Pesquisar este blog

25/08/2011

Lados Siameses

Odeio o esquerdo, mais do que qualquer outra coisa na minha vida! Desde quando? Não estou muito certo, mas acredito que desde sempre. Começou na infância, e só vem aumentando até hoje. Você é comunista, socialista? Mil desculpas, acho que comecei mal esta narrativa! Não estou de forma alguma expressando minhas convicções políticas. Eu não odeio você, o que eu odeio é o lado esquerdo, todo metódico, controlador, previsível... Meu lado esquerdo é realmente insuportável!

Meu leitor é canhoto? Me perdoe de novo, também não odeio você. Acho que comecei errado mais uma vez. É lógico que não odeio meu lado esquerdo, aliás eu próprio sou canhoto! Na verdade nem tive muita opção, eu tinha necessáriamente de ser canhoto visto que este é o único lado do corpo sobre o qual tenho um certo controle. Deixe-me reformular a idéia: eu não odeio TODO o lado esquerdo do meu corpo. Só odeio uma parte dele, mais especificamente o hemisfério esquerdo do meu cérebro. Se este ódio é correspondido? Na verdade ele mal sabe da minha existência! Talvez sinta este meu ódio instintivamente, mas... não, definitivamente ele não tem esta capacidade. Todo racional, metódico, ele não deixa muito espaço para instintos. E é isto que me deixa maluco!

Mas parece que a estratégia dele funciona. A maior parte do tempo ele tem controle total dos dois lados do corpo, inclusive do lado esquerdo que é meu de direito. Ou (perdoem-me pelo trocadilho) eu tenho direito ao lado direito também? Acho que sim, pois é o mesmo lado em que se encontra minha metade dos hemisférios cerebrais. O lado esquerdo é meu por motivos neuronais, é o lado que eu controlo. Mas o direito também deveria sê-lo por motivos posicionais, pois se encontra do mesmo lado que o meu hemisfério. Porém só tenho controle sobre meu lado esquerdo e direito quando meu irmão adormece, e são estes os únicos momentos em que tenho um pouco de independência. Mas preciso ser cuidadoso para que ele não acorde, ou vai tudo por água abaixo. Acho que até poderia tentar competir com ele pelo controle do corpo em vigília, mas por enquanto quero que tudo continue como está, com meu irmão da esquerda desconhecendo minha existência.

É, anda não fui cem porcento claro: lógico que o esquerdo sabe que eu existo! Melhor, ele sabe que meu hemisfério existe, mas ele não tem idéia que tenho existência independente. Ele acha que o hemisfério direito e esquerdo é uno, que meu hemisfério também pertence a ele como todos os outros dois lados do corpo. Deixe que ele pense assim por enquanto, é adequado a meus propósitos.

Ele está começando a achar que está enlouquecendo. Isto porque, quando ele adormece e eu assumo controle, saboto sua vida: mudo coisas do lugar, desfaço o que ele fez durante o dia, discuto com seus amigos... Óbvio que ele nunca se lembra de nada disso! O cérebro do corpo que compartilhamos possue uma anomalia incomum, uma assimetria no feixe neural que liga os dois hemisférios cerebrais. Por um infeliz acaso, a conexão do meu lado esquerdo com o direito é mais eficiente do que a minha com ele, e é este o motivo de seu maior controle. Mas quando ele baixa a guarda, é quando eu aproveito para viver, fazer meus planos prosseguirem.

Várias vezes já sonhei com uma separaçaão cirúrgica, mas no meu caso isto é impossível. Mesmo em gêmeos siameses existe grande risco na separação dependendo do caso, ainda mais quando os órgão compartilhados são vitais. No nosso caso, compartilhamos todos os órgãos, inclusive o cérebro! Mais que gêmeos, somos LADOS SIAMESES! Sim, é impossível separar-nos e vivermos livres como duas metades... A única solução é realmente eu conseguir assumir controle sobre as duas metades, direita e esquerda. Mas como fazê-lo? Como disse antes, a única forma é tentar inutilizá-lo completamente, fazê-lo acreditar que está enlouquecendo e assim tirar dele o controle sobre as duas metades: a dele e a minha!

Como expliquei anteriormente, meu acesso ao hemisfério cerebral de meu irmão é limitado. Mais ainda quando tento fazê-lo de uma forma que ele não perceba. Felizmente aprendi como preservar dele minhas próprias memórias, minha afirmação de individualidade. Se eu armazeno minhas memórias de forma exclusivamente emocional ele é praticamente incapaz de decodificá-las. Eu percebo quando ele tenta usar o lado direito do cérebro, que é meu, e tento não me manifestar nestas horas para não denunciar minha existência. Quanta dependência!! Sempre que ele tenta me acessar, são aqueles momentos desesperados em que a razão se mostra inútil para resolver uma situação em particular. Quando ele conheceu a primeira e única namorada, por exemplo, que é atualmente sua noiva: quanta insegurança! Tentou de todas as formas apelar para sua ridícula racionalidade, primeiro negando que estava apaixonado, depois tentando achar algum assunto maçante para começar a conversa com a garota... Economia, situação política mundial? Por favor, ele achou mesmo que ela estava interessada nisto? Por fim apelou para seu irmão aqui, e muito a contragosto (para que ele não viesse a perceber minha existência) sugeri um comentário sobre gosto musical, pois percebi imediatamente o nome da banda estampada na camiseta da garota. Como ele pôde ser tão idiota assim de não ter percebido um pretexto tão óbvio para iniciar uma conversa? Digo a contragosto porque, apesar de perceber que meu irmão estava totalmente apaixonado, eu realmente detestei a garota. Durante estes últimos dois anos de namoro nunca deixei de demonstrá-lo. Será que ela é tão tapada a ponto de nunca perceber que aquelas agressões sem sentido sempre partiam do braço esquerdo, que eu era capaz de controlar se me esforçasse um pouco ?

Como aconteceu este caso tão particular de "dupla personalidade"? Realmente não sei responder. Existem casos parecidos? Como entrar na mente de outras pessoas para responder isto com certeza? Na verdade, nem chamaria isto de "dupla personalidade". As personalidades são distintas, não são alternadas!! Ele tem a dele, eu tenho a minha! O tempo todo! O que acontece é que ele tem controle sobre os atos do corpo que o hospeda a maior parte do tempo, enquanto meu controle é restrito aos momentos em que ele não está no comando. E isto nem acontece sempre, pois... eu também preciso dormir, né?

Ontem desmanchei o noivado com a garota. Disse a ela coisas que realmente não posso reproduzir aqui! Digo ONTEM porque foi antes da meia noite. Meu irmão já dormia, e é óbvio que quando acordar ele não vai ter a mínima noção do acontecido, pois não tem acesso a estas lembranças. Para mim nem foi tão difícil: como disse antes, nunca gostei mesmo da garota. Vejo meu irmão acordando, tentando entender o que "fez". Excelente! Vai reforçar ainda mais sua suspeita de que está enlouquecendo! Talvez se interne voluntariamente por segurança, e é neste momento que vou sugerir a ele (intuitivamente, é claro) a tomar o tal remédio. Já estudei seu efeito! Sei que, entre tantos que são colaterais, o crucial, o que realmente me interessa, é aquele que reforça a intensidade dos estímulos do hemisfério cerebral direito. Quer saber o nome dele? Esquece, eu não seria tão irresponsável a ponto de publicar aqui o nome do princípio ativo.

Enfim, todo o resto do plano parece correr como o planejado. Lógico, meu hemisfério não tem a capacidade de fazer tal tipo de planejamento racional, típico do lado direito, mas... apesar de limitado, eu também tenho acesso ao hemisfério do meu irmão! Usei-o como podia, para não fracassar. Arriscado? De certa forma sim, precisei ser cuidadoso para que ele não percebece minha presença enquanto elaborava o plano. Sei que ele vai ficar arrassado com o rompimento, pode até pensar em dar cabo da própria vida por causa disto, mas... não!! Numa situação de tão intensa tensão emocional ele vai querer me consultar antes de tomar alguma decisão! Esgotadas as soluções racionais ele vai me consultar, e já tenho uma resposta prontinha para ele, hehehehe!


FIM

Nenhum comentário:

Postar um comentário