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11/09/2013

champignon

03/01/2013

22/12/2012


    O aviso correu o mundo rápido naquele sábado, manhã de 22 de dezembro de 2012. Manhã? Não, talvez seja melhor dizer dia. DIA?? Dia em 50% do planeta. Nos outros 50% era noite. Bom, era manhã no Japão, para ser bem específico. Outros doze fusos ainda esperavam pelas suas meias-noites, a transição do dia 21 para o dia 22.

    Muitos acordaram com ressaca. bastante gente havia bebido todas tentando aproveitar os últimos momentos no planeta. Quando seria? Outra pergunta complicadíssima... Diziam que no dia 21. Mas dia 21 de qual fuso horário? Seria um apocalipse seletivo, vitimando cada um dos meridianos por hora há medida em que a Terra seguia em seu movimento de rotação? E para as nações que não seguiam o calendário gregoriano? Como elas calculariam o momento deste fim? Tantas perguntas, e tão pouco tempo para respondê-las...

    Ignorando tudo isto, o aviso era claro: a NASA, em conjunto com outros respeitáveis Institutos Astronômicos do mundo, previam uma rajada solar rápida, mas fatal, para as 8 horas, 12 minutos e 34 segundos do dia 22 de dezembro de 2012 no horário de Greenwich! Para que não houvesse dúvida alguma. Um horário da "bruxa verde", comum, igual, reconhecido por qualquer pessoa no mundo!

    "Será breve, mas fatal para quem estiver desprotegido!", alertava o aviso. "Se protejam! Tetos de concreto são seguros. Amianto, palha, papelão... estes não conseguirão barrar o suficiente estes raios gama! Não se exponham, não tentem observar o fenômeno! ISTO NÃO É UM TROTE!"

    O mundo leu aquilo em suas telas de computador, celular, tablet, alguns nos primeiros jornais das bancas mesmo. mas com desdém. Outro fim do mundo? Esperaram um em 1900... que não aconteceu! A passagem do Halley em 1910 inundaria o planeta com o venenoso gás cianogênio... Nada aconteceu! Houve novo tumulto em 1986 com a volta do cometa, que também não acabou com o mundo. O bug do ano 2000 prometia um caos generalizado nos sistemas de informática que, de novo, não ocorreu. Em 2001 (que, como toda pessoa mais esclarecida sabe, é o verdadeiro primeiro ano do século XXI) carregava um peso embasado por palavras em poemas de Nostradamus: "de 2000 não passaras!!". E passou de novo...

    Eis o mundo em 20 de dezembro de 2012. De novo! O fim da contagem do tempo num antigo calendário maia, que ninguém mais usava, era motivo de um novo instante demarcando nosso fim. Por que teve tanta repercussão? Bom, os maias foram uma civilização sábia, que alguns especulavam que se comunicavam diretamente com civilizações extraterrenas. Conheciam as distâncias dos planetas inobserváveis a olho nu com precisão: Urano, Netuno e Plutão! Plutão não é mais planeta? Ah, me desculpem... Os maias não sabiam disso ainda na época, mas de qualquer forma SABIAM a que distância o planetoide estava do sol. Tudo isso numa época em que as civilizações europeias mal haviam ainda inventado o ZERO! Um povo sábio assim devia saber do que estava falando, né!

    Sim, sabiam! E não tinham previsto nenhum fim do mundo! Dia 21/12/2012 era o fim do calendário deles, só isso! Algo equivalente ao nosso 31 de dezembro. Significava apenas que o dia seguinte seria primeiro de janeiro do ano atual MAIS UM. Mas interessava a muita gente espalhar este boato tolo, e uma "previsão" apoiada por "cálculos" de uma nação antiga tão sábia parecia o argumento perfeito!

    O fim do mundo não aconteceu. Muitos se agarraram à última "esperança" de que isto ainda aconteceria entre o último segundo das 23:59 de 21/12/2012 e a meia-noite de 22/12/2012. Esperança? Que palavra inadequada! Quem "anseia" pelo fim, pela destruição mundial? De qualquer forma, este anseio final se repetiu pelos 24 fusos do planeta. Cada fatia de gente esperando que o seu fuso fosse o previsto pelos maias, e que o fim aconteceria em SUA meia-noite do dia 22. Até se tornar dia 22 de dezembro no mundo inteiro, e o apocalipse não havia acontecido. Alívio? Sim, muita gente agradeceu aos céus pela nova chance. Alguns nem se surpreenderam: "não disse que era tudo besteira?" Alguns poucos, extremos, se decepcionaram. Ficaram indignados! "E agora? Me desfiz de tudo! Estou aqui neste abrigo idiota, vestindo esta capa de chumbo ridícula, pela qual paguei uma pequena fortuna! Acumulei dezenas de anos em mantimentos no meu bunker particular... para NADA??"

    Cientistas do mundo inteiro, usando o site da NASA pela credibilidade da Instituição, espalhava a notícia enfaticamente: "Simulamos o evento milhares de vezes nos nossos supercomputadores! Não existe chance de falha: a atividade solar acontecerá no dia, hora e minuto mencionados! NÃO SAIAM DE CASA! PROCUREM ABRIGO! Especialmente a parte do mundo exposta aos raios solares neste momento. NÃO É TROTE! VAI ACONTECER!", piscavam gigantescas letras vermelhas na página principal do site da NASA. E seguiam links para o mesmo aviso em todos os principais idiomas do mundo! Todos mesmo! Esperanto, latim, grego arcaico... até uma versão da página em Tupi-Guarani lá estava presente, para quem duvidasse de sua urgência e veracidade!

    O mundo estava desgastado com a última mentira. Circulava um comentário pela rede: "hehe, os hacker invadiram a NASA de novo! Olha só o que colocaram lá!", e seguia um link para o aviso. O efeito do alerta foi contrário ao esperado... Ninguém acreditou nele...

    Lembram daquela velha história do pastor e suas ovelhas? Que ele gritava "é o lobo! é o lobo!", e caía na gargalhada quando via todos se aproximando para ajudá-lo? Então... a história de certa forma se repetia. No dia, hora e segundo especificados, todos saíram de suas casas para observar o "fenômeno", rir dele. Pelo menos metade do mundo onde ainda era dia, onde os raios solares incidiam diretamente em vários ângulos, de acordo com o meridiano de seu observador. Irrelevante, a rajada fatal na maioria deles! Digamos... 99.6% da superfície diurna do planeta. Cerca de metade da humanidade? Errado de novo... Metade em SUPERFÍCIE planetária. Mas em pessoas? Sendo dia numa parte do mundo onde estavam presentes as populosas nações da Índia e da China? Não, era bem mais que a metade da população mundial que saía de suas casas esperando rir do novo "trote de fim do mundo".

    Porém... Ah, como dizer isto sem sentir dor pelas vidas perdidas? Coragem: ERA VERDADE! Um pulso repentino, rápido, de potentes raios gama vindos do sol dizimou uma grande parte das vidas expostas aos seus raios naquele exato momento! Durou frações de segundos: a simulação computacional era precisa! Bom, nem tanto: uma proteção básica sobre a cabeça, mesmo de amianto, palha ou madeira, seria suficiente para proteger seus ocupantes de maiores danos. Mas a exposição direta era fatal! E, infelizmente, uma enorme parte da população humana foi exposta a ela. Uma parte revoltada, indignada por uma nova "tentativa" de colocá-los no ridículo, expô-los a um trote de mal gosto. Eles queriam ver, não procuraram se proteger em sombra alguma. E seria tão fácil!

    O mundo do outro lado do planeta sobreviveu. Se um simples telhado de madeira era suficiente, que dizer do planeta inteiro, protegendo-os contra a estrela central? Dificuldades? Bem, a energia repentina causou sim uma leve descompressão entre as partes ocidentais e orientais dos hemisférios atmosféricos. Tufões, chuvas impossíveis de se prever... mas nada fatal! Por que aquela parte da humanidade (mais de 65%, eles agora contabilizavam) não haviam simplesmente se protegido em suas casas? Ou num toldo? Um ponto de ônibus? Uma oca? Uma simples capa de couro? MEU DEUS, qualquer lugar com sombra?? Mas não, estavam indignados! Queriam ver com os próprios olhos o despencar daquele novo boato. Ah, que tristeza... Desta vez não era boato...

    O sol, depois disso, continuaria estável por mais alguns milhões de anos no futuro. Os supercomputadores restantes na parte do mundo onde ainda era noite no instante do apocalipse garantiam isso! Ninguém mais duvidava deles. Ninguém ousava fazê-lo!

   Hora de esquecer, tocar pra frente. Temos metade do mundo quase deserto para ocupar. Enterrar os corpos, apagar incêndios! E as usinas nucleares na Rússia, Japão, Alemanha, etc...?  Alguém precisa correr até lá para desligá-las! Quem pode ter certeza se seus técnicos ainda estão vivos, ou se morreram naquele desafio irracional ao aviso da Administração Nacional do Espaço e da Aeronáutica?

    Lição aprendida! Não era tão difícil assim separar besteiras de avisos sérios, científicos! Não haviam técnicos nucleares entre os sobreviventes? Lógico que haviam! E, se precisassem de mais, de ajudantes, conhecer os processos das reações nucleares não era nenhuma coisa do outro mundo! Qualquer um poderia aprendê-las, e saberia desligar um reator quando o visse. Ninguém estava preparado para um novo anúncio de fim do mundo, resultado de simples desleixo...

    "É o lobo! É o Lobo!" Desta vez, era mesmo o lobo! Mas cansados de fazerem papel de tolos, ninguém acreditou...


02/01/2013

A Civilização Titânica


    Começou a se despedir de seus fiéis amigos. Haviam muitos, ele era muito benquisto na colônia! Não sentia tristeza. Todos sabiam que uma hora ou outra isto precisava acontecer. A semente protegida e alimentada durante toda a sua vida, sua continuação... precisava germinar! Não fazia sentido algum botar aquilo tudo a perder. Era hora de partir! Mas, seguindo o ritual que existia desde sempre (nem mesmo os mais antigos se lembravam de alguma vez ele não ter existido), ele se despedia.

    Como ele sabia que era a hora certa? Pergunta difícil... Ele simplesmente sabia! Para muitos amigos antigos, que já se foram, ele fez a mesma pergunta: "Como você sabe que é agora?". E a resposta era sempre igual: "Eu sei. Não posso explicar, mas quando for a TUA hora, você também vai saber!" E partiam para não mais retornar. Agora ele fazia o mesmo. Como ele sabia que era a hora? Ah, charada do destino! Ele simplesmente sabia! E, sem saber explicar, repetia a mesma ladainha aos amigos mais jovens dos quais se despedia: "Eu sei. Não posso explicar, mas quando for a TUA hora, você também vai saber!"

    A morte era rara entre eles. Nem mesmo a temiam. Na verdade, ninguém tinha mesmo uma ideia clara do que ela era, por falta de experiência. Acidentes? Aconteciam, sem dúvida! Uns quatro ou cinco em gerações incontáveis. Devido à raridade, os relatos de indivíduos encontrados inertes, congelados, despedaçados, transpassados, o que fosse, eram repetidos e repassados de geração em geração! E quem conta um conto, aumenta um ponto. O fato originalmente verídico de alguém encontrado sem vida ganhava tais proporções em poucas gerações que se tornavam difíceis de acreditar. O que fazia também difícil de acreditar que aconteciam, que alguns indivíduos de fato morriam. Nem possuíam uma palavra adequada em suas comunicações que descrevia tal conceito.

    Ninguém mais nascia ou morria, mas "se iam" e "surgiam". Sempre desciam novas crianças ao longo do curso dos rios, e se apresentavam totalmente inocentes naquele mar, acolhidos por alguma das várias colônias. E também sempre haviam sujeitos partindo, como agora ele fazia.

    As pessoas que partiam não mais voltavam. Ninguém sabia explicar isso. Ninguém nem tentava explicar. Era parte da cultura: todos reconheciam suas próprias horas, se despediam... e se afastavam! Para que direção? Ele próprio não sabia por que, mas seguia uma bem definida. Se concentrou tentando descobrir o que o dirigia. Ah lógico! Era a correnteza! Os apêndices em torno de seu aparato bucal circular lhe mostrava claramente qual a direção CONTRA a correnteza, que era para onde ele deveria se dirigir. Sair da calmaria daquele mar circular e encontrar a foz de um dos vários rios que nele desembocavam...

    Cruzou no caminho com inúmeras crianças, incrivelmente pequenas comparadas ao seu organismo maduro. Tentava saudar cada uma delas, "Bem-vindo, pequenino!", mesmo sabendo que nenhuma ainda havia desenvolvido alguma forma de linguagem. Elas desciam os rios por ser sua única opção: pequenas e fracas demais, tudo o que elas podiam fazer era se soltarem e seguirem a direção natural das correntezas, que convergiam para o centro daquele mar onde várias colônias se formavam em torno das incontáveis fontes criotermais ao fundo.

    Ele não! De musculatura invejável, propagava movimentos peristálticos pelas três caudas ejetando líquido exterior, o que o impulsionava para a frente, contra a correnteza que aumentava cada vez mais. Seguia um princípio simples de ação e reação que todos conheciam instintivamente. Exaustivo? Com certeza! Mas ele esta bem alimentado dos líquens extremófilos que comera antes da jornada! Sabia, inconscientemente, que precisaria desta energia extra.

    O ovo crescera dentro do gânglio principal de seu sistema nervoso, distribuído ao longo de seu corpo esguio. Pressionava este órgão central, que muitos sábios acreditavam ser o centro do pensamento racional de sua espécie. E eis aí o relógio! Era esta pressão que lhe avisara enfim que estava na hora, que o fizera iniciar aquela jornada. Última? Não se lembrava de ninguém ter voltado dela depois do ritual de despedida, então, como ser inteligente que era, acabou concluindo: sim, deveria ser a última mesmo! Medo? Ele tinha medo dos dodecápodes das profundezas! Temia as macrocélulas fagocitantes, tão transparentes que só se costumava vê-las quando era tarde demais! Mesmo assim, medos irracionais. Nenhum dodecápode de fato atacara algum conhecido seu durante sua vida. Era mais a geometria de 12 raios que os repugnava, fobia sabiamente implantada em seus inconscientes pela seleção natural para que fugissem quando ainda havia muito tempo para isso. Macrocélulas fagocitantes? Transparentes? Como alguém podia afirmar ter visto algo transparente? Isto estava mais no reino da imaginação mesmo, uma espécie de "bicho papão" da espécie, história para assustar as crianças...

    Reconheceu logo ter chegado à foz de um dos inúmeros rios pela mudança de viscosidade do ambiente ao redor. Alcanos, alcenos, butanos, propanos, pentanos, hexanos, heptanos... compostos complexos que se acumulavam a éons incontáveis naquele mar se tornavam mais raros, diluídos, à medida em que se aproximava do canal de fluido corrente. Estranho? Sim, bastante! Mas, ao mesmo tempo, a mudança de viscosidade que sentia ao entrar por aquele rio o fazia se sentir mais livre! Maior liberdade de movimentos, menor resistência hidrodinâmica! Poderia chegar mais rápido até... para onde mesmo ele estava se dirigindo? Sem poder responder, uma certeza interior o tranquilizava: "Vou saber quando chegar a hora!"

   A gigantesca figura vermiforme avançava pelo rio de metano e etano líquidos. Gigantesca? Ah, palavras deste tipo precisam ser usadas com cuidado, pois são dependentes demais do referencial. Do ponto de vista da espécie, eles sempre tiveram o tamanho que deveriam ter. Não conheciam outro. Perante suas crianças? Talvez sim. Mas mesmo assim, era incorreto. Gigantesco aqui não tinha o sentido de exceção, mas de regra! Os adultos SEMPRE eram gigantescos comparados às crianças! Sempre foi assim! Motivo algum para estranhamento...

   Consciente da magnetosfera do enorme corpo gasoso em torno do qual girava seu mundo laranja, ele percebeu a tortuosidade do rio caudaloso que seguia por perceber a variação aleatória da corrente do rio em relação aos campos magnéticos de seu "SOL". Sol entre aspas, lógico: muitos sábios da colônia argumentavam que ele só era centro do sistema local pela proximidade, mas que ele próprio, em torno do qual girava seu mundo, na verdade também deveria descrever uma órbita ao redor daquele corpo brilhante, apesar de pequeno, que regularmente aparecia no céu. Explicavam que seu tamanho aparente diminuto se devia à sua enorme distância, mas que ainda assim sua massa deveria ser tão descomunal a ponto de ser, de fato, o centro do sistema. Eles giravam, ainda que indiretamente, ao redor deste "verdadeiro sol". Tais ideias invadiam sua mente à medida em que ele sentia estar chegando ao seu destino final. Como ele sabia disto? Ah, de novo a velha pergunta...

    Como os astrônomos sabiam da existência deste sol distante? Bem, certamente eles nadavam até a superfície do mar de metano, e expunham seus receptores óticos sobre a superfície apesar do risco. Eles conheciam muito bem, sabia que isto poderia cegar completamente, mas... PRECISAVAM SABER! Alguns desenvolveram capas, outros cúpulas completas dentro das quais poderiam tentar se elevar sobre a superfície de seu mar com certa segurança, ver o que existia "lá fora". Mas não conseguiram nada muito mais espetacular do que este pequeno mas brilhante ponto e um disco pálido que às vezes surgia no céu, rodeado de um anel intrigante. Chegaram à conclusão que tal anel na verdade deveria ser formado de aglomerados das pequenas partículas de areia, a mesma areia de água e dióxido de carbono que circundava seu mar e formavam as margens de seus rios. Mas que vistas de longe pareciam compactas, pareciam formar um disco sólido. Uma ilusão de ótica. Difícil concluir algo sendo capaz de enxergar a olho nu apenas uma parte limitada do espectro luminoso, que ainda que abrangesse o infravermelho, decaía rápido nas frequências entre o vermelho e o amarelo. Eram quase cegos para o "laranja" cor predominante de seu "planeta-lua", e que era pano de fundo de seu céu, que só podiam observar por poucos segundos a olhos nus. Todos os sete olhos abaixo dos apêndices encefálicos, rodeando a boca central. Nenhum resistiria muito tempo à luz natural do sol distante. Evoluíram para captar aquele infravermelho fraco que com dificuldade se propagava entre as moléculas de metano líquido de seu mar, a 180 graus negativos.

    "É aqui! Eu SEI!", e parando de nadar contra a correnteza, passou a se dirigir de forma suicida em direção à margem. Ele sabia do risco! Sabia que não deveria tentar pular para fora do metano liquefeito! Mas aquilo era uma ordem, vinda ele não sabia de onde! "Calma!", tentou ser racional. "Será que é isto mesmo que devo fazer?" Se ergueu devagar sobre a superfície do rio de metano. Olhou em volta. Era dia, ou seja, brilhante demais! Nunca fôra exporto a tanta radiação solar no fundo de seu mar, vivendo em sua colônia de manifestações móveis! As margens do rio eram duas faixas que se estendiam numa direção e na contrária. Paralelas à correnteza. Deveria existir uma lógica nisto. Alguém a estudaria algum dia?

    Contra a corrente, ele estava mais próximo da margem direita. Exausto da jornada, se decidiu por esta, o caminho mais fácil. Ah, quando aquilo acabaria? E como? A estranha neblina de materiais orgânicos complexos se dissipava à medida em que ele se aproximava da margem. Tentava compensar o arrasto, sabia que a correnteza o faria atingir um ponto distante do pretendido se tentasse seguir reto. Mas ele sabia instintivamente compensar isto, avançando para a margem num ângulo não perpendicular, que compensava o arrasto. Como ele sabia calcular tais coisas sem ter consciência delas? Será que o DNA era capaz de codificar correções derivativas tão complexas a este ponto em seus genes? Aparentemente sim!

    Ele avançou resoluto levando seu ovo  que crescia dentro do cérebro principal. Ovo único! Par de alelos completo, definidos em sua concepção. Onde? Ele não sabia, mas foi em um rio parecido com aquele, com dois óvulos, cada um com um DNA parcial, procurando outro com o qual se recombinar ao acaso. Ah, o acaso! Fator importante! Todo este mecanismo complexo existindo para que ele acontecesse!

   Altas e sólidas estruturas cresciam ao longo da margem. Isto ele percebeu ao saltar rápido da superfície do rio de metano. Basicamente imóveis, sésseis, enraizadas no chão da margem daquele rio. Vivas, apesar da imobilidade? Isto parecia claro! Ele não sabia como explicar esta sensação de vida, mas a sentia! As sentia como sua origem! Seus pais, ancestrais de mesma espécie que haviam crescido com morfologia diferente, mais adequada ao seu ambiente seco. Relutava ainda em pular para a margem. O medo do desconhecido o dominava!

    "Não tenha medo! Pule!" Ele não sabia de onde vinha este encorajamento. Na verdade era hormonal, substâncias que os seres sésseis que cresciam nas margens emanavam pelas raízes em contato com o rio, mas que para ele era tão irresistível quanto uma ordem verbal! "Esta é a conclusão, o objetivo de sua vida! Aquilo pelo qual você continuou existindo até agora!"

   Pulou do rio de metano para a margem formada por espessa areia de gelo de água e dióxido de carbono, um pouco molhada por compostos orgânicos complexos de um temporal recente. Estava quente! Viscoso e quente! Ele não estava acostumado com aquela temperatura infernal de -168 graus Celsius, bem diferente dos -180 graus aos quais ele estava acostumado a vida INTEIRA. Se arrependeu! Queria voltar para o rio de metano, mas já não podia!

   "Vai ser rápido, criança!", o encorajava uma voz vinda ele não sabia de onde. "Será menos doloroso se você não resistir!"

    A luz do distante sol central queimava sua pele, exposta à atmosfera de 95% de nitrogênio e 5% de metano. "Teria sido melhor eu ter chegado aqui durante à noite?", ele pensou, pensamento logo respondido: "Pequeno, isto só lhe prolongaria a agonia! Você chegou na melhor hora!"

    A ideia lhe era estranha. Estrebuchando, secando naquele infernal calor de -168 graus sobre a estranha criatura séssil gigantesca, ele perguntou: "Estou morrendo? Então é assim a morte?"

    "Você carrega uma joia dentro de si, criança! É esta jóia, dentro de seu cérebro principal, que te levou até aqui!"

    Ele morria. O calor fazia evaporar o metano de seu corpo.

    "Dorme, dorme, meu bebezinho..." Terminações nervosas ao longo do tronco rígido daquela criatura séssil plantada às margens do rio tentavam amenizar a dor da morte de um representante de sua espécie, no final de sua manifestação móvel. Ressecado, os impulsos chegavam cada vez mais diretos aos seus gânglios cerebrais. "Se imagine pequeno... inocente... Livre!!!" Era difícil de se explicar, mas enquanto morria, ele transmitia à criatura séssil escolhida toda sua informação de vida! Lembranças, medos, conquistas, sonhos... Tudo! Coisa alguma seria perdida com sua morte iminente. Ao contrário! Ele era matéria! Matéria orgânica! Alimento! Adubo para a semente que criara e preservara durante toda a vida! Que cresceria com seus genes recombinados! Uma nova variação genética que lá estava por ser vitoriosa, e por isto mesmo precisava se propagar! A Evolução das Espécies se repetindo, seguindo o programa que sempre repetia em todas as partes do universo!!

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    A informação se propagou por aquela rede de seres sésseis. Telepatia? Bom, mais ou menos. Cada uma daquelas criaturas imóveis era individual. A informação mental se propagava entre elas sim, mas não por meios imateriais. Não era, necessariamente, a "telepatia" como estamos acostumados a descrevê-la. Os seres criavam longas raízes no solo, e estas raízes acabavam se interceptando. E nestas raízes existiam terminações nervosas, que se comunicavam umas com as outras. Fora uma certa resistência existente entre as sinapses subterrâneas conectando os indivíduos, era inevitável que ao longo das eras de evolução eles acabariam desenvolvendo um "super-cérebro coletivo" no qual seria quase impossível separar personalidades individuais. Não era o caso atual, e se poderia seguramente comparar a atual rede neural, muito eficiente, a uma espécie de "grande rede telepática".

    "Era um representante móvel de minha primeira semeadura?"

    "Com certeza, amigo! Seu carimbo mental nele era inquestionável! Sua ousadia, sua curiosidade... Era sim de sua primeira semeadura, não tenho dúvida alguma!"

    A informação se propagava rápido ao longo da margem direita do rio de metano. Direita ou esquerda? Ah, tudo é relativo! Contra ou a favor da correnteza? Nascimento ou morte?

    "Depois de quatro semeaduras! Genes parciais em óvulos, com metade dos alelos, espalhados aos milhares pelo rio! Ao acaso. Esperando uma improvável recombinação, dentro do meio fluido e turbulento, com outro óvulo compatível, improvável, portador de outras variações genéticas em sua hélice do par de alelos... E descobrir, depois de todo este tempo, que um deles deu certo, e voltou para semear de novo a margem com um ovo-semente completo! Um novo ser, inteiro, progenitor, que vai gerar novos óvulos com combinações de genes ao acaso depois de brotar e amadurecer! Ah, que sensação incrível!"

    "Você já sabe o que deve fazer, não é?"

   "Depois de quatro semeadura? Ah, meu amigo! Minha missão aqui se acabou... Faço isto com satisfação!"

    O ser séssil, bastante velho, começou a se auto-consumir na base que o ligava ao solo, a desprender seu forte tronco orgânico das raízes que o seguravam ao longo da margem do rio. Medo de morrer?? Ah, que sentimento humano mais absurdo, mais difícil de ser compreendido... Medo por quê? Vocês não sabem que são finitos? Que não são eternos? Que podem tentar atrasar, ganhar mais algumas décadas, séculos mesmo milênios de vida... mas que uma hora precisam acabar? Ah, como seriam mais felizes se não se apegassem tanto a esta obsessão por imortalidade...

    A criatura se desprendeu totalmente de suas raízes, com as bases auto-consumidas, e começou a cair no rio de metano de Titã. Como ela sabia que era sua hora? Difícil explicar... Ela simplesmente sabia! Crescendo com o alimento trazido pelos vários seres móveis pulando em sua margem, adubando o solo com compostos orgânicos elaborados no interior do mar de metano, era sua hora de contribuir: oferecer seu corpo ao rio, que decomposto devolveria ao mar, onde habitavam as colônias de gerações móveis de sua espécie, os compostos orgânicos complexos dos quais dependiam. Especialmente agora, para as crianças novas que surgiam e eram levadas pela correnteza até o centro daquele mar, onde alguma colônia as adotaria e lhes ensinariam a cultura. Cultura essa que elas devolveriam aos seres sésseis no momento em que voltassem para plantar sua semente completa, fecundada...


*** FIM ***

Onde Habita Nossa Alma


    Era um típico momento de descontração entre profissionais especialistas da Medicina. Escolhiam com cuidado seus tacos de golfe, avaliavam a direção dos ventos... e jogavam conversa fora. Oncologista reconhececido, ganhador do último Nobel, ele quase recusou o convite, pois não acordou se sentindo bem. Acordara com uma enxaqueca inexplicável, visão turva. Mas a possibilidade de trocar idéias com o famoso Neurologista lhe deu ânimo renovado. Normalmente aquela afirmação pareceria absurda vindo da boca de qualquer outra pessoa, mas vindo da boca de um especialista em Neurologia o absurdo ganhava proporções incomensuráveis!

    - Acho que entendi mal sua idéia. Se pudesse explicar de novo... - e dá uma tacada certeira.

    O Neurologista esperava por esta reação.

    - Dificil de acreditar, particularmente por causa da minha especialidade, não é? Mas é exatamente por ter estudado tando sobre isto que reafirmo o que digo!

    - Não é possível, meu caro! Isso faz a medicina regredir milênios.

    - Regredir? Não, de forma alguma! - se prepara para a sua tacada. - Se eu estiver certo (e tenho quase certeza de que estou), regredimos mesmo foi quando desprezamos a teoria antiga, que já estava correta!

    O Cardiologista acompanhava a discussão sem participar do jogo.

    - Existe uma pequena rede neural no coração controlando o ritmo dos batimentos. - disse, tentando contribuir com sua especialidade. - De certa forma, nossos corações têm um micro-cérebro próprio bem primitivo.

    O Neurologista lustra seu taco de golfe, enquanto o amigo Oncologista se prepara para a próxima tacada.

    - É minha especialidade que os deixa tão perplexos, não é? Incompatível com minha proposta? Pois, ao contrário, é o fato de eu conhecer muito bem o que conheço que me permite afirmar isto que estou afirmando!

    Ele dá sua tacada, também certeita.

    - Sua vez, amigo! Empatamos!

    Ao dar a próxima tacada, percebe que a visão se turva rápido! Por isto jogou a bola tão longe do alvo! Mas, competitivo, seria incapaz de se desculpar por um mal-estar momentâneo.

    - Você confirma sua teoria de que o cérebro não é sede de nossos pensamentos, memórias e personalidade? - desafia, recuperado do mal-estar repentino.

    - Vou mais longe, mas... vamos lá! Continuemos com esta linha de raciocínio.

    - Nosso amigo afirma que a personalidade não está no cérebro. - questiona o Cardiologista.

    - Somos cientistas, meu caro! Personalidade é um conceito abstrato demais! Defina melhor! Cite características mais objetivas de nossas personalidades.

    - Nossas vozes, por exemplo.

    Um sorrizinho sarcástico apareceu na face do Neurologista. O Oncologista percebeu rápido também a falácia do amigo Cardiologista, mas deixou o colega Neurologista desfrutar de seu momento.

    - Bem se vê que Fonoaudiologia não é teu forte, meu amigo.

    Um silêncio constrangedor. O Cardiologista logo percebeu a besteira que dissera, mas achou que interferir, tentar consertar, seria pior. Deixou o Neurologista curtir seu momento de Glória Momentânea:

    - Óbvio que nossas vozes não estão no cérebro, e sim em nossas cordas vocais!

    - Mas... - o Cardiologista ainda tentava concertar o "inconsertável". - Não me referia somente à voz, mas ao sotaque, às particularidades de pronúncia...

    - Memória muscular, uma combinação de movimentos condicionados de músculos do diafragma, língua, faringe, lábios... De certa formas, algo bem mais evidente numa outra característica marcante de nossas personalidades: a caligrafia!

    Uma característica estereotipada dos médicos, famosos pela letra ruim. Injusto, pensou o Oncologista indignado, sempre orgulhoso de sua letra. E com razão, pois suas receitas eram sempre elogiadas pelos pacientes.

    - Então nossa caligrafia não está registrada em nossos cérebros, segundo sua teoria... - continuou o Oncologista, cutucando o colega.

    - Óbvio que não! Tal característica está registrada nas memórias dos músculos da mão! É o treinamento de seus movimentos que determina a caligrafia de alguém. O cérebro é totalmente dispensável neste caso também...

    Pensa um pouco antes de revelar. Poderia revelar tal idéia? Bem, estava entre amigos! Ninguém o entregaria por uma inocente hipótese! Ele bem sabia que não era só "hipótese", mas não tinha por que abrir tudo de uma vez.

    - Imaginei uma vez tal experiência: transplante de antebraço! O receptor não acabaria assumindo a caligrafia de seu doador, dado que a "memória caligráfica" estaria registrada em seus músculos? Bem... - ele ponderou bastante, pois sabia o resultado: já fizera a experiência! - Acredito que ela provaria parte de minha teoria.

    - A personalidade é muito mais complexa que voz e caligrafia. - acrescentou o Oncologista, sentindo de novo uma leve pontada na cabeça.

    - Meus caros cientistas -  continuou com sarcasmo. - Definam melhor esta palavra: "personalidade"! Nossa bem-amada ciência nó pode responder perguntas formuladas com exatidão. Para questões inexatas, favor recorrerem à Teologia... - e explode numa gargalhada até que bonita de se ouvir.

    - Pessoas calmas, outras violentas, hiperativas, ansiosas...

    - Explicado por variações glandulares! Excesso de testosterona explica muito bem o comportamento violento. A maioria das disfunções digestivas (problemas com produção de insulina, por exemplo) também afetam bem o comportamento. Nenhuma necessidade de interferência cerebral para estas variações de comportamento. Eu poderia explicar cada um deles como disfunção hormonal, mas isto seria bem maçante...

    - Ninguém sobrevive sem cérebro!

    - Explique melhor. - desafiou o Neurologista.

    Ele era um Neurologista brilhante! Não se arriscaria a afirmar tais besteiras se não tivesse alguma carta escondida na manga.

    - Morte Cerebral é considerada morte definitiva!

    - Nós DEPENDEMOS do cérebro, mas não precisamos dele.

    Os dois médicos, Oncologista e Cardiologista, olham abismados para o Neurologista.

    - Onde reside nossas memórias, raciocínio, percepção? Esta informação toda?

    - Você acredita que é tanta informação assim?

    Com o taco na mão, nem estava mais tão interessado assim no jogo. A discussão estava bem empolgante!

    - O Tiranossaurus Rex, com 15 metros de altura, tinha cérebro com o tamanho de uma noz...

    - Se extinguiram.

    - Correção: FORAM extintos! Por um acidente cósmico. Eles não tinham controle sobre isto. Nós próprios desapareceríamos ainda bem mais rápido do planeta se precisássemos enfrentar cataclisma semelhante!

    O Cardiologista olhou para o vazio, sem entender nada.

    - Um Neurologista que não acredita no cérebro...

    Ele sentiu a crítica. Bom, não dava para discutir com alguém especializado numa bomba muscular. Olhou fundo nos olhos do Oncologista.

    - Você é a pessoa aqui mais capaz de entender o que vou afirmar agora: o cérebro é um Tumor Nervoso!

    O Oncologista ouviu aquilo sem saber como reagir.

    - Não me olhe assim, você entendeu bem! Um parasita, desnecessário! A Notocorda, agora nosso feixe espinhal, nos explica a personalidade, memória e raciocínio.

    Ele começava a entender, mas não queria.

    - Você estava ansioso para conversar comigo? Nem imagina o quanto esperei para discutir contigo, meu caro ganhador do prêmio Nobel!

    A enxaqueca ficava mais forte. As imagens voltavam a se turvar.

    - Seu prêmio Nobel foi por provar o fato de células parasitas tentarem se perpetuar afetando o próprio código genético de seu hospedeiro, não é?

    - Sim! - ele concordou, com a dor nas têmporas já quase insuportável.

    - E o que afirmo é isto: o cérebro é uma doença! Um parasita! Um tumor desenvolvido na extremidade superior da Notocorda, que aprendeu a se propagar interferindo no DNA de seus hospedeiros!

    Sua visão se tornou totalmente turva! Começou a sentir cheiros e gostos estranhos. Ele não era ignorante! Mesmo não sendo sua especialidade, ele sabia muito bem reconhecer os sintomas!

    - Não precisamos do cérebro para viver! Mas ele nos armou uma arapuca bem elaborada no correr do processo evolutivo!

    O Cardiologista percebeu logo o colega Oncologista caindo e se estrebuxando convulsivo no chão. O Neurologista estava perdido em seu monólogo, e demorou mais para notar o que acontecia à sua volta.

    - Mas eu já sei curar esta dependência! Caros, provarei que o Tumor Cerebral pode ser eliminado! A Humanidade poderá enfim continuar evoluindo sem esta doença, poderá recuperar o tempo perdido...

    - Quer calar a boca? - explodiu o Cardiologista. - Não percebeu ainda que nosso amigo aqui está sofrendo um AVC??

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    Ele acordou confuso. Aos poucos a memória voltava. Bem aos poucos. Mas se concentrou no presente. Estava numa cama esterilizada, branca, de algum hospital. Ouviu vozes familiares:

    - Ele acordou.

    O raciocínio voltava. Lento, mas constante. Reconheceu o colega Neurologista entrando no quarto.

    - O que aconteceu?

    - Você teve um AVC! Acidente Vascular Cerebral.

    - Eu sei bem o que é AVC! Foi resolvido?

    - Com certeza! De forma definitiva!

    Ele pensou. Nunca havia percebido antes o problema!

    - Pode surgir sem aviso mesmo! - explicou o amigo à sua frente. - Não se culpe, não foi desleixo.

    - Preciso me cuidar...

    - É recomendável, mas para outros problemas! Você nunca mais terá um AVC.

    - Como assim?

    Teria percebido, de novo, um risinho cínico no rosto do amigo?

    - Ah, que dor de cabeça!!!

    Tentou levar a mão até a testa, mas o amigo o segurou rápido.

    - É melhor não fazer isto por enquanto! Não até terminarmos a prótese... - disse o Neurologista, que também era Neurocirurgião, segurando firmemente seu braço.

    Sentia claramente um vazio inexplicável em sua consciência. Tentou se erguer para encarar melhor o amigo, e sentiu a cabeça inexplicávelmente leve.

    - O que aconteceu comigo?

    - Você sofreu um AVC fatal, meu amigo!

    - Fatal? Como fatal? Se eu ainda estou aqui...

    - Resolvemos o problema definitivamente.

    Nada fazia sentido.

    - Resolveram?

    O amigo Neurologista resolveu se abrir.
   
    - Amigo, tomei a liberdade de decidir por você!

    Ele quase conseguiu entender! Mas se recusava a acreditar.

    - Era mais importante te manter vivo!

    - Você me usou de cobaia! - concluiu enfim...- Você testou aquela idéia maluca comigo!

    O olhar não tentava esconder nada.

    - Era a única forma de te preservar, amigo! Sua mente era preciosa demais para ser desprerdiçada por um acidente estúpido! Por uma disfunção, falha de funcionamento, num órgão que nem precisava existir...

    Ele tentou digerir a informação. Finalmente, exigiu:

    - Espelho! Me dê um espelho!

    - Não é boa idéia, amigo! É melhor esperar pela prótese...

    - Espelho, rápido!!! Exijo saber como estou agora!!!

    O Neurocirurgião enfim falou, lhe entregando um espelho:

    - Não se surpreenda! Logo isto se tornará comum...

    Ele olhou seu novo rosto no espelho. Sem mais testa, serrada pouco acima da altura das sombrancelhas. O amigo continuava:

    - Você vive, não é? Continua raciocinando.

    Ele deslocou o espelho. Viu a parte superior, inexistente, do crânio. Seu cérebro, precisamente removido (todas as veias e artérias cuidadosamente suturadas), aguardando uma proteção sintética.

    - Você ainda pensa, não é?

    - Sim... - de fato, ele ainda pensava.

    - E cadê o cérebro? Acha que ainda pensa com o cérebro?

    De novo um intervalo difícil de se enfrentar.

   - Você ainda acha que precisa do cérebro para existir? Você continua existindo e raciocinando, sem cérebro! Ninguém nunca precisou do cérebro!

    Não existia! Certamente  ele nunca mais na vida teria um Acidente Vascular Cerebral, pois ele não tinha mais cérebro!

    A mão perdeu firrmeza. O espelho caiu e se quebrou no chão.
   
    - Cadê meu cérebro, cara? Quem autorizou isto?

    - Você mesmo!

    - Eu????

    Olhou para o antebraço esquerdo decepado! Canhoto, sua mão mais ágil fôra removida!

    - Ah... entendi...

    Viu as suturas recentes no antebraço dirteito do amigo. Estranhíssimo! Ele exibia agora, para quem quisesse ver, duas mãos esquerdas!!! Uma natural, e a segunda claramente implantada.

    - Você mesmo assinou a permissão... - o Neurologista ergueu sua mão direita, invertida, com uma mão esquerda estranhamente implantada nela. E para qualquer pessoa ficaria claro que aquela mão não era dele...


*** FIM ***

Idade dos Porquês


    Brundle acordou aquela manhã pensando da morte. Não era bom uma criança daquela idade pensar na morte, muito menos na própria morte. Mas ele teve um pesadelo. Neste pesadelo ele acordava como sempre fazia toda manhã, tomava seu banho, digitava no terminal as coordenadas de sua escola, deixava sua casa, mas... não chegava à escola!
   
    - Estou com dor de barriga... - arriscou, mesmo certo de que esta desculpa não conseguiria convencer nenhuma mãe do mundo.
   
    - Se apronte logo, Brundle! E não me atrase mais do que já estou!
   
    Ele estava na idade dos porquês. "Por que o céu é azul? Por que o sol é quente? De onde vêm os bebês?". Com paciência incrível, a mãe lhe respondia sobre o espalhamento da radiação eletromagnética na atmosfera, reações termonucleares de fusão entre hidrogênio e hélio, morfogênese da codificação genética...
   
    - Posso ir pra escola hoje do outro jeito?
   
    - Que jeito, Brundle?
   
    - Do jeito normal...
   
    Jeito normal? Do que aquele menino estava falando agora?
   
    - O que você tem de verdade, Brundle?
   
    - Tive um sonho ruim...
   
    Ela abraça o filho com ternura, mas isto não conseguiu tirar de sua cabeça aquela terrível idéia de morte. O pesadelo fôra nítido demais!
   
    - Posso ir hoje de "Maglev"?
   
    - Filho, você sabe muito bem que não existem linhas de "Maglev" até a lua!
   
    - Um foguete então. Ou poderia pegar uma carona num cargueiro...
   
    - Seth Brundle!!! Vou prepara seu café da manhã, e assim que voltar quero que você já esteja pronto!!
   
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    Veronica começou a programar a lista do café da manhã no materializador de alimentos da cozinha. "adicionar 1 pão com manteiga, adicionar 2 panquecas, adicionar 1 copo de leite achocolatado". Pensa um pouco. Abre o materializador, coloca um copo dentro dele, fecha e completa as instruções: "excluir copo e  materializar apenas conteúdo líquido, adicionar 1 maçã". Digitou o botão para materializar o pedido, e o café da manhã apareceu dentro do equipamento como era o esperado a séculos.

    Veronica pegou a maçã. Imperfeita, assimétrica, como era o esperado de todo alimento orgânico. Mas olhou bem aquela imperfeição particular daquela maçã. Não seria a mesma imperfeição do café da manhã de ontem? E do café de anteontem? Estaria o fornecedor replicando alimentos materializados antes, ao invés de enviar ao aparelho alimentos frescos, genuínos e originais? Para... o quê? Aumentar seu lucro de forma desonesta? Não estava explícito no contrato de fornecimento que as materializações seriam sempre de gêneros alimentícios inéditos, sem reenvio de cópias? Até onde chegaria a ganância humana? Hoje não, estava apressada! Mas amanhã teria uma conversa séria com o dono do estabelecimento...

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    - Não acredito que nem saiu da cama, Brundle! - explodiu a mãe, levando a bandeja do desjejum...

    - Não quero ir hoje, mãe! Não pelo portal!

    - Tem a ver com sua pergunta de ontem, não é, Brundle?

    Sim, Brundle era uma criança incomum. Excepcionalmente curiosa. Era inevitável que aquela pergunta acabasse surgindo: "Como funcionam os portais? Como somos teletransportados, mamãe?". Ela própria tinha uma idéia bem rudimentar do mecanismo. Exceto por alguns técnicos muito especializado, poucos sabiam com exatidão. Isto apesar de ser uma tecnologia já usada a alguns séculos... Mas, como sempre, ela se esforçou para explicar:

    - Nossa matéria é scaneada, Brundle. Sua informação é transmitida pedaço a pedaço para o destino, e reconstruída lá.

    - Célula por célula, mãe?

    - Sim, célula por célula!

    - Átomo por átomo?

    - Sim, Brundle! Átomo por átomo! - ela já começava a ficar impaciente.

    - Próton por próton? Nêutron por nêutron? Elétron por elétron?

    - Sim, Brundle!!! -  ela estava a ponto de explodir!

    - E os spins dos elétrons também são preservados, mãe? Isso também é transmitido no teletransporte?

    - Brundle, onde quer chegar, rapazinho? ÓBVIO QUE SIM!! - gritou, embora não tivesse a mais leve sombra de certeza disso.

    - E se o materializador errar ao codificar a orientação, e materializar dois elétrons de mesmo spin no mesmo orbital?

    - Tem o princípio da exclusão, Brundle!! Seu professor de Mecânica Quântica já não te deu esta aula?

    - Chato...

    - Que foi, rapazinho? O que disse?

    - Aula chata esta mecânica quântica. Gato morto-vivo, partículas que também são ondas... Nunca vou usar estas porcarias para nada...

    - Ah é? E como você acha que funciona este computador que você tem implantado na sua testa, hein? Me explica. E pare com esta conversa boba sobre portais invertendo o spin dos elétron...

    - Mas... E SE, mãe?

    - Brundle, tome logo seu café e pare de pensar besteiras!!!

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    Quando Verônica voltou, Brundle olhava fixo sua maçã.

    - Parece a mesma de ontem...

    Ela não discordou. Não dava pra disfarçar o fato.

    - Sonhei com o destino do original, mãe! Da parte nossa que é copiada pelo portal de origem...

    - Como assim, filho?

    - Me desmaterializo aqui em casa e sou reconstruído na lua, não é?

    - Exatamente!

    - Que acontece com meu original?

    Ela pensou um pouco. Explicou confiante:

    - E=mc^2! Seu original é desmaterializado, e se transforma na energia usada para transmitir as informações de sua cópia, rematerializada no destino.

    - Eu deixo de existir???

    - Por alguns momentos. Enviado à lua, isto leva pouco mais de um segundo até você ser reconstruído num portal de lá, ao lado de sua escola... O tempo para a informação, na forma de ondas eletromagnéticas, chegar até lá.

    - Durante pouco mais de um segundo eu não existo.

    - Sim, Brundle!

    - Se meu destino for plutão, ficarei então um bom tempo sem existir...

    - Sim... - ela não sabia onde o filho queria chegar.

    - Quer dizer, fico temporariamente morto?

    Ah!!! Então era este o ponto!

    - Lógico que não, Brundle! Eu diria que temporariamente suspenso, até ser rematerializado. Você ainda existe, sua informação apenas mudou de forma para viajar mais rápido, na velocidade da luz.
   
    - Sentimos algo na viagem? Continuamos pensando?
   
    - Lembra daquelas férias que passamos em Saturno? Você sentiu que a viagem durou quase uma hora?
   
    - Não. E eu achei que demoraria. Saturno é bem longe, não é mesmo mãe?
   
    - E se fôssemos em naves espaciais levaria semanas! Por teletransporte durou pouco menos de uma hora, e mesmo assim, por estarmos suspensos durante a viagem, ela nos pareceu instantânea...

    - Mas... só é copiada minha matéria?

    - Sim!

    - E eu, minhas lembranças, habilidades?

    - Registros químicos de ligações sinápticas registradas no seu cérebro, reproduzidas na íntegra.

    - Toda a matéria reproduzida? Só a matéria?

    - Brundle, a matéria é tudo o que há para ser reproduzido!

    - E minha alma?

    A mãe se desesperou! Quem estava tentando corromper seu filho com estas idéias absurdas?

    - De onde você tirou esta idéia, menino?

    Ele seria incapaz de entregar o melhor amigo. Arriscou:

    - Li num livro velho...

    - Você anda lendo aqueles livros religiosos antigos? Quantas vezes vou ter que te falar que isto não é o tipo de coisa para ser lida por pessoas da sua idade? Você não entende o contexto todo. Isto não é coisa para ser lida por crianças como você! Quando crescer, aí sim você escolhe se quer seguir alguma religião ou não, e, se for o caso, qual delas. Tem várias novas e outras bem antigas para escolher. Mas por enquanto, você só tem que se preocupar com a escola, certo? Sua professora me disse que você não foi muito bem naquela última prova de Aplicações Práticas da Teoria das Cordas...

    O amigo lhe alertara sobre esta resistência previsível. Tentou seguir então por outro caminho:

    - Meu original é então desmaterializado para... fornecer energia à replicação?

    - Esta é a idéia, filho!

    - Desnecessário, né? Com tantas outras fontes de energia... Nosso próprio sol, buracos negros, energia escura...

    - Digamos que seja um compromisso ambiental: você fornece a energia para se teletransportar se desfazendo da própria matéria original.

    O pesadelo ficou agora bem vivo em sua lembrança.

    - E se der errado, mamãe?!! - o pavor em seus olhos era indisfarçável! - E se eu for desmaterializado aqui sem ser rematerializado lá? Para onde irei então?

    - Brundle, isto nunca aconteceu em séculos!!

    - Por quê? O que impede?

    Verônica pensou... Já estava atrasada, mas não podia deixar esta dúvida na cabeça do filho.

    - Ih!!! Esqueci as torradas!!! - e saiu, mas na verdade não havia torrada nenhuma... - Já volto, Brundle.

    Ela ordenou a materialização de torradas, pois precisava justificar sua escapada. Mas também aproveitou para perguntar ao computador central a respeito de teletransportes mal sucedidos do passado.

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    - Torradas com geléia para meu filhão!! - surgiu Veronica, com uma resposta parcialmente preparada. Esperava que fosse capaz de convencer o filho incrivelmente inteligente (um orgulho, mas ao mesmo tempo um tormento para ela).

    Brundle comeu uma torrada, desconfiado.

    - E então, "mami"?

    - Não tem como acontecer, filho! Se o portal emissor percebe que o receptor não está disponível, ele rematerializa o passageiro.

    - Como?

    - Oras bolas... Ele te scanneou, não é? Sabe como te refazer de novo...

    - Então...

    O olhar de Brundle vagava longe. O que se passaria em sua cabeça?

    - Ele armazena uma cópia completa de mim antes de transmitir? Para o caso da transmissão falhar?

    - Acho que... acho que sim, Brundle! Êta, moleque!!! Para de me fazer perguntas difíceis!!!

    - E se... ele me materializasse na escola, lá na lua, sem me desmaterializar aqui na Terra? Passariam a existir então dois Brundles idênticos no universo?

    - Ninguém nunca fez isto! É um absurdo!

    Ela olhou o relógio holográfico projetado no meio do quarto.

    - Brundle! Você tem 15 minutos para tomar seu café, tomar seu banho e ir para a escola!

    E sai furiosa do quarto...


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    Tudo na mesma quando ela volta. Seria obrigada a recorrer às medievais palmadas para mostrar ao moleque quem era a autoridade ali?
   
    - Por que eu tenho que ir pra escola? Por que não desmaterializar e me rematerializar em seguida com as ligações sinápticas das aulas já registradas no cérebro reconstruído ?
   
    - Isso não existe, mocinho. Você anda vendo ficção científica demais pro meu gosto...
   
    Olha desconfiada para o filho:
   
    - Você anda assistindo escondido de mim a milésima temporada do Doctor Who por acaso?
   
    - Não, mãe! Lógico que não!
   
    - Você sabe muito bem que este negócio de viagem no tempo não existe, né? Você já teve na sua aula de Análise Cronológica a prova por absurdo do paradoxo de causa-efeito?
   
    Ele pensa, e dispara em desafio:
   
    - Podemos viajar para o futuro.
   
    - Brundle, todo mundo está viajando para o futuro o tempo todo. Já conhecemos o princípio da entropia desde a Idade Média!
   
    - Não, mãe! Estou falando de viajem instantânea! Sem envelhecer!
   
    - E como pretende fazer isso, meu "geniozinho"?
   
    - Ah, fácil!
   
    Veronica estava realmente curiosa para ouvir a explicação do filho.
   
    - Desmaterializo, gravo a informação num cubo holográfico e rematerializo uns 100 anos no futuro. Fácil assim, mãe!

    Ela nunca havia pensado em tal possibilidade.
   
    - Certo, voce dá um passeio daqui a 100 anos no futuro. E como vai fazer depois para voltar?
   
    - É, ainda não pensei nesta parte... - mas, antes que ela tivesse tempo de falar algo, Brundle disparou de novo - E se algo der errado na cópia, mãe?

    - Errado? Com todos os algoritmos de correção de erros envolvidos, filho? Impossível...

    - E se entrarem duas entidades genéticas diferentes no portal ao mesmo tempo?

    - Quê?

    - Sei lá. Eu e uma formiga. Ou então... - pensou bem antes de falar. Estaria se denunciando falando aquilo? Revelando que andava assistindo aqueles filmes antigos proibidos? Arriscou.. - E se uma mosca entrasse comigo no portal? Nosso código genético se fundiria? Eu apareceria na escola como um Brundle-Mosca?

    Era o cúmulo! O garoto estava abusando...

    - Onde você ouviu esta besteira, menino? Já está me tirando do sério!!!

    Puxa a coberta do preguiçoso.

    - Vai logo tomar seu banho, que sua aula começa em cinco minutos!!! BRUNDLE-MOSCA... Francamente!! Por acaso sua roupa se funde à sua pele quando você se teletransporta? Óbvio que não! O portal sabe diferenciar o material de origem espacialmente! Se uma mosca entrar com você no portal, você e a mosca chegarão intactos na lua, em seu colégio!

    O garoto ainda não estava disposto a se entregar.

    - O portal sabe então diferenciar no teletransporte a matéria que pertence ao meu corpo da matéria externa?

    - Lógico que sim!

    - Então sabe diferenciar o que é meu corpo e minhas roupas do que é sujeira?

    Veronica nem respondeu. Já imaginava aonde o menino pretendia chegar. Ele entendeu o "sim, prossiga" no olhar da mãe.

    - Então por que tenho que tomar banho neste frio do caramba? O portal não poderia me desmaterializar, separar a sujeira, e me rematerializar na escola sem esta sujeira, sem eu precisar tomar banho?

    - Ah moleque!!! - e disse enquanto mandava umas carinhosas sandaliadas magnéticas nas nádegas do menino. - Sabia que uma hora ou outra acabaria chegando nisso! Entra logo no chuveiro, que você tem só 30 segundos pra se teletransportar até a escola!!!

*** FIM ***
   
   

Autópsia


    Ele tivera muita sorte de nascer na época certa, e conseguir o emprego de seus sonhos: astrobiólogo! É para ele que vinham as criaturas mais estranhas de todos os cantos da via láctea. Alienígenas de todas as cores, tamanhos e cheiros (alguns deles bem desagradáveis, a propósito). Vegetais ambulantes que comiam carne, polvos com sistema esquelético interno e capazes de caminhar em terra firme, criaturas-balão, insetos gigantes com sistema digestivo fora de seus corpos... Já fizera autópsia de animais, vegetais e uma quantidade incontável de outros tipos de alienígenas que não se encaixavam em nenhuma destas duas classificações de vida às quais estamos acostumados desde sempre.

    Porém havia uma quantidade surpreendente de humanóides, muito mais do que ele imaginava existir quando criança. Não necessáriamente inteligentes, mas anatomicamente bem parecidos. Hoje em dia já se sabia que tal fato nem era grande surpresa, que tudo ficava claro quando se entendia o conceito de evolução convergente. De fato simulações matemáticas precisas apontavam que, dentre todas as outras soluções possíveis, aquele formato específico de duas pernas dobráveis, abdômem, tronco, braços articulados de cada lado do tronco e uma cabeça apoiada acima dele era mesmo a solução geométrica mais eficiente para criaturas que caminhavam sobre superfície seca, assim como o formato de torpedo dos tubarões, baleias e golfinhos era a melhor solução hidrodinâmica para os seres aquáticos, e a forma de balão a solução ideal das criaturas flutuadoras das estratosferas. As leis da evolução se encarregavam, em todos os pontos da galáxia, de encontrar as raízes geométricas ótimas destes problemas de equações anatômicas...

    O astrobiólogo caminhou radiante para a sala de autópsias. Era um alienígena novo, nunca observado antes. Ele seria o primeiro a separar os tecidos externos da criatura com seu bisturi, observar com a curiosidade de uma criança o funcionamento interno daquele espécime. Por que ele fazia autópsias com um bisturi antigo de metal e não com os precisos bisturis de plasma? Ele dizia gostar da sensação dos tecidos orgânicos sendo rasgados, sensação esta que não existia quando utilizava um bisturi de plasma. Um afiado bisturi metálico o colocava em contato mais direto com o alienígena deitado sobre a mesa de autópsias, criava uma espécie de comunicação muda entre o espécime deitado e o astrobiólogo. Bom, obviamente que o termo "deitado" usado aqui não se aplica precisamente a todos os espécimes, e sim àqueles 74% que apresentavam simetria bilateral.

    Vestiu a máscara ansioso e entrou na sala, onde a equipe já o aguardava. Mesmo de máscara, sentiu um cheiro de ozônio ionizado no ár. Não exatamente desagradável, mas o "cheiro de eletricidade" incomodava um pouco. Olhou para a criatura sobre a mesa de autópsias: humanóide! Braços finos e bem alongados como o tronco, desproporcionais em relação à perna incrivelmente curta e pés enormes. Era essencialmente branco, pele pálida, mas apresentava listras longitudinais ao longo do corpo que pareciam ser levemente prateadas. As listras pareciam convergir para o centro do tórax da criatura, de onde se irradiavam sobre a pele para o resto do corpo. Fez a pergunta que sempre lhe vinha na cabeça quando se deparava com um ser humanóide para ser autopsiado:

    - Ele era racional? Inteligente?

    - Acreditamos que sim, doutor. Talvez até tenham desenvolvido uma civilização rudimentar, apesar de certamente apresentarem uma tecnologia bem primitiva se comparada com a nossa.

    - De onde vêm? Os da espécie dele vivem em cidades?

    - Não sabemos...

    - Não sabem? Como assim?

    - É daquele planeta novo, o que está sempre coberto de nuvens. A luz solar mal atinge sua superfície, e as tempestades são permanentes. Até termos enfim chegado nele recentemente, não havia como observar o que se passava na superfície dele, debaixo de todas aquelas camadas de nuvens de tempestade...

    - Quem diria! Sempre achamos que as condições daquele planeta eram incompatíveis com a vida. E olha ele aí na nossa frente: vida! Morto agora, mas já foi vida! E vida humanóide! E vida humanóide inteligente! - se algum dos assistentes prestasse mais atenção, veria um princípio de lágrima se formando nos olhos do astrobiólogo, acima da máscara.

    Ele sempre adotava um tom mais respeitoso quando sabia estar autopsiando um ser inteligente. Por mais estranho que fossem os alienígenas, por mais diferente, assimétrico, asqueroso, disforme ou mal-cheiroso, o fato de serem também inteligentes e racionais fazia o doutor sentir de certa forma que ele e o espécime eram seres de uma mesma família. Se o ser inteligente ainda era anatomicamente humanóide, o doutor sentia praticamente como se fosse um irmão do mesmo. De bisturi na mão, se encaminhou logo para a cabeça do alienígena, no extremo oposto da mesa:

    - Então, companheiro! Mostra pra gente aqui essa sua massa cinzenta!

    Mas ele mal chegou a encostar o bisturi no crânio do alienígena. Recuou confuso, observando sua face. Olhos enormes sempre abertos, nenhuma pálpebra... Característica bem comum em humanóides, não foi isso que ele estranhou. Aliás deveria ser bem escuro na superfície do planeta, escuridão esta vez ou outra cortada por um raio das tempestades perenes que deviam existir lá embaixo. Era de se esperar os olhos enormes, para captar com eficiência a pouca luz que deveria existir no ambiente. O nariz se resumia numa pequena fenda no centro da face, nada surpreendente também ao se lembrar que não haveria muita dificuldade em se respirar a atmosfera densa do planeta por aquele pequeno orifício no centro do rosto. Foi outra coisa surpreendeu o astrobiólogo.

    - Ele não tem boca???

    - Não tem, doutor! Tomamos a liberdade de fazer uma inspeção geral na criatura antes da sua chegada, e constatamos que também não tem ânus...

    - Eles não comem então? Não defecam? Não têm sistema digestivo? Como se alimentam?

    - Estamos tão ansiosos para descobrir isto quanto o senhor!

    - Então vamos deixar o cérebro para depois! O que me interessa agora é esta... placa prateada no peito dele.

    Conseguiu separar o tecido, mas com alguma dificuldade. Era duro, e acabou cegando totalmente seu bisturi de estimação.

    - Nunca cortei uma estrutura óssea tão dura!

    - Acho que não é óssea, doutor. Me permite analizar um pedaço no espectrômetro?

    - À vontade.

    Felizmente haviam outros bisturis. Entre eles um de nanometal confeccionado por um nanoartesão de renome, capaz de cortar até diamante como se fosse manteiga. Não seria hoje que se renderia aos impessoais bisturis de plasma... Separou as secções do tórax, revelando um interior preenchido de substãncia quase transparente, levemente amarelada. O PH alto acusado pelo sensor mostrava ser um fluido alcalino. Felizmente a luva protegeu as mãos precisas do astrobiólogo, que também era um exelente cirurgião apesar de não exercer a atividade a tempos. Porém ele sempre tentava autopsiar os espécimes com leveza e precisão, como se elas ainda estivessem vivas.

   - O espectrômetro acusa uma liga de metal orgânico, doutor.

   - Vocês me trouxeram um robô para ser examinado? - brincou, sempre de bom humor.

   - São raros, mas já vimos casos parecidos antes. Da mesma forma que agrupamos cálcio em ossos e dentes, algumas criaturas da galáxia são capazes de fazer isto com metais, principalmente se eles são abundantes no planeta de origem. Mas o fato de observarmos isto num de anatomia humanóide é algo inédito.

    - Será que os ossos dele - e se referia a "ele" já como um velho amigo - também contém traços de metais?

    Se dirigiu à mão da criatura, na extremidade do longo braço. Seis dedos quase que exatamente distribuídos numa formação hexagonal. Apenas um deles, o próximo ao antebraço, se projetava para frente, capaz de tocar a "palma" daquela mão circular numa versão bem alienígena de um "polegar opositor". Ainda era uma teoria em estágio embrionário, mas muitos astrobiólogos estavam convencidos de que a simples observação do formato geométrico das mãos de espécies humanóides (quantidade de dedos, distribuição, nível de articulação) poderiam revelar muito de seu processo evolutivo! Inclusive mãos e pés eram as características que mais distinguiam tais espécies, a característica que deixava claro que, apesar do formato geral dos corpos terem se desenvolvidos bem parecidos pelos príncípios de evolução convergente, cada qual tinha sua própria história evolutiva. Formato de mãos e pés eram, por assim dizer, uma "impressão digital" dos humanóides, um registro das mutações que precisaram sofrer para se adaptarem a cada ambiente em particular.

    - Olha a placa metálica aqui de novo, na palma das mãos!

    Com delicadeza, quase como se estivesse poupando a criatura inerte na mesa de um sofrimento desnecesário, ele abriu a palma direita do autopsiado em direção ao antebraço. Em menor escala, a mesma bolsa observada no tórax, o mesmo líquido interior. Separou bem as metades, e viu uma superfície organo-metálica idêntica na extremidade oposta, do lado de dentro. Voltou ao tórax, e viu que a estrutura se repetia, ampliada. Mas o dorso da mão era de pele branca percorrida por listras prateadas, bem como as costas da criatura.

    - Não deveria existir coração e pulmões aqui? - pergunta apontando o tórax aberto, já livre do líquido alcalino e separado por expansores metálicos. - Se ele tem nariz, ou algo parecido com isto, então ele deve respirar, não é?

    - Já autopsiamos humanóides com pulmões no abdômen, doutor...

    Ele apalpou o pescoço do alienígena, sentindo um tubo rígido no interior.

    - Parece uma traquéia. Alguém tem dúvida de que está conectado à fenda nasal dele?

    - Nenhuma! E podemos verificar isto rápido numa tomografia, não precisamos ainda danificar muito sua caixa craniana para comprovar.

    - Ótimo! Vamos ver então pra onde vai esta traquéia...

    Abriu o pescoço do alienígina de cima para baixo. Quanta surpresa mais o espécime novo revelaria? A traquéia de dividia em dois troncos, direito e esquerdo. Se afunilavam rápido, ficavam menores... e acabavam em nada! Um Y invertido que não era conectado a nada que de longe pudesse lembrar um pulmão...

    - Raios!!! Pra que serve esta coisa??

    Mais atento, percebeu sairem várias vias aéreas finas ao redor deste Y central. Mais ainda: existia outro Y invertivo parecido atrás dele. Bem alto no pescoço (como ele não percebêra no início?) o tal Y traseiro se conectava ao principal, ambos eram conectados à uma via aérea comum que levava à fenda nasal. Pediu uma lupa, queria observar com mais cuidado as vias aéreas finas conectadas aos dois Ypsilons...

    - Parecem válvulas! Todas para dentro no Y traqueal frontal, e todas para fora no Y traqueal traseiro... - ele já sabia a resposta, mas desafiou os ajudantes: - Alguma explicação?

   Uma mocinha simpática, tímida, arriscou:

   - O Y traqueal dianteiro é para entrada de ár! O Y traqueal traseiro concentra as vias que expelem o ár consumido. O Y dianteiro é usado para a inspiração, e o traseiro para expiração.

    - Essa é minha pequena! - exclamou orgulhoso o astrobiólogo.

    Começou a cortar as microvias periféricas, todas elas envolvidas por um tecido muscular longitudinal.

    - Movimento peristáltico de sentido bem definido: para dentro no Y frontal, e para fora no Y traseiro. Numa atmosfera tão densa, era de se esperar que eles não precisariam respirar, e sim "deglutir" o ár de sua atmosfera, quase como se a estivesse bebendo! Confesso nunca ter visto nada parecido!

    Continuou em vão procurando algum sistema circulatório. Abriu o braço totalmente, em toda a extensão, procurando os vasos sanguíneos inexistentes. Se convenceu de que tal sistema circulatório não existia! Ou melhor, existia sim, só que ao invés de fazer circular um sangue cheio de moléculas de hemoglobina, cada qual transportando poucos átomos de oxigênio, seu sistema circulatório fazia circular o próprio ár, incrivelmente denso naquele planeta de gravidade altíssima. Eles tinham um sistema vascular-respiratório integrados numa estrutura única!

   Começou a separar os músculos pardos, procurando pelo sistema nervoso, nervos circundado por camadas de bainhas de mielina. Inexistentes! A consistência daquele tecido interno pardo dentro do braço, sua elasticidade... tudo apontava que era tecido muscular! Comandados pelo quê? Foi quando ele notou aqueles nódulos existentes mais ou menos no centro de cada músculo. Para onde se dirigiam?

   - Parecem glóbulos com um pequeno feixe se dirigindo para baixo, doutor. Para... dentro do osso?

   - Tudo é possível, meus caros! Abram suas mentes!

   Ele acompanhou o feixe do glúbulo central do bíceps. Ou do equivalente ao bíceps: era prática comum dos astrobiólogos tentar nomear estruturas novas com nomes já consolidados na medicina, sempre que possível, e sempre que a funcionalidade dos órgãos novos parecessem compatíveis com aquelas já conhecidas. Sim, o feixe realmente entrava no osso! Ele partiu parte do osso, fácil agora com a lâmina do nanometal, e deu a amostra a um ajudante:

    - Analise também isto no espectrômetro, por favor!

    - Eu diria, pela cor e densidade, que é de cálcio como nossos ossos. Mas vamos comprovar para ter certeza...

    Ele não precisou danificar mais o espécime para concluir que seu sistema nervoso corria totalmente dentro dos ossos. Não apenas na medula espinhal, como em sua espécie, mas em todos os ossos do corpo! Quando necessário, os feixes nervosos emergiam de dentro dos ossos, se agrupando em glóbulos centrais capazes de estimular os músculos. Qual a razão desta solução evolutiva?

    - Nenhum sinal de sistema digestivo até agora, pessoal. Vou deixar vocês decidirem: abro a caixa craniana para vermos sua massa cinzenta, ou continuo procurando um sistema digestivo abrindo seu abdômen??

    A resposta foi unânime: ABDÔMEN!!! Todos estavam interessados em descobrir o que aquela singular criatura sem boca nem ânus comia!

    - Um bisturi normal, por favor...

    Era um momento especial! Ele queria SENTIR o corte, e mesmo o bisturi de nanometal estragava um pouco tal contato! Empunhou com firmeza um belo bisturi de platina! Rasgou a pele branca da barriga desprovida de umbigo, apenas para de deparar com um tecido escuro bastante denso. Parecia borracha, tanto pela aparência quanto pela baixíssima condutividade elétrica! A pele externa, embebida na substância alcalina, era ao contrário bem condutiva! A criatura seria capaz de conduzir milhares de ampéres de corrente elétrica pela pele externa sem sofrer danos nos órgãos interiores. Bastava se lembrar que eles viviam num planeta sujeito a tempestades eternas para concluir que tal resistência a descargas elétricas deveria ser mesmo uma vantagem evolutiva incomensurável! As listras prateadas que adornavam a pele, agora sabidamente organo-metálicas, deveriam ajudar ainda mais no escoamento das cargas elétricas, com tecido isolante interno protegendo os órgãos vitais.

    - Abrindo agora camada escura interna isolante. - registrou o doutor no gravador particular, para seus próprios registros.

    Resistente, mas o tecido cedeu à lâmina de platina. Revelou uma estrutura interna estratificada em várias camadas, protegida por uma pleura transparente. Até o momento, nenhum sinal de intestinos, nem de pulmões abdominais (mas isto ele já esperava). "Abrindo pleura para estudar o órgão estratificado interno", ainda gravou, antes de ser lançado para trás num movimento convulsivo violento, assim que o bisturi metálico atravessou a pleura de proteção...

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    - Doutor??? Ei doutor!???  - a mocinha bonita estava aflita!

    - Hein??? Hã??? Que aconteceu? - a nuca latejava.

    - O senhor tomou um choque! Violento! Apagou por uns minutos...

    - Choque? Como?? De onde???

    - Do espécime...

    As lembranças voltavam aos poucos.

    - Eu estava seccionando a pleura abdominal, para estudar aquele órgão interno...

    - Pilhas, doutor!

    - Pilhas???

    - Acumuladores elétricos. Teve sorte, elas já estavam bem descarregadas! Senão o senhor não estaria mais aqui... Nem conseguimos imaginar a carga total que aquele órgão pode acumular...

     Seres elétricos, quem diria!!! Robôs? Era mesmo uma brincadeira de mal gosto?

     - Doutor, nunca permitiria que fizessem esta brincadeira de mal gosto com o senhor... - o olhar da moça brilhava. - A estrutura do acumulador é orgânica, bem parecida com a de algumas enguias que conhecemos do planeta Terra.

    - Mas neles é diferente, não é? Nas enguias, descarregar eletricidade é uma defesa. Elas não vivem disso! Na verdade, gastam energia de seus alimentos para produzirem esta carga, não é? Mas estes seres são diferentes...

    Semi-recuperado, sua mente viajava.

    - Eles VIVEM disso, não é? Eles não têm sistema digestivo porque não retiram energia dos alimentos. Eles acumulam... por assim dizer, eles, "comem" eletricidade. Estou sendo coerente até agora?

    - Totalmente, doutor! - completou a moça bonita. Seu interesse pelo astrobiólogo já era evidente, e realmente ninguém se importava com isso.

    O doutor olhou atento os braços longos, com aquela mão hexagonal na extremidade. Baixou então os olhos para os enormes pés, na extremidade da curta perna biarticulada. Sim, por mais estranho que pudesse parecer, aquelas pernas curtíssima em relação ao tronco apresentava dois joelhos cada uma! "Que desperdício!", ele pensava às vezes. "Pra que dois pontos dobráveis num membro tão curto?". Mas como dizia um ditado antigo, "Darwin explica..."

    Se aproximou cambaleante.

    - Ele está descarregado?

    - Sim, doutor! Fizemos isto logo que presenciamos seu acidente...

    - Ótimo. Podem erguer os dois braços do espécime?

    Assim os ajudantes obedeceram.

    - Que lhes parece? Imaginem a criatura em pé!

    Enfim reparou nos pés com cuidado. Os dedos não se concentravam à frente. O pé era um disco igualmente distribuído na extremidade das pernas, com seis dedos idênticos igualmente distribuídos ao longo de sua circunferência. Nenhum dedo maior diferenciado, tão comum nas mãos que acabara ganhando a nomenclatura de "polegar" para qualquer que fosse a anatomia da criatura. Sempre existia um dedo especial em todos os tipos de mãos! Mas nos pés isto variava, e eles tinham à frente um bom exemplo desta excessão à regra.

    - Olhem os pés, pessoal! Enormes, espaçosos, com um bom contato com o solo!

    Todos imaginaram a criatura, pernas curtas, pés enormes bem apoiados ao solo. Dois joelhos permitindo que o abdômen encostasse no chão sem que perdessem o equilíbrio, um tronco alongado, e braços compridos levantados, com os seis dedos esticados. A mocinha corajosa, certamente tentando chamar mais a atenção do doutor (e isto ele já havia percebido!), afirmou com entusiasmo:

    - Pára-raios!!!

    - Isso aí, menininha! Eles são pára-raios orgânicos!!!

    Num planeta coberto de nuvens e sujeito a tempestades eternas, com nuvens sempre bloqueando a luz solar, que melhor fonte de energia existiria do que os próprios raios das tempestades?

    - Tudo agora faz sentido! Quando sentem "fome", eles procuram um descampado plano, encostam bem o abdômen no solo, abrindo o máximo que podem os dedos dos pés, levantam o braço e ficam esperando pelos raios. É sua "comida"! Muita energia? Por isto mesmo eles são bem condutivos! Órgãos importantes, como o próprio sistema nervoso, ficam bem protegidos! Dentro dos ossos calcários isolantes. A propósito, a análise confirma isso?

    - Sim, doutor. Na verdade, cálcio agregado a substâncias isolantes. Nem sinal de metal orgânico neles...

    - Era o que esperava! Sem sistema circulatório nem sangue, não há necessidade alguma de medula óssea muito volumosa. O interior dos ossos ficam então disponíveis para assumir outra função: proteger o sistema nervoso!

    Todos ouviam admirados, espantados com a velocidade de raciocínio do respeitadíssimo mestre.

    - O plexo toráxico é um capacitor. Placas metálicas paralelas separadas por um dielétrico. Ele acumula grande carga por pouco tempo. O excesso é escoado para a terra, pelos pés enormes. O capacitor no plexo toráxico acumula a enorme carga por alguns minutos, o suficiente para carregar a estrutura acumuladora do abdômen. A estrutura não aguentariam a carga instantânea de um raio, mas podem armazenar cargas incríveis se elas forem acumuladas aos poucos.

    - Desculpe a interrupção, doutor! Este vídeo chegou a pouco tempo. É do planeta dele, registrado por uma sonda nossa!

    Criaturas humanóides circulavam de mãos dadas uma grande caixa cúbica. Pareciam dançar. Do alto da caixa cúbica, saíam várias hastes apontando para cima. Claramente eram pára-raios! Construção, planejamento tecnológico de criaturas inteligentes!

    - Que eles fazem, doutor?

    - Provavelmente.. diria que estão "comendo".

    - E a posição de "pára-raios" que o senhor mencionou? Estão formando uma roda apenas, de mãos dadas...

    - Olha com mais cuidado este aqui. - disse apontando a tela.

    De fato, parte da roda se quebrava. Uma criatura de cada lado encostava a palma da mão no cubo escuro. A roda de criaturas com as mãos dadas fechava um circuito elétrico.

    - Acredito que eles em alguma época tenham precisado deste recurso para viver, erguer as mãos para o céu em posição de pára-raios. Numa época em que ainda precisavam "caçar" para comer, aguardar pacientes pelos raios nos descampados planos. Nós mesmos já passamos por isso!  Acho que eles devem ter evoluído...

    - Evoluído? -  insistiu a mocinha bonita.

    - Sim, minha cara! Como acontece com várias outras espécies da via-láctea, eles aprenderam que não precisavam mais "caçar" para comer.

    Todos olhavam atentos. Já haviam entendido tudo, mas ainda assim esperavam a confirmação final.

    - Esses paralelepípedos enormes com pára-raios em volta são acululadores de raios! Hoje em dia não precisam mais "caçar" seus raios para se recarregarem. Eles aprenderam a armazenar sua "comida", e ao se darem as mãos fechando um circuito elétrico orgânico, eles fazem um banquete de confraternização!

    Todos estavam em êxtase! Era uma das autópsias de alienígenas mais surpreendente que presenciavam a vários anos! O doutor precisou quebrar o gelo.

    - Podemos analizar o crânio depois, gente! Até digerirmos os fatos novos. Mas... isto tudo me deu fome! Vou sair para um lanchinho! Alguém me acompanha?

    A moça bonita respondeu rápido:

    - Vou com você, doutor!

    Ambos saíram da sala de autópsia, se dirigindo para a parte de fora do instituto.

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    A gigante vermelha estava alta no céu negro, quando o doutor e a menina bonita chegaram na parte de fora. Várias toalhas brancas espalhadas pelo chão indicavam que aquele local era especialmente preparado para tal prática! O doutor se desfez de seu avental branco: abriu os botões frontais e deixou que o tecido caísse pelas suas costas. Ele estava nu. Como também estava nua a garota simpática, como ficou claro assim que ela também se desfez de seu próprio avental branco. Surpresa? Nenhuma! Eles normalmente viviam nus! O avental não passava de formalidade, uma mínima proteção ao se entrar em contato com tecidos alienígenas. Mas no dia a dia eles não tinham vergonha de exibir seus corpos. Se orgulhavam deles!

    Existiam algumas poucas espécies humanóides na galáxia que adquiriram a prática de cobrir com tecidos artificiais suas anatomias. Uma verdadeira incógnita evolutiva! O que os fazia se envergonhar tanto de seus corpos a ponto de precisarem cobrí-los com tecidos sintéticos, que não eram suas próprias peles? O doutor nunca entenderia isto.

    O doutor e a menina se deitaram de bruços sobre duas toalhas estendidas no chão. Se desejavam? Sim, existia uma atração forte, apesar de incompleta. Copulariam? Óbvio que não! Estavam lá porque sentiam fome, precisavam comer! E, de qualquer forma, que poderiam fazer sozinhos um macho e uma fêmea? Absolutamente NADA aconteceria se não estivesse presente também um integrante do terceiro sexo, capaz de completar a tríade cromossômica da espécie e abrigar em seu ventre o óvulo da fêmea fecundado pelo espermatozóide no macho, completar a morfogênese da espécie com uma terceira hélice cromossômica...

    Com ambos nus e deitados de bruços, ficou clara a existência daquela curiosa estrutura em suas costas. Asas? Finas e bem recolhidas, a princípio parecia que sim. Mas quando elas se abriram, ficou claro que não eram exatamente asas... Na verdade, naquela atmosfera rarefeita (algo que o céu diurno escuro deixava bem evidente) nenhuma asa, por maior que fosse, seria capaz de fazer qualquer criatura levantar vôo. Impossível! Aquele planeta era desprovido de aves ou insetos voadores... Que inveja sentiam da Terra neste ponto!! As "asas" do doutor e da menina se abriram. Eram brilhantes, quase prateadas! Se organizaram  numa borda circular. Agrupadas, claramente desenvolviam uma geometria parabolóide nas costas das criaturas!

    Um membro se  estendia da nuca de ambos. Antes oculto pelas asas, agora se separavam, desprendidos das costas. Bem fino, a extremidade em forma de disco subia vagarosa. Parecia procurar algo... Óbvio: o ponto focal do parabolóide prateado formado pelas "asas". Ambos tentavam se posicionar o melhor que podiam na direção do sol vermelho. O doutor, primeiro a conseguir posicionar a extremidade do membro no foco do parabolóide, comentou satisfeito:

    - Hum, que delícia!!! O espectro solar está particularmente saboroso hoje, não acha, minha pequena?

    Apaixonada pelo doutor, ela estava atualmente preocupadíssima em conquistar um belo exemplar do terceiro sexo disposto a desenvolver um óvulo seu fecundado pelo belo doutor. Pensou na grande sorte que tinham os seres bissexuados da galáxia, em como deveria ser bem mais fácil para eles encontrarem suas metades complementares do que para os indivíduos de sua espécie tentando achar uma dupla capaz de completar suas terças partes individuais. Mas precisou concordar com o doutor: o sol estava mesmo bem delicioso hoje!

    - Sim, este infravermelho próximo dá um sabor bastante intenso à radiação, reforçado pelo amarelo-verde! - com visão tetracromática, esta era uma das quatro cores primárias do espectro que as retinas da espécie conseguiam captar. -  Mas... tem também um fundinho picante de ultravioleta. O senhor consegue sentir?

   Ele sentia. Deitado, se deliciando com a radiação de sua estrela, ele pegou na mão da companheira de refeição mesmo sabendo que nada aconteceria naquele momento sem o intermédio do terceiro sexo. Apesar de não concordar com tal expressão de "machismo", era o esperado por todos desde as épocas mais remotas que a fêmea da espécie era quem deveria ser a encarregada de procurar e conquistar um organismo do terceiro sexo, gestador do embrião. A sociedade nunca via com bons olhos um macho tratando de gestação com o sexo neutro. Isto era algo para as fêmeas resolverem, afinal os óvulos fecundados eram delas, nada mais justo que elas escolhessem quem os gestaria...

    Mas todos sabiam que às vezes acontecia, que algumas fêmeas tinham maior dificuldade em procurar e conquistar os gestadores. Que algum desequilíbrio hormonal fazia algumas fêmeas ficarem mais atraídas pelos machos e desprezarem os gestadores, ao invés de repartir igualmente o interesse entre os dois sexos. Os machos às vezes precisavam intervir na escolha, e ajudar as fêmeas numa decisão vital, mas que elas não conseguiam resolver sozinhas. Mas, por preconceito irracional, todos os que precisavam tomar tal iniciativa tentavam escondê-la. A espécie acabaria extinta se este preconceito besta não fosse superado...

    "Seres que se alimentam de eletricidade!". A surpreendente descoberta não saía da cabeça do doutor! "Que se carregam com descargas elétricas de seus raios de tempestade! Quem diria..."

    Ficou um tempo apreciando os raios luminosos predominantemente vermelhos de seu sol, contemplando a semi-parceira feminina. A tez morena ficava particularmente bonita naquele ambiente avermelhado! Quando ela lhe apresentaria o gestor neutro escolhido para desenvolver o filho de ambos? Era um mistério. Continuaram se deliciando com a luz de seu sol. Como todos os outros integrantes de sua espécie, eles se alimentavam de luz...


*** FIM ***





4D


    Não era nada fácil encarar os seres tetradimensionais. De início, o próprio termo "encarar" já era completamente inadequado. Como fixar o olhar numa face que mudava o tempo todo? Fora o fato claro deles possuirem três olhos, algo que sempre ficava evidente quando tentavam focalizar os três em nossa brana tridimensional. Acostumados com um mundo em quatro dimensões, parecia evidente que eles tinham muita dificuldade em focalizar criaturas tridimensionais como nós.

    Se pensarmos bem, nós também apresentamos, à nossa maneira, vários rostos diferentes. Um rosto visto de frente é bem diferente do mesmo rosto visto de perfil, e totalmente diferente do rosto visto por trás ou por cima. Mas limitados a um único eixo de rotação devido à nossa natureza tridimensional não temos dificuldade alguma em reconhecer que estas várias facetas são apenas pontos de vista diferentes de um mesmo rosto. Porém, com seres tetradimensionais capazes de rotacionar suas cabeças em dois planos de rotação independentes, a situação fica mais complicada. Para nós obviamente, não para eles...

    Antes daqueles contatos, várias foram as formas diferentes que imaginávamos que teriam nossos prováveis companheiros cósmicos: homenzinhos verdes, talvez lulas inteligentes, lagartos, amebas gigantes... até mesmo a idéia de vegetais, plantas inteligentes, chegou a ser cogitada seriamente certa época. Mas uma coisa todas estas especulações tinham em comum: sempre imaginamos que extraterrestres, por mais estranhos que pudessem parecer, seriam tridimensionais como nós. Uma criatura de quatro dimensões estava fora do alcance do mais doido dos escritores de ficção científica. Porém, lá estavam eles, se comunicando conosco!

    - Vocês mal sentirão nossa presença no planeta. - a voz multiplamente modulada vinha de todas as direções possíveis. - Faremos de tudo para não interferirmos na brana tridimensional que vocês ocupam no planeta Terra. O hipervolume de seu planeta é gigantesco!
     
    Espantados com o fato dos extraterrestre saberem falar português? Bem, ainda nem imaginamos as implicações de uma inteligência desenvolvida dentro de um cérebro de quatro dimensões. Imaginem neurônios, ou seus equivalentes tetradimensionais, com quatro graus de liberdade disponíveis para criarem ligações sinápticas com seus vizinhos. A experiência mostrou que tais seres eram capazes de dominar a estrutura de qualquer língua humana apenas ouvindo-a por poucos minutos.

    Minutos, segundos... tempo! Outra grande surpresa para nós, esta praticamente impossível de se imaginar! Algebrista especializados no estudo da Causalidade de Eventos viram neles um prato cheio para seus estudos, diante da afirmação de que tais criaturas viviam num "Plano Temporal", numa estrutura de tempo bidimensional capaz de fluir em duas direções independentes. Nossa idéia de ontem, hoje e amanhã, referências dentro de uma reta de direção única, não passavam de limitações grosseiras para tais criaturas. Nossos estudiosos estavam muito interessados em entender todas as consequências possíveis disto. Mas para nós, simples mortais, o fluxo de tempo linear e unidirecional continuaria sendo a idéia mais complexa que poderíamos formular envolvendo o escorrer das areias do tempo pela ampulheta do nosso universo.

    Era inevitável, apesar de todo treinamento, que eu adotasse certo tom de reverência ao entrar em contato com estas entidades fantásticas. Elas próprias não desejavam nem exigiam nada deste gênero, ou talvez (o que acho mais provável) a admiração por parte de reles seres tridimensionais lhes fosse completamente irrelevante. Mas sempre foram respeitosos. Como um mestre tratando bem seus discípulos? Nada disso, na verdade era muito mais como o respeito que um cientista tinha por uma rara cultura de bactérias, sobre a lâmina de vidro do microscópio.
   
    Não eram belos nem feios. Aquelas massas variáveis à minha frente não possuiam nem formas, nem cores, nem mesmo tamanhos definidos. Eu próprio ainda ficava perplexo, apesar de tê-los visitados já uma dúzia de vezes. Selecionado entre vários outros astro-matemáticos, eu me mostrei o mais capaz de tentar vislumbrar aquele mundo de quatro dimensões. Qualquer outra pessoa despreparada acabaria enlouquecendo na presença deles. Sabia muito bem que aquilo que via não eram eles próprios. Eram apenas sombras, "fatias" tridimensional de seus corpos tetradimensionais que cruzavam nosso espaço naquele momento. Numa analogia grosseira, era como se eu estivesse conversando com a imagem tomográfica de uma pessoa.
   
    - Nossa intenção é isolar cerca de 100 quilômetros em torno de toda a borda da calota hiperesférica que representa a superfície esférica de seu planeta.
       
    - Devagar, por favor. Não estou conseguindo acompanhar a idéia.
       
    Teriam aqueles três olhos lançado um olhar de impaciência sobre mim? Difícil saber. De fato não deve ser mesmo nada fácil tentar explicar a teoria da relatividade para amebas.
       
    - É fato conhecido de vocês que o espaço é multidimensional, não é? E que, muito embora vocês só observem parte deles que são atravessadas pela brana tridimensional de seu universo corrente, seus planetas e estrelas são na verdade hiperesféricos. Confirmam?

    - Entendo parcialmente a idéia. Sempre por analogias.

    - Que as leis físicas que vocês formularam na verdade são bem mais elaboradas do que pensam. Que a interação gravitacional, por exemplo, não passa de uma projeção limitada do que realmente ocorre no universo tetradimensional vista por uma transformação tridimensional...

    - Sim! Fazemos alguma idéia! Tentamos até entender a estrutura de hipercubos, entender sua projeção como um objeto no espaço tridimenmsional. Mas vocês precisam me explicar devagar, não é tão natural assim compreendermos tais conceitos...

    A criatura à minha frente se tornou uma enorma massa verde que logo a seguir deu lugar a um pequeno tetraedo vermelho claramente orgânico. Assumiu depois a conformação de uma esfera cinzenta mais ou menos do tamanho e altura de uma cabeça humana. Quase como que uma cabeça sustentada por um tronco de cone que chegava até o chão da estação espacial. Mas os três olhos permaneciam lá a maior parte do tempo. Às vezes um deles sumia, ou mesmo dois, mas as criaturas claramente estavam se esforçando para me manter no foco! Muitos extrabiólogos e computólogos já haviam estudado isto, e havia uma conclusão mais ou menos estabelecida: assim como nós possuíamos dois olhos para combinar duas imagens com alguma diferença de paralaxe numa representação tridimensional do ambiente à nossa volta, parecia natural que estes seres precisassem de três olhos distintos para formar três imagens que, combinadas, dariam a eles a capacidade de perceber os objetos tetradimensionais de seus mundos.

    - Poderíamos transitar no "interior tridimensional" de seu planeta, mas... isto não faria diferença para vocês, não é?

    - Não. Vivemos na superfície. Começamos a avançar no espaço exterior, mas no interior não podemos ainda nos aventurar. É quente demais!

    A criatura se surpreendeu! Mas era impossível tentar entender o que se passava em sua cabeça. Pediu educadamente:

    - Poderia me retirar para conversar com meu companheiro sobre tal afirmação recente?

    Como negar algo a tais "deuses tetradimensionais"?

    - Lógico! Estarei aqui esperando...

    As duas figuras mutantes sumiram. Eram mesmo duas? Sim, agora parecia claro. Lembro de ter visto, vez ou outra, uma terceira, quarta ou mesmo quinta massa orgânica dentro da sala, aparecendo e sumindo rápido. Pensando bem agora, provavelmente era o braço ou perna de uma das duas, cruzando temporariamente minha brana tridimensional. Apenas uma "parte" de algum deles cruzando rápido o "plano tomográfico" com o qual tentava estabelecer contato.

    Agora me encontrava sózinho, aguardando um veredicto daquelas criaturas fabulosas!!

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    - Na superfície da esfera tridimensional??? - Znontfgrizchvõ estava surpreso. - Mais do que limitados a três dimensões... eles só podiam até então se locomover no espaço fechado bidimensional definido pela superfície externa da esfera tridimensional de seu planeta? Além de serem apenas tridimensionais, por muito tempo precisaram se contentar em se mover apenas em duas dimensões, impedidos pela força gravitacional fácilmente superável?

    Pesquisadores tridimensionais já haviam mencionado isto. Mas ouvi-lo da boca da própria criatura tridimensional era bem diferente! Mais intenso!

    - Sinto certa pena deles... - diz Qzxxohjknblatks.

    - Dos humanos rastejantes? - e o termo "rastejante" proferido aqui por Znontfgrizchvõ não tinha, de forma alguma, tom pejorativo; era simplesmente uma percepção bem natural para os seres tetradimensionais em relação aos tridimensionais. Ninguém está realmente ofendendo vermes ao afirmar que eles rastejam, concordam comigo?

    - Não necessariamente do fato deles rastejarem limitados às suas três dimensões. Isto talvez nós mesmos acabaríamos nos acostumando se fôssemos obrigados a tal. Estou falando do tempo unidirecional que eles são obrigados a seguir. Como conseguem?

    Znontfgrizchvõ conseguia entender a perplexidade do companheiro.

    - Percebi neles certa inteligência, apesar de bem rudimentar. - continuio Qzxxohjknblatks.

    - Também notei isto. - responde Qzxxohjknblatks, ou seria Znontfgrizchvõ? Bem, esta comutação de personalidades entre cérebros de companheiros tetradimensionais era uma das inúmeras outras coisas que os humanos tridimensionais nunca seriam capazes de compreender... - Sempre se espera um comportamento automático em seres de três ou duas dimensões. Mas neles...

    - ... eles parecem capazes de tomar decisões, não é? Parecem possuir algum tipo de livre-arbítrio.

    Ambos concordavam que isto era surpreendente numa rede neural limitada a três dimensões, com tri-neurônios tão limitados assim a três graus de liberdade para criar suas conexões.

    - Concordando que eles são capazes de tomar decisões, minha pergunta é: o que eles fazem quando erram ?

    Znontfgrizchvõ pensou naquilo com cuidado...

    - Já conversei uma vez com um humano sobre isto. Pelo que entendi, ao errar eles tentam... como era mesmo o termo???... Ah sim! "Consertar"!  Foi o que ele disse.

    - Mas o tempo deles não é unidimensional? Ah, lógico: "consertar" deve ser então descobrir o ponto da linha temporal em que errou, voltar e tomar uma decisão diferente. Nunca havia pensado nisso...

    - Temo que é mais complicado que isso, caro Znontfgrizchvõ. Além do tempo deles ser unidirecional, eles só podem segui-lo num sentido bem determinado.

    Aquilo era surpresa para ele.

    - Eles não podem voltar na sua linha temporal?

    - De forma alguma! Eles são obrigados a seguir a direção temporal correspondente à expansão de sua brana tridimensional. Àquela direção definida em seu Big Bang particular. Na direção ortogonal ao plano tridimensional local de sua hiperbolha, e no sentido oposto ao centro da espansão.

    - Na direção do aumento da entropia, é o que você quer dizer? Além de limitados a seguir um tempo unidirecional, eles também só podem fazê-lo num sentido? E o que fazem quando acabam sua possibilidades de variação entrópica?

    - Eles morrem... - e Znontfgrizchvõ fez questão de enfatizar aquele termo obsceno, que todos sempre relutavam em pronunciar! - Deixam de existir...

    Era uma visão de pesadelo!! Pois haviam claramente percebido a existência de consciência e inteligência naqueles seres rastejantes das três dimensões. Mas como, inteligentes, conseguiam viver presos numa injusta camisa de força tando espacial quanto temporal? Sem enlouquecer?

    - Ele está nos esperando.

    - Esperando?

    - Sim, o tempo pra eles sempre avança! Unidirecional e de sentido único, lembra? Ele não pode, como nós, seguir uma linha temporal ortogonal.

    - Seria conveniente voltarmos para um ponto temporal anterior à espera?

    - De forma alguma! Isto só o deixaria mais confuso. Voltemos cerca de 30 minutos depois em sua linha de tempo, para lhe dar a impressão de que discutimos bastante sobre o assunto...

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        Alguns dias atrás aquele era apenas um ponto azul no céu, apesar de mais brilhante que todos os outros da abóbada celeste negra. Não contando nosso próprio sol amarelo, obviamente! Mas, avançando em direção à estação espacial na velocidade de 30 quilômetros por segundo, começava a ficar claro que não era mero ponto, e sim uma esfera azul. Como sempre acontecia todo ano, o planeta Terra passaria rasante à estação espacial, sua superfície a pouco menos de 100 quilômetros de distância (altura órbital original da estação espacial) e depois começaria a se afastar novamente, continuando sua translação em torno do sol central. Momentaneamente a gravidade da terra ficaria bem maior que a pequena gravidade solar, devido à proximidade, e por breves instantes seríamos atraídos para o "teto" da estação, ou aquela superfície que convencionamos chamar de teto.

    Flutuar no espaço? Bem, a gravidade solar ela bem baixa naquela distância de uma unidade astronômica, mas não era nula. Insuficiente para nos prender ao chão metãlico, e este era o motivo de todos usarem botas magnéticas. Numa região de curvatura gravitacional, a famosa sensação de imponderabilidade só vale para corpos soltos no espaço sujeitos apenas às acelerações da gravidade. A estação em questão não estava livre, mas fixa numa posição em relação ao centro do sistema solar. Poderíamos dizer que ela estava "ancorada" a um veículo tetradimensional mantido "imóvel" em relação ao Sol, acompanhando-o em seu movimento em relação às estrelas próximas e, o mais importante, acompanhando-o enquanto ele se afastava do centro original de nosso Big Bang.

    Interrompi meus devaneios. Os dois seres (agora estava claro para mim que era uma dupla) se materializaram meia hora depois de me deixarem.

    - Entendemos agora sua dificuldade. Tentaremos nos expressar por analogias.

    Ah! Que alívio! Mesmo sendo um astro-matemático experiente, acostumado a imaginar abstrações dimensionais impossíveis de serem observadas de verdade, entender aquilo na prática era algo totalmente diferente...

    - Agradeço sinceramente.

    - Entenda que isto nos é complicado. Nós próprios precisamos imaginar mundos pentadimensionais no espaço para tentarmos entender suas dificuldades, e ainda precisamos criar analogias bidimensionais projetando seu mundo tridimensional para tentarmos explicá-las. Alguns conceitos básicos sempre se perdem em tais projeções. As rotações duplas em planos concorrentes, por exemplo: simplesmente não existe nenhuma analogia possível em seu mundo tridimensional que podemos usar para explicá-las...

    - Entendo em parte esta idéia, meu amigo... - eles teriam nomes? Resolvi arriscar. - Como vocês se chamam mesmo?

    Znontfgrizchvõ-Qzxxohjknblatks compartilharam conciências por um tempo, pensando numa resposta.

    - Nossa representação de individualidade?

    - Isto mesmo! Um conjunto fonético representando suas individualidades. - arrisquei... - Prazer, eu me chamo Poincaré. Henri Poincaré...

    - Nós somos Znontfgrizchvõ-Qzxxohjknblatks quando conjugados mentalmente. Com individualidades separadas, eu sou Znontfgrizchvõ e este é meu companheiro Qzxxohjknblatks. - surge uma esfera azulada brilhante entre as duas massas à minha frente. Seria uma "fatia" de um dedo apontando o segundo ser e atravessando a brana tridimensional naquele exato momento?

   - Estas palavras soam estranhas para mim. Nem sei se consigo repeti-las. Têm algum apelido? Um nome curto? - penso um pouco. - Alguns amigos me chamam apenas de Ponki...

    As duas massas se expandiram simultâneas. A voz de tom indefinível respondeu.

    - Pode me chamar de Zínon, e meu colega de Blatks... Ou Zintks, quando quiser se dirigir a nós dois.
   
    Quanto mais contato, mais surpresas! Cada contato era algo único, impagável! Primeiro, nem imaginava que os seres tetradimensionais pudessem ter nomes! Nunca foi cojitada tal hipótese. Realmente arriscara, dei um chute certeiro ao perguntar. E enfim esta idéia de existir um nome específico para personalidades conjugadas... Que outras surpresar surgiriam?

    - É uma honra conhecê-los, Zintks!

    Mesmo bem diferentes de nós, ficou claro uma pequena confusão. Confirmada por um novo aparte:

    - Se incomoda se mais uma vez o deixássemos sózinho? Será bem mais breve agora...

    Pensei em dizer "seu desejo é uma ordem, mestres!". Mas me contive. Não sabia se eles eram capazes de entender comentários irônicos. Bem, certamente compreenderiam! Eles eram incrivelmente inteligentes, e não poderiam ser desprovidos de humor com um cérebro tão privilegiado. Só que talvez, por serem assim tão inteligentes, desprezassem o humor como futilidade, comentários jogados fora, perda de um tempo precioso. Tempo? Sim, eu me arriscaria de novo quando eles retornassem! Aquele encontro estava se mostrando bem revelador, era minha obrigação tentar aproveitar mais dele...

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    - Uma honra conhecer nossos nomes? Entende esta importância que eles dão a uma representação banal de diferença de manifestações mentais?

    - Parece que a troca de nomes é algo valioso para eles, Znontfgrizchvõ.

    - O que uma combinação aleatória de fonemas diz sobre a personalidade que o adota?

    - Para eles não é algo aleatório. Está normalmente associado à combinação genética recebida pelos novos seres humanos gerados. Já me citaram várias vezes a expressão "nome de família", embora eu ainda não tenha compreendido bem o conceito.

    - Também já ouvi esta expressão algumas vezes. Se incomoda de tomar um tempo ortogonal brevemente, pra eu poder consultar os registros sinápticos de nossos dois cérebros?

    - À vontade, amigo! Como diriam os humanos "mi cerebro es su cerebro"! - Henri Poincaré ficaria feliz se pudesse constatar agora que, ao contrário do que ele imaginava, os seres tetradimensionais tinham sim certo senso de humor.

     Znontfgrizchvõ, combinando os dois registros sinápticos, chegara a uma conclusão quando Qzxxohjknblatks redespertou sua personalidade no cérebro tetradimensional.

    - Parece ser um registro da linhagem genética deles, uma espécie de memória fonética das combinações de DNA pela qual passaram até começarem a "existir".

    - O "existir" deles não é igual ao nosso "despertar", se entendi bem...

    - Não. Para eles é indissociável. Eles despertam sempre depois de começarem a existir.

    - Mas que vida miserável levam estes humanos, meu amigo!

    Nenhum dos dois achava justo mesmo seres conscientes e, mesmo que pouco, mas também inteligentes, tivessem que passar por tais limitações.

    - Suas personalidades então nunca podem migrar para outros receptáculos orgânicos quando o atual sofre, eventualmente, algum tipo de colapso?

    - Seus corpos orgânicos SEMPRE sofrem colapso, meu amigo! Quando seu metabolismo não consegue mais reverter a entropia interna, consumindo a entropia do ambiente, eles sempre morrem.

    - Você quer dizer que, além das mortes acidentais, todos acabam colapsando por morte natural?

    - Eles são obrigados a seguir a direção do aumento de entropia de seu universo, lembra? - baixou os olhos, também começava a sentir pena dos seres tridimensionais...

    - Nossas naturezas são muito diferentes. Incompatíveis! Nunca poderemos resolver seus problemas.

    - Podemos pelo menos tentar amenizá-los, amigo!

    - Como? Eles seguiriam nossas instruções? Por qual motivo?

    - Eles sempre acreditaram no sobrenatural. Em benfeitores supremos capazes de guiá-los na direção correta. Podemos nos aproveitar disto...

    - Não fico confortável com a idéia...

    - De fato, nós devemos parecer a eles como semi-deuses, ou representantes deles. Nos materializamos em sua brana do "nada", descrevemos um universo multidimensional que eles nunca serão capazes de compreender, mostramos que podemos "desrespeitar" suas leis físicas, fixando um corpo  em seu espaço, fazemos alguns não serem mais sujeito à sua inércia, entre tantos outros exemplos que podem ser enumerados... Banal para nós, mas para eles se parecem "milagres".

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   Os seres tetradimensionais reapareceram depois de dez minutos exatos. Como eram pontuais! Bem, na verdade estava quase convencido de que tal "pontualidade" era explicável pelo fato deles serem capazes de retornar no ponto em que quisessem de minha linha temporal. Como seria o correr, para eles, de um tempo bidimensional? Era a pergunta entalada em minha garganta... Poderiam eles formular uma analogia compreensível para isto? Ou era uma das inúmeras outras coisas do espaço-tempo hexadimensional (quatro espaciais, duas temporais) que nós nunca seríamos capazes de compreender?

    - Ponki! - começou a voz multimodulada, impossível de se distinguir se vinha do grande cubo azulado à minha frente ou do octaedro branco um pouco à direita dele. - Nós, Zínon, Blatks e Zintks também nos sentimos honrados em pronunciar os fonemas determinantes de sua manifestação mental.

    Não entendi bem o porquê da expressão tão complexa. Mas estava claro que tentavam ser gentis.

    - Zintkis... Ou Zínon e Blatks? Vocês continuam conjugados?

    - Sempre que quisermos. E sempre individualizados, se isto te parecer mais confortável para estabelecer contato.

    - Façam como quiserem. Nunca conseguirei mesmo entender isto... Sou tridimensional, limitado. "Rastejo" em três dimensões, como já ouvi vocês próprios cochichando... Entendem isto, não é?

    Eles não toleravam estas expressões de auto-piedade. Mas toleraram. Bem poderia ser uma interpretação exagerada, distorcida, de ironia.

    - Algo que quero saber a bastante tempo: quando nos descobriram? Nos observam a muito tempo? Ou existe algum motivo especial para só agora, em 2112, estabelecerem contato conosco?

    Zínon pensou numa resposta, isolado de Blatks. Blatks também participara da decisão, mas as conexões sinápticas relevantes já estavam replicadas no tetracérebro de Zínon. A idéia de replicar informações era explorada ao extremo entre ele: não custa nada fazer cópias, sempre estão surgindo cérebros novos para armazená-las. E nunca se sabe quando uma informação será importante... A melhor decisão é sempre armazenar e replicar todas nas várias redes neurais dos corpos tetradimensionais... Matéria orgânica para isto era o que não faltava no Multiuniverso.

    - Ponki, entende que sua pergunta não faz muito sentido para nós, ou não??

    De fato, percebi logo o absurdo de minha pergunta. Que, para seres capazes de percorrer livres um plano temporal, com dois tempos ortogonais que eles poderiam combinar como quizessem, a noção de um momento específico numa reta de tempo unidirecional não fazia o mínimo sentido.

    - Para descrevermos um ponto específico dentro de nosso plano temporal, um ano, mês, dia, hora, minuto, segundo, milissegundo... qualquer que seja a granulação e precisão que vocês queiram! Para nós, descrever um ponto específico da superfície de nossa esfera temporal, determinar o tempo de nosso espaço tetradimensional, envolve determinar a latitude e longitude temporais daquele ponto específico. E temo que isto esteja completamente fora de vossa capacidade de compreensão. Nenhuma analogia tridimensional é possível. Acredito que até a impossível explicação para vocês de nossa birrotação seria simples perto da tentativa de explicar como percebemos nosso tempo bidimensional...

    - Mas... o tempo corre para vocês, não é? Ou não consegiríamos sequem estabelecer contato rudimentar...

    Zintkis pensou.

    - É diferente de vocês, que são obrigados a acompanhar o tempo determinado pela expansão de sua brana tridimensional.

    - Mais detalhes, por favor! Aviso se começar a ficar confuso!

    Zínon assumiu a conversa, embora para Ponki isso não fizesse a mínima diferença...

    - O plano bidimensional de nosso tempo pode ser representado pela superfície de uma triesfera... ah, desculpe! Por uma esfera de seu espaço. Existe uma analogia sim para o seu "correr" do tempo, que para nós é o resultado da rotação desta esfera. Só que, ao contrário de vocês, esta direção de rotação é apenas uma sugestão. Mais como uma referência comum para nós, já que podemos nos mover por este plano temporal em qualquer direção que desejarmos.

    Ele compreendia a idéia. Eu compreendia a idéia... Ele, eu?? Afinal... estou narrando de que ponto de vista? Em primeira ou terceira pessoa?

    - Existem então vários tempos correndo em vários "ritmos" diferentes em seu universo? Seria só questão de se moverem para latitudes diferentes para viverem tempos mais lentos ou mais rápidos?

    - Mais ou menos, Ponki. A analogia não é perfeita, mas você entendeu a idéia básica. Tentamos ajudar um pouco...

    - Vocês estão contactando diretamente meu cérebro? Me surgem idéias que tenho certeza não serem minhas...

    - Te incomoda? Estamos tentando sim, mas paramos imediatamente se isto estiver te deixando desconfortável...

    - Não, continuem! Só é meio... estranho!

    - Nossa brana de tempo é fechada. Tridimensional na verdade, mas vivemos na superfície bidimensional desta esfera de tempo. É por isso que somos capazes de entender em parte sua limitação de movimentos pela superfície bidimensional da esfera de seu planeta. A diferença é que nós vivenciamos isto em escala temporal, e vocês em escala espacial.

    Aquilo começava a interessá-lo bastante. Digo, começa a interessar-me bastante... Céus, que confusão é esta? Parecia sair de meu cérebro breves momentos, e me observar de fora? O humano tridimensional começava a ficar mesmo bastante confuso...

    - Quer observar seu universo de outra brana? Lamentamos que não vai fazer muito sentido para você, pois sempre vai observar uma projeção limitada da realidade. Mas pode ser interessante.

    Ele tremia de medo. O que eu veria se aceitasse aquela proposta? Estaria ele... eu... ah, praga! Não estou preparado para esta comutação de personalidade...

    - A palavra final é sua. Quer ver?

    A curiosidade foi mais forte. Eu aceitei. E assim o ser tridimensional se aproximou de uma grande superfície esférica, capaz de abrigar seu corpo de cerca de 1,75 metros de altura. Vi a esfera branca começar a abrir num pequeno ponto à sua frente, que se abria lento. Foi quando percebeu que o interior era oco. Sim, ficou claro para mim que aquilo era uma projeção de uma mão fechada no espaço tridimensiona. A criatura tridimensional entrei, meu medo superado pela minha curiosidade. No interior daquela mão tetradimensional, o ser tridimensional fiquei bem preocupado.

    - Ele vou ter ar pressurizado ao ser transportado para um espaço tridimensional paralelo?
 
    Como eu sabia que a intenção era esta? Ele não saberia explicar...

    - Espaços paralelos são chatos! - explica Zínon. - Branas concorrentes se interceptando num plano são bem mais interessantes.

    Ele comecei a sentir um movimento indefinível. Inércia de movimento, sem dúvida, mas não nas direções de aceleração que estávamos acostumados, criando pseudo-gravidades. A aceleração parecia se dirigir ao meu interior da criatura tridimensional, apesar de... todas apontarem o centro de gravidade de meu corpo, e ao mesmo tempo todas tinham a mesma direção. Ele era incapaz de encontrar uma explicação para isso dentro de meu cérebro... E esse maldito trânsito de personalidade! Ele gritei: "Parem com isso, por favor! Ele não estou acostumado a estas comutações mentais! Me deixem ele permanecer em meu próprio cérebro, por favor."

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    Henri ficou apavorado quando a esfera começou a se abrir de novo. Morte por despressurização? Que maneira mais ingrata de um astro-matemático morrer, sempre preocupados com tal problema. Mas nada aconteceu. Um orifício enorme se abriu à sua frente, mas a atmosfera interior continuava pressurizada.

    - Não há perigo. - tranquilizou Blatks. - O tempo de fora corre muito mais lento que o teu, não existe risco dos átomos de sua atmosfera interior escaparem de dentro. Só tente não sair da secção de hiperesfera...

    - Não viu estrelas, nem planetas. Nem galáxias, pois era inclusive possível que estivesse suficientemente distante de alguma a ponto de observá-la de longe. Apenas borrões que lembravam nebulosas em todas as direções, e estruturas geometricamete perfeitas em todos os cantos. Tetraedros translúcidos, cubos, octaedros, dodecaedros... Mas nenhuma estrela, planeta... nada!

    - Onde estou?

    - Cerca de 20 metros da brana de seu universo, nas numa direção totalmente diferente...

    - Vinte metros? - não conseguia imaginar que podia existir um universo tão diferente logo ao lado do seu próprio.

    - Na verdade você está vendo uma parte bem limitada no nosso, Henri Poincaré.

    Uma luz amarelo pálido vinha de todas as direções para onde ele olhasse.

    - Que é esta luz?

    - Acreditamos que seja equivalente à radiação cósmica de fundo que surgiu pouco depois do Big Bang de sua brana dimensional.

    - Big Bang? Radiação de fundo? Estou observando um universo no estágio inflacionário?

    - Sim, resultado de um Big Bang recente.

    - Mas... tão perto de nosso Universo, e nunca percebemos?

    Os seres se divertiam um pouco com a perplexidade de Poincaré.

    - Duas branas tridimensionais concorrentes se interceptam apenas num plano que vocês mal seriam capazes de observar. Não se espante assim pelo fato de uma não interagir com a outra, isto ocorre o tempo todo! Milhares de universos tridimensionais por segundo começam a se expandir próximos ao de vocês, e nunca foram capazes de notar que acontecia. Mas agora... olhe para cima. É onde passa o plano comum aos dois universos. Reconhece algo?

    Um disco brilhante aparecia naquele céu estranho. Bordas bem amarelas, se tornando branco à medida em que se aproximavam do centro. Mas, no centro mesmo, uma mancha negra. Poincaré arriscou:

    - Este é... nosso Sol?

    - A fatia dele que agora atravessa o plano comum às branas tridimensionais. Você está vendo sua estrela "por dentro".

    Era mesmo inacreditável.

    - O centro está apagado!

    - Na verdade, é a parte mais brilhante dela! Infelizmente emite luz num espectro que seus olhos não conseguem captar...

    - Isto é incrível! Poderiamos usar isto para estudar o interior de buracos negros.

    Zintks ficou sério.

    - É o que nos levou até você, Ponki! Para avisá-los: não façam isto! Vocês não podem!

    Era a primeira vez que se ouvia uma proibição dos seres tetradimensionais. E parecia ser algo bem grave!

    - Existe um motivo bem forte para que existam horizontes de eventos ao redor dos buracos negros. É para proteger seu interior, impedir que sejam observados.

    - Poderíamos vê-los com segurança se ele fosse atravessado por um plano comum a duas branas tridimensionais. Da mesma maneira que estou vendo agora o interior do sol...

    Zínon agora assumiu a conversa. Sério, reforçou a proibição!

    - Não conte conosco para isso. Não vamos ajudá-los neste caso.

    - De qualquer forma, ainda existem as Singularidades Nuas, não é? Buracos Negros que não são cobertos por um horizonte de eventos...

    - Esqueça as Singularidades Nuas! - e pela primeira vez Ponki sentiu um tom de ameaça naqueles seres.

    A "mão" tetradimensional começou a se fechar novamente.

    - Ponki, achamos que já é hora de o levarmos de volta à sua brana...

    Novamente foram percorridos os 20 metros que separavam os dois universos. Sozinho na estação espacial, com a Terra brilhando lá fora, Poincaré ficou meditando, tentando entender qual fôra o comentário infeliz que deixara os seres tetradimensionais tão furiosos...

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    - Como foi mesmo que você percebeu que eles existiam?

    - Nas minhas viagens, subindo e descendo latitudes temporais. Quando se faz isso meia dúzia de vezes, é difícil mesmo perceber a diferença. Mas quando isto se torna constante, fica claro que aquela latitude temporal específica muda rápido! Independente das vizinhas!

    - Mudanças numa brana tridimensional, que mal possuem hipervolume...

    - Sempre interferem! Pode ser bem achatada, mas sempre existe uma tênue manifestação nas bordas tetradimensionais vizinhas. No começo você pensa que são clarões ópticos espontâneos das hiper retinas, ruídos eletromagnéticos... Mas quando se percebe que sempre acontece ao cruzar aquela latitute temporal específica você começa a desconfiar que existe algo diferente.

    - Sim, muitos de nós têm medo de se aproximar demais dos pólos da esfera temporal por causa das lendas antigas, da singularidade do tempo zero, do medo de estar numa região onde o tempo simplesmente não avança... Continuaríamos capazes de decidir algo nestes dois pontos, polos norte e sul, ou nossa consciência congelaria?
   
    Zínon se abriu, mesmo sabendo que Blatks ficaria perplexo.

    - Já estive no pólo norte temporal. Nada aconteceu... Nada, meu amigo! Todos esses supersticiosos se esquecem que o polo é um simples ponto sem dimensões na superfície da esfera temporal. Nem mesmo um neurônio seria afetado pelo congelamento do momento de rotação. No máximo um ponto impossível de se isolar dentro de tal neurônio, que não faria diferença alguma.

    - Mas...  é estranho um tempo correndo em velocidade tão lenta, não é? Quer dizer, a diferença de velocidade de processamento entre neurônios centrais, próximos ao polo, e os periféricos, devem ter causado uma sensação estranhíssima.

    - Sim, foi estranho! Acredito, pelas descrições, que foi algo similar, a nível tetradimensional, às experiências que alguns humanos me descreveram com o ácido lissérgico... A percepção simultânea de várias escalas de tempo, nosso cérebro tentando encontrar uma explicação coerente para isso...

    O amigo ainda estava preocupado.

    - Não acho recomendável repetir isto. Não pelo colapso do corpo, pois você sempre poderia tentar despertar em um novo. Falo de um colapso da personalidade.

    - Perder definitivamente a capacidade de transmigração? Morrer? - e a  palavra obscena ressurgia. - É nisto que você está pensando?

    - Pior do que morrer! Continuar existindo, mas defeituoso! Já ouvi histórias de mentes remodeladas com falhas irreversíveis. Não adiantava mais transmigar para hospedeiros corporais saudáveis, pois a falha estava na mente, nas personalidades! Casos raros em que seria até melhor (me desculpe voltar a este termo) deixar de existir...

    Ele entendia a preocupação. Lógicamente não parecia perigoso. Mas a lógica poderia falhar. Conhecia exemplos clássicos! Acataria a recomendação do amigo, e não mais tentaria chegar a nenhum dos dois polos temporais...

    - 87.5 graus norte... nunca me esquecerei deste ângulo de latitude... Uma Civilização Tridimensional? Seguindo um tempo unidirecional e de sentido único? Ocupando uma fatia pequena e limitada de nosso hiperplaneta azul? Quem poderia imaginar algo assim tão fora de qualquer lógica?

    - Você voltou várias vezes naquela região tentando focalizar aquela brana, não é?

    - Não pude evitar: eu precisava ver aquilo!!! Mas como???

    - Tentando fazer os três olhos ficarem "coplanares" ao subespaço tridimensional...

    - Exato! Poderia ao menos ver extensões daquele mundo, objetos tridimensionais "alongados" na quarta dimensão, uma ilusão de ótica. Mas já podia tentar estabelecer algum contato...

    Havia um detalhe naquilo que o amigo não entendia. Uma razão que o companheiro parecia relutar em revelar.

    - Me permite uma conjugação mental, amigo? Você pode permanecer desperto. Quero entender um motivo que você tenta esconder de mim...

    - Não estou escondendo, amigo. Só acho que não compreenderia... Faça-o agora, minha rede neural está aberta...

    Ele vasculhou lembranças e razões. Sim, era o que ele imaginava.

    - Você acredita ser uma ordem superior, não é? Recebeu uma revelação, uma iluminação mística...

    - Os humanos estavam começando a estudar em detalhes um buraco negro próximo, enviar sondas...

    - ...e terminar de desnudar Singularidades Nuas. É o que te deixou aflito, não é?

    O amigo confirmou com seus três olhos...

    - Você acredita mesmo que recebeu uma ordem dEle... Apesar de todos os Teoremas e Corolários de nossos estudiosos de que Ele não existe...

    - A ordem era clara, amigo! Esquecemos algo importante nas provas, mas Ele existe sim! E me disse que os seres tridimensionais pretendiam desnudar de uma vez as Singularidades Nuas. Pediu que os instruísse, que tentasse convencê-los a não faze-lo.

    - Ele.... Amigo, use seu cérebro tetradimensional! Quem você acha que é Ele???

    Znontfgrizchvõ meditou. Não durante um grande "período" de tempo, como imaginariam humanos limitados. Mas durante uma grande "área de tempo". Cheio de coragem, concluiu:

    - Ele, o ser dodecadimensional e atemporal que criou e continua criando todos os Multiuniversos, estruturas multidimensionais e criaturas de variadas dimensões que nele vivem...


*** FIM ***