irazés ver o mundo, tudo continuava como sempre foi no resto do Universo. Apenas para ele as coisas pareciam diferentes, ninguém ainda conseguia explicar o por quê! Os planetas continuavam girando em suas órbitas, as galáxias continuavam rodopiando em torno dos buracos negros que existiam em seus centros. Tudo continuava igual! Qualquer que fosse a galáxia distante do universo para a qual você apontasse seu espectrômetro, veria que quanto mais distante ela estivesse maior seria o desvio para o azul que você obteria em seu espectro luminoso. Hubble ainda vai explicar isto no começo do século XX, e saberemos que isto acontece porque nosso universo está se contraindo.
Tudo continua igual! As galáxias continuam se aproximando cada vez mais, ficando mais densas, em direção a um ponto central. Isto continuaria até chegar aquele momento de singularidade máxima que vai acontecer daqui a alguns bilhões de anos, e que será chamado de Big Crunch!!
SAÍJD IRAZÉS MÔC ATSÍVERITNE